sábado, 28 de setembro de 2019

POEMAS DE WILSON ROCHA

Wilson Rocha por Pancetti; livro A forma do silêncio; Wilson Rocha em desenho e colagem de Lygia Sampaio.
MEMORABILIA

Os deuses antigos, os deuses da floresta,
davam a tudo um sentido e a todo ser um destino.
A alma criadora dos deuses estimava
as fontes que as donzelas acolhiam
e os seus longos cabelos derramados
ao regozijo do vento oferecia.
Mas as dádivas dos deuses são precárias.
A primeira imagem da vida no tempo
ao negro sol da morte está unida, tal como
o ter a água uma essência musical 
e terem as pedras a forma do silêncio. p.13


VENUS VICTA

Amata tantum quantum amabitur nulla

Vinha do sonho o teu ser ferido de desejo
e o amor era música ao longo dos teus dedos.
O amor inglório e a vida
que mal contém o sopro da morte.
Agora, as palavras não exprimem o teu nome
nem o vento conhece os teus cabelos.
Só as matérias frias
da água e da noite te possuem.
Só nas formas do sonho é que vives.
E a vida é exílio. O sonho é que importa. p.20


MORS ULTIMA RATIO

A plumagem do pássaro é de um tecido exíguo
e breves são dos frutos as cores gloriosas.
As flores cedo amanhecem para a morte
e as imagens da beleza tristemente se apagam.
Tecendo o fim que a todo sonho é imposto,
o cerco do tempo tece o vazio, o nada
– o vão espaço e a vida perecível. p.23


VOLUPTATIBUS PERFLUENS

A mão tenho metido no teu seio
Camões

Rapariga das colinas, amada entre as cabras
que a longa memória dos deuses não esquece.
Os frutos cantantes, os cabelos e os seios
e seus abismos brandos florescendo.
Com o sol dos dias longos e os pássaros
dava-se o seu ser como uma fonte.
Primavera de vinho e de loucura
era a respiração e o calor de sua nudez,
como o virtuoso Catulo celebrava.
E a nuvem do púbis tinha a cor da rosa-chá,
ó rapariga das cabras, papoula de fogo.
Seus murmúrios de prazer compunham eternidades
(e a nossa fortuna durou um breve tempo)
que a longa memória dos deuses não esquece. p.25


FLOS FLORUM

Torso ágil, corpo grácil e volutuoso
– qual uma donzela de Correggio –
as pernas longas e doces
o alongado do prodígio do colo
e a dignidade de fruto
do contorno dos seios.
O desenho extenuante dos quadris,
o ventre em delírio, nunca saciado,
e as coxas e o esplendor do púbis,
o negror de sua flor, flor das flores. p.30


MORTIS CERTITUDO

O tempo é rude e a vida escassa.
Contudo, nosso é o ar luminoso,
nossos os brilhantes frutos
da terra do paraíso.
Doce é a áspera canção
que a carne em nós esplende.
Ó tu, que é fresca e verde,
amemos, amiga breve, loba e pomba,
amemos, companheira efêmera.
Tudo quanto somos é precário
e qual o tempo passamos,
como os pássaros e as flores
e os rebanhos que vimos.
E como os bosques e os castelos
que os outros ergueram, cairemos,
jazendo, como os brilhantes frutos,
na terra do paraíso apodrecidos.
Na terra, onde a ondulante relva
festejará o nosso esquecimento. p.44


FLORES DIESQUE

a Marilene Martins

Abertos dias, luminosas flores.
A distância do pássaro, nos azuis da tarde,
e a doçura da flor, na eternidade.
Na hora breve tê-la n’alma – que
o que vale à flor efêmera é o ser bela.
Vai-se com o vento o esplendor do dia,
e esse viver da flor é sonho e tempo.
De muitos sonhos juntos sois tecidas, flores,
da beleza que não persiste, só e pura,
desse estado frágil da vida e sua frescura
que dos dias é o fluir ligeiro e vão. p.48


