Wilson Rocha por Pancetti; livro A forma do silêncio; Wilson Rocha em desenho e colagem de Lygia Sampaio. |
Os deuses antigos, os deuses da floresta,
davam a tudo um
sentido e a todo ser um destino.
A alma criadora dos deuses estimava
as fontes que as donzelas acolhiam
e os seus longos cabelos derramados
ao regozijo do vento oferecia.
Mas as dádivas dos deuses são precárias.
A primeira imagem da vida no tempo
ao negro sol da morte está unida, tal como
o ter a água uma essência musical
e terem as pedras a forma do silêncio. p.13
A alma criadora dos deuses estimava
as fontes que as donzelas acolhiam
e os seus longos cabelos derramados
ao regozijo do vento oferecia.
Mas as dádivas dos deuses são precárias.
A primeira imagem da vida no tempo
ao negro sol da morte está unida, tal como
o ter a água uma essência musical
e terem as pedras a forma do silêncio. p.13
VENUS VICTA
Amata tantum
quantum amabitur nulla
Vinha do sonho o
teu ser ferido de desejo
e o amor era música
ao longo dos teus dedos.
O amor inglório e a
vida
que mal contém o
sopro da morte.
Agora, as palavras
não exprimem o teu nome
nem o vento conhece
os teus cabelos.
Só as matérias
frias
da água e da noite
te possuem.
Só nas formas do
sonho é que vives.
E a vida é exílio. O
sonho é que importa. p.20
MORS ULTIMA RATIO
A plumagem do pássaro
é de um tecido exíguo
e breves são dos
frutos as cores gloriosas.
As flores cedo
amanhecem para a morte
e as imagens da
beleza tristemente se apagam.
Tecendo o fim que a
todo sonho é imposto,
o cerco do tempo
tece o vazio, o nada
– o vão espaço e a
vida perecível. p.23
VOLUPTATIBUS
PERFLUENS
A mão tenho metido
no teu seio
Camões
Rapariga das
colinas, amada entre as cabras
que a longa memória
dos deuses não esquece.
Os frutos
cantantes, os cabelos e os seios
e seus abismos
brandos florescendo.
Com o sol dos dias
longos e os pássaros
dava-se o seu ser
como uma fonte.
Primavera de vinho
e de loucura
era a respiração e
o calor de sua nudez,
como o virtuoso
Catulo celebrava.
E a nuvem do púbis
tinha a cor da rosa-chá,
ó rapariga das
cabras, papoula de fogo.
Seus murmúrios de
prazer compunham eternidades
(e a nossa fortuna
durou um breve tempo)
que a longa memória
dos deuses não esquece. p.25
FLOS FLORUM
Torso ágil, corpo
grácil e volutuoso
– qual uma donzela
de Correggio –
as pernas longas e
doces
o alongado do
prodígio do colo
e a dignidade de
fruto
do contorno dos
seios.
O desenho
extenuante dos quadris,
o ventre em
delírio, nunca saciado,
e as coxas e o
esplendor do púbis,
o negror de sua
flor, flor das flores. p.30
MORTIS CERTITUDO
O tempo é rude e a
vida escassa.
Contudo, nosso é o
ar luminoso,
nossos os
brilhantes frutos
da terra do
paraíso.
Doce é a áspera
canção
que a carne em nós
esplende.
Ó tu, que é fresca
e verde,
amemos, amiga
breve, loba e pomba,
amemos, companheira
efêmera.
Tudo quanto somos é
precário
e qual o tempo
passamos,
como os pássaros e
as flores
e os rebanhos que
vimos.
E como os bosques e
os castelos
que os outros
ergueram, cairemos,
jazendo, como os
brilhantes frutos,
na terra do paraíso
apodrecidos.
Na terra, onde a
ondulante relva
festejará o nosso
esquecimento. p.44
FLORES DIESQUE
a Marilene Martins
Abertos dias,
luminosas flores.
A distância do
pássaro, nos azuis da tarde,
e a doçura da flor,
na eternidade.
Na hora breve tê-la
n’alma – que
o que vale à flor
efêmera é o ser bela.
Vai-se com o vento
o esplendor do dia,
e esse viver da
flor é sonho e tempo.
De muitos sonhos
juntos sois tecidas, flores,
da beleza que não
persiste, só e pura,
desse estado frágil
da vida e sua frescura
que dos dias é o
fluir ligeiro e vão. p.48
TE CANTABO, FEMINA
Lingua sed torpet, tenuis sub artus flamma demanat...
Catulo
Saber efêmera e
bela a criatura
e tomar-lhe dos
cabelos a brandura.
Cantar a sábia
adolescência e sua glória
quando nos ritos de
Vênus refloresce.
Quando o desejo faz
arder seu bosque
e nos olhos seus
responde o lume.
Não há trevas que
apaguem a brasa e a chama
e entre colunas o
templo celebra a festa de Adônis.
Abre-se em fogo a
rosa e seus acentos
e num fulgor de
astros desce o firmamento.
Renascem douradas
idades e sagrados perfumes
e vinhedos
reflorescem para a língua ardente.
E uma obra dobrada
noite tutelar se desdobra
e abriga a face do
homem e o seu deslumbrado silêncio.
a deusa ama e
suspira e em desejo morre e sonha.
Ó frescura da flor –
sua fortuna e alimento –
e o sol da flor e o
fogo que a devora
(fogo a queimar-se,
fonte da vida, ó bela)
a arder no íntimo
da flor, tão flor é ela. p.49
VENI IN ALTITUDINEM
MARIS
A Robert Collet
Solberg
Alheias ao tempo
as coisas se
desenham
em líquida
penumbra.
