sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

JOAQUIM GONDIM: história e poesia

Joaquim Gondim de Albuquerque Lins, segundo O Portal da História do Ceará, nasceu em Sobral, no dia 28 de agosto de 1889, filho de Jesuíno Figueira de Albuquerque Lins e Maria de Nazareth Gondim Lins. Com 12 anos iniciou-se como aprendiz de tipógrafo e, muito jovem, mudou-se para a Amazônia. Jornalista em Belém, trabalhou na “Folha do Norte”, “O Jornal”, “O Tupi”, “A Província do Pará” e “Iracema”. Em Manaus cursou a Faculdade de Direito, diplomando-se em 1926. Inspetor do Serviço de Proteção aos índios, adentrou-se na região, colhendo importante material etnográfico e conhecimento das línguas indígenas. Deputado Estadual, no Amazonas. Retornou ao Ceará e ingressou na magistratura. Foi Juiz Municipal de Santa Quitéria, Mombaça, Assaré e Missão Velha. Orador brilhante, poeta de extrema sensibilidade: Membro da Sociedade Cearense de Geografia e História e Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Publicou: Visões do Passado (1911); Através do Amazonas (1922); Folhas Secas (1923); A Pacificação dos Parintins (1925) Etnografia Indígena (1938), Flores e Espinhos (poesia), etc. Para o teatro escreveu o drama pastoril “Natal de Jesus” e “É Buraco”, revista de costumes amazonenses. Morreu em Fortaleza-CE, em 5 de setembro de 1939.
 
JOAQUIM GONDIM E TARAUACÁ

Joaquim Gondim viveu em Tarauacá, então vila Seabra, nos anos de 1911 e 1912. Aqui, entre outras funções, foi Adjunto de Promotor Público do 1º. Termo da Comarca do Tarauacá, e curador-geral de órfãos e ausentes; além de gerente, por pouco mais de 6 meses, do jornal O Município, de Pedro Leite. No período em que esteve em Tarauacá, sua presença foi assídua na imprensa, tanto por meio de artigos quanto por meio de poesias.
Abaixo, reproduzimos três textos publicados e retirados do jornal O Município, que era editado em Seabra desde 1910: o primeiro comenta o surgimento do livro “Visões do Passado”; o segundo, é uma nota sobre o desligamento de Gondim do jornal, a pedido deste, por motivos de viagem, à negócios, ao rio Muru; e terceiro, e último, uma esclarecedora carta aberta, em que o autor fornece preciosos dados da sua biografia. Não foi possível apurar se Joaquim era parente de Mozart Donizetti Gondim, que, além do sobrenome em comum, ambos eram naturais de Sobral, no Ceará.
Nota: atualizamos a grafia, tanto dos textos quanto dos poemas.

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Aparecerá brevemente à luz da publicidade, nesta vila, o novo livro – “Visões do Passado”, devido à pena do nosso companheiro Joaquim Gondim, esforçado cultor da Arte Poética.
“Visões do Passado” é um livrinho de 100 páginas, de versos escritor pelo autor e esparsamente publicados em vários jornais do Brasil, dentre eles “O Jornal”, de Belém do Pará; “O Rebate”, “A Nação”, “O Theatro”, “A Penna”, “O Corymbo”, “Correio Pinheirense”, “A Alvorada”, “O Imparcial”, “O Municpio”, “A Cidade”, “O Tupá”, “O Fanal”, “O Sol” e a “Província do Pará”; neste último como colaborador da seção Os que começam, a título de emulidade.
Joaquim Gondim é membro da importante Oficina de Letras, de Belém e orador, licenciado, de várias sociedades literárias. No Pará foi redator de diversos jornais, tendo ultimamente fundado o “Correio Pinheirense”, hoje confiado à direção de seu irmão, sr. Galdino Gondim Lins, autor do drama A vingança de Gilberto.