TE CANTABO, FEMINA

Lingua sed torpet, tenuis sub artus flamma demanat...
Catulo

Saber efêmera e bela a criatura
e tomar-lhe dos cabelos a brandura.
Cantar a sábia adolescência e sua glória
quando nos ritos de Vênus refloresce.
Quando o desejo faz arder seu bosque
e nos olhos seus responde o lume.
Não há trevas que apaguem a brasa e a chama
e entre colunas o templo celebra a festa de Adônis.
Abre-se em fogo a rosa e seus acentos
e num fulgor de astros desce o firmamento.
Renascem douradas idades e sagrados perfumes
e vinhedos reflorescem para a língua ardente.
E uma obra dobrada noite tutelar se desdobra
e abriga a face do homem e o seu deslumbrado silêncio.
a deusa ama e suspira e em desejo morre e sonha.
Ó frescura da flor – sua fortuna e alimento –
e o sol da flor e o fogo que a devora
(fogo a queimar-se, fonte da vida, ó bela)
a arder no íntimo da flor, tão flor é ela. p.49


VENI IN ALTITUDINEM MARIS

A Robert Collet Solberg

Alheias ao tempo
as coisas se desenham
em líquida penumbra.
Infalível e perene
é o teu seio, abismo
onde as formas ocultas
restauram a virgindade
das origens.
Desci ao teu recesso,
ventre do eterno,
fui ao teu âmago,
sombra impressentida,
buscando as flores do silêncio
e, cobertas de esquecimento,
frias, esperei que surgissem,
tingidas de sonho. p.53


CANÇÃO DA MENINA AFOGADA

Na sombra difusa,
na areia molhada,
alga ou papoula
na praia encontrada.

Na marinha quietude,
no silêncio da sereia,
jaz na praia
perdida na areia.

Na mortiça transparência
de alga adormecida,
sozinha, sozinha,
na praia esquecida. p.69


CANÇÃO DA MENINA E DO TEMPO

a Maria do Rosario Rocha Pereira

Rosa da roseira
menina em flor,
menina no espelho
de breve fulgor.

Menina no espelho
da vida em flor,
olha quão cedo
perde o fruto a cor. p.71


CANÇÃO SEM TEMPO

a Dora Costa

Um tempo além do tempo
e a todo tempo alheio.
As sementes e os sonhos
que a noite traz no seio.

O outro lado do tempo,
ouro que o sol empresta.
A linguagem dos pássaros
e a glória da floresta. p.72


CANÇÃO BREVE

a Rogéria Mattos

Longa haste,
flor tranquila.
Gesto ou sonho
que breve oscila.

No vão desejo
de um só momento,
face do amor,
beijo e alento. p.88


CANÇÃO DO CEMITÉRIO

Ocultas vozes
tecem o silêncio
de extinta dor.

Humano alento
de longínquas faces
sem manhã nem flor.

Brancas superfícies,
segmentos lisos
que o vento percorre.

Frio, memória, limite.
Só fica o tempo
na solidão de quem morre. p.91


CANÇÃO DO EXÍLIO

a Silvia de Leon Chalréo

Um sabiá cantando
em me coração.
Mar azul, sol amarelo,
luar, tristeza, violão.

E a Bahia tão longe,
negra minha, meu amor.
Dorme, dorme, meu país,
palmeiras, saudades, calor. p.93


O TEMPO NO CAMINHO

Os homens caminhavam mansamente,
pisando a sombra das flores.
Depois, pisaram as flores e os frutos.
Vieram vindo, vieram pisando.
Pisaram terra, povo, coração, rosa.
Pisaram a criança e a mãe.
Pisaram a moça e o que era dela,
o vestido claro, a cabeleira escura.
Pisaram os irmãos, o coração, a rosa. p.98


ELEGIA NA MORTE DO POETA JORGE DE LIMA

Rose of memory
Rose of forgetfulness
T. S. Eliot

Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions,
And for a hundred visions and revisions
T. S. Eliot

I

Hora de todas as rosas,
rosas da solidão.
Hora do coração,
hora dor irmão,
hora vivida,
hora da descida,
hora do fim,
hora de mim.

II

Cinelândia sem esperança,
ó pó da lembrança.
Lajes da memória,
Corredores do esquecimento,
ó chão sem aliança,
o consultório acabou.

III

Assim um dia
o poeta iria.
Sozinho partiria
Num sétimo dia.
Os peixes o levaram.
Levaram o que se foi
entre as correntezas,
o que se foi sem voz
para as profundezas.
Agora o poeta solitário
repousa, repousa, repousa,
dentro de cada um de nós.

IV

Cantor de todos os tempos,
todas as coisas, todas as flores,
todos os seres, todos os amores.
Cantava mitos e benditos,
litanias, ladainhas, louvados,
assim cantados:
Louvado seja N.S. Jesus Cristo
e a Mãe d’Ele – Nossa Senhora, minha madrinha.