Infalível e perene
é o teu seio,
abismo
onde as formas
ocultas
restauram a
virgindade
das origens.
Desci ao teu recesso,
ventre do eterno,
fui ao teu âmago,
sombra
impressentida,
buscando as flores
do silêncio
e, cobertas de
esquecimento,
frias, esperei que
surgissem,
tingidas de sonho. p.53
CANÇÃO DA MENINA
AFOGADA
Na sombra difusa,
na areia molhada,
alga ou papoula
na praia
encontrada.
Na marinha
quietude,
no silêncio da
sereia,
jaz na praia
perdida na areia.
Na mortiça
transparência
de alga adormecida,
sozinha, sozinha,
na praia esquecida.
p.69
CANÇÃO DA MENINA E
DO TEMPO
a Maria do Rosario
Rocha Pereira
Rosa da roseira
menina em flor,
menina no espelho
de breve fulgor.
Menina no espelho
da vida em flor,
olha quão cedo
perde o fruto a
cor. p.71
CANÇÃO SEM TEMPO
a Dora Costa
Um tempo além do
tempo
e a todo tempo
alheio.
As sementes e os
sonhos
que a noite traz no
seio.
O outro lado do
tempo,
ouro que o sol
empresta.
A linguagem dos
pássaros
e a glória da
floresta. p.72
CANÇÃO BREVE
a Rogéria Mattos
Longa haste,
flor tranquila.
Gesto ou sonho
que breve oscila.
No vão desejo
de um só momento,
face do amor,
beijo e alento. p.88
CANÇÃO DO CEMITÉRIO
Ocultas vozes
tecem o silêncio
de extinta dor.
Humano alento
de longínquas faces
sem manhã nem flor.
Brancas
superfícies,
segmentos lisos
que o vento
percorre.
Frio, memória,
limite.
Só fica o tempo
na solidão de quem
morre. p.91
CANÇÃO DO EXÍLIO
a Silvia de Leon
Chalréo
Um sabiá cantando
em me coração.
Mar azul, sol
amarelo,
luar, tristeza,
violão.
E a Bahia tão longe,
negra minha, meu
amor.
Dorme, dorme, meu
país,
palmeiras,
saudades, calor. p.93
O TEMPO NO CAMINHO
Os homens
caminhavam mansamente,
pisando a sombra
das flores.
Depois, pisaram as
flores e os frutos.
Vieram vindo,
vieram pisando.
Pisaram terra,
povo, coração, rosa.
Pisaram a criança e
a mãe.
Pisaram a moça e o
que era dela,
o vestido claro, a
cabeleira escura.
Pisaram os irmãos,
o coração, a rosa. p.98
ELEGIA NA MORTE DO
POETA JORGE DE LIMA
Rose of memory
Rose of forgetfulness
T. S. Eliot
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions,
And for a hundred visions and revisions
T. S. Eliot
I
Hora de todas as
rosas,
rosas da solidão.
Hora do coração,
hora dor irmão,
hora vivida,
hora da descida,
hora do fim,
hora de mim.
II
Cinelândia sem
esperança,
ó pó da lembrança.
Lajes da memória,
Corredores do
esquecimento,
ó chão sem aliança,
o consultório
acabou.
III
Assim um dia
o poeta iria.
Sozinho partiria
Num sétimo dia.
Os peixes o levaram.
Levaram o que se
foi
entre as
correntezas,
o que se foi sem
voz
para as profundezas.
Agora o poeta
solitário
repousa, repousa,
repousa,
dentro de cada um
de nós.
IV
Cantor de todos os
tempos,
todas as coisas,
todas as flores,
todos os seres,
todos os amores.
Cantava mitos e
benditos,
litanias,
ladainhas, louvados,
assim cantados:
Louvado seja N.S. Jesus Cristo
e a Mãe d’Ele – Nossa Senhora, minha madrinha.
V
Houve muita noite,
muito luar muita varanda,
e ele contou muitas
histórias:
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô).
Eram história de
escravos,
santos, anjos,
moleques, soldados,
bichos, meninos,
mulheres
negros, donzelas,
sobrados.
Histórias do
Brasil:
Eram duas meninas de tranças pretas.
Veio uma febre levou as duas.
Casos de Alagoas,
sonhos do Nordeste:
Zefa, chegou o inverno!
Casos de ruas,
conversa da Bahia:
Bahia de ruas santas de Santo Antônio da Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
tu, como todo mulher, tens os lugares sombrios mais
gostosos:
Baixa dos Sapateiros!
Beco do Guindaste dos Padres!
Barroquinha!
Tabuão!
VI
E agora cresce o
silêncio,
um silêncio como um
vento, como uma árvore.
Esse silêncio, essa
hora, essa agonia,
essa prece, essa
queda, essa viagem.
Esse corpo deitado,
essa árvore enorme, esse ruído,
esse silêncio, essa
música, esse alarido.
Que silêncio é
esse, que barulho é esse?
É uma escrava
chorando,
é o bispo rezando
e uma procissão
passando.
É o Nordeste
embalando
um berço despojado.
É Alagoas longe
como o céu da infância.
É o Brasil exonerado,
seus países
assombrados,
seus territórios
selados,
seus campos
despovoados
pastoreando
saudades.
E assim ficaremos,
e assim escutaremos
a sua voz de outros
lados:
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
p.111-114
WILSON, Rocha. A forma
do silêncio: poesia reunida. Rio de Janeiro: José Olympio: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1986.
Autorretrato de Wilson Rocha |
Leitura
complementar:
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