O Municipio, Tarauacá-AC, 26 de março de 1911, Ano II, N. 26, p.2

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Por motivos particulares e independentes de nossa vontade, retirou-se do lugar que ocupava nesta casa o sr. Joaquim Gondim no dia 18 deste mês.
Sentimos a sua ausência, ainda mais porque não concorremos para este resultado como ele mesmo confessou em nosso escritório; tanto assim que continuamos com as mesmas relações que dantes existiam.
O sr. Gondim demorar-se-á por uns quinze dias nesta vila, depois do que seguirá para um dos nossos rios, segundo nos disse; cremos que para o Muru.
Que seja feliz, quanto merece são os votos do Municipio.

O Municipio, Tarauacá-AC, 20 de agosto de 1911, Ano II, N. 47, p.2

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CARTA ABERTA
Meu caro C: - Dando cumprimento à sua estimada cartinha relativamente ao infeliz individuo que julgando-se conhecedor da minha vida público-particular, andou a externar infâmias sobre a minha pessoa por meio de instrumentos clandestinos, tenho a dizer-lhe em breves palavras:
Quanto ao 1.º ponto: Que minha família é conhecida geralmente por quase toda a população tarauacaense como pobre, porém, honesta, digna e laboriosa.
Quanto ao 2.º: - Que iniciei a minha vida jornalística aos 13 anos de idade, quando publiquei os meus primeiros jornais “A Bala” e “O Diabo”, em Sobral, Ceará, conforme consta na revista do Instituto Histórico e Geográfico do mesmo Estado, dirigido pelo sr. Barão de Studart; que aos 14 anos cheguei ao Pará, entrando como compositor-tipográfico para as oficinas d’A Provincia, de onde saí 2 anos depois, de espontânea vontade, passando-me para “O Jornal”, trabalhei alguns anos como tipógrafo, passando mais tarde, a chamado do íntegro jornalista sr. Major Licinio Silva, seu ex-diretot e atual secretário da intendência de Manaus, para o corpo de reportagem, onde sempre me mantive debaixo das melhores referências do conhecido jornalista; que sempre colaborei n’ “O Jornal”, em sua página de honra, oferecendo para isso como testemunhas não só o íntegro e venerável jornalista sr. Major Licinio Silva, como os srs. Dr. Genuino Maciel, acadêmico Dejar Mendonça e major Luciano Magalhães, o primeiro rador d’ “O Correio da Noite” e os dois últimos redator e gerente, respectivamente do “Jornal do Commercio” de Manaus, todos estes cavalheiros, para mim conhecidos como caracteres verdadeiros, a esse tempo pertencentes ao “Jornal”: que no Pará publiquei inúmeros jornais e revistas, conjuntamente com alguns amigos, como sejam: a “A Alvorad”, “O Tupá”, “O Fanal”, “O Theatro”, “O Correio Pinheirense”, “A Faca”, “A Penna”, “O Sol”, “O Leque” e “A Nação” esta última como polianteia, no dia da chegada do saudoso Dr. Afonso Penna ao Pará, com o talentoso advogado cearense sr. Galdino Chaves e o esperançoso poeta Raymundo d’Oliveira, os quais me coadjuvaram na parte redacional; que colaborei n’ “A Provincia do Pará”, na seção Os que começam, a título de emulidade e ultimamente tomava conta (em novembro do ano findo) d’ “O Rebate”, de Sobral, na ausência do jornalista Vicente Loyola, deu diretor, a esse tempo acamado em vista de uma intervenção cirúrgica a que se submeteu.
Quanto ao 3.º ponto, tenho a dizer-lhe ainda: - Que fui orador oficial de várias sociedades literárias – dançante e beneficente do Pará, como sejam: a Oficina de Letras, o Grêmio Recreativo Pinheirense, o Clube Madame Sarmento, e a Liga Social das Artes Gráficas, e ainda em dezembro de 1910, era convidado em Sobral para uma comissão de mocos cearenses a tomar conta do mesmo cargo no Congresso Lítero