V

Houve muita noite, muito luar muita varanda,
e ele contou muitas histórias:
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô).
Eram história de escravos,
santos, anjos, moleques, soldados,
bichos, meninos, mulheres
negros, donzelas, sobrados.
Histórias do Brasil:
Eram duas meninas de tranças pretas.
Veio uma febre levou as duas.
Casos de Alagoas, sonhos do Nordeste:
Zefa, chegou o inverno!
Casos de ruas, conversa da Bahia:
Bahia de ruas santas de Santo Antônio da Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
tu, como todo mulher, tens os lugares sombrios mais gostosos:
Baixa dos Sapateiros!
Beco do Guindaste dos Padres!
Barroquinha!
Tabuão!

VI

E agora cresce o silêncio,
um silêncio como um vento, como uma árvore.
Esse silêncio, essa hora, essa agonia,
essa prece, essa queda, essa viagem.
Esse corpo deitado, essa árvore enorme, esse ruído,
esse silêncio, essa música, esse alarido.
Que silêncio é esse, que barulho é esse?
É uma escrava chorando,
é o bispo rezando
e uma procissão passando.
É o Nordeste embalando
um berço despojado.
É Alagoas longe como o céu da infância.
É o Brasil exonerado,
seus países assombrados,
seus territórios selados,
seus campos despovoados
pastoreando saudades.
E assim ficaremos,
e assim escutaremos
a sua voz de outros lados:
Ó meninos, ó noites, ó sobrados! p.111-114


WILSON, Rocha. A forma do silêncio: poesia reunida. Rio de Janeiro: José Olympio: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986.


Autorretrato de Wilson Rocha
Wilson Rocha nasceu em Cochabamba, Bolívia, em 1921, e faleceu em Salvador-BA, em 2005. Era irmão do também poeta Carlos Eduardo da Rocha, acreano de Brasiléia. Fundou, com outros, a revista Caderno da Bahia, que renovou no após-guerra o panorama das artes e das letras na Bahia. Dedicou-se à crítica de arte desde 1949 e foi membro da Association Internationale des Critiques d’Art, de Paris, e da Associação Brasileira de Críticos de Arte, do Rio de Janeiro. Tradutor de poetas ingleses, norte-americanos, franceses, italianos e espanhóis. Colaborou em numerosas publicações literárias do Brasil, Portugal, Suíça, Espanha e outros países, e nos jornais Diário Ilustrado, de Lisboa, O Estado de S. Paulo, Diário de São Paulo, Correio Paulistano e outros. Esteve vinculado ao Clube de Poesia do Brasil e à Revista Brasileira de Poesia e colaborou nas revistas de poesia Távola Redonda e Cadernos do Meio-Dia, de Portugal, Cuadernillos de Poesía, da Argentina, e Papel de Poesía, do Uruguai. Figura nas antologias Poesía brasileña contemporánea, de Gastón Figueira, Montividéu, 1947; Poemas de amor de poetas brasileiros contemporâneos, de Pedro Moacir Maia, Bahia, 1950; Antologia da poesia brasileira moderna, de Carlos Burlamaqui Kopke, São Paulo, 1953; Antologia poética da geração de 45, de Milton de Godói Campos, São Paulo, 1966, e A nova poesia brasileira, de Alberto da Costa e Silva, 1960. Publicou Poemas, Bahia, 1946, Edições Elo; O tempo no caminho, Bahia, 1950 (ilustrado com 10 desenhos do pintor Aldo Bonadei); Livro de canções, Bahia, 1960, na antologia 20 anos da coleção Círculo da Poesia, de Pedro Tamen, Lisboa, 1977; De tempo soluto, Lisboa, 1963, Livraria Morais Editora, col. Círculo de Poesia, vol. 23, com um retrato do autor reproduzido de uma tela de Pancetti; Carmina Convivalia, Recife, 1980, Edições Pirata (ilustrado com seis desenhos do pintor Ismael Caldas); A forma do silêncio: poesia reunida, Rio de Janeiro, 1986, José Olympio Editora, etc. Hernani Cidade em seu livro O conceito de poesia como expressão de cultura (p.318, 2. ed., Coimbra 1957, Armênio Amador Editor) menciona suas “brevíssimas estruturas rítmicas e estróficas” referindo a faculdade sinóptica de sua poesia. Segundo Murilo Mendes “seus poemas são muito significativos, um verdadeiro oásis neste mundo de máquinas e gigantismo industrial”. “Um poeta autêntico”, afirma Roger Bastide no suplemento literário de O Estado de S. Paulo (13-11-1951).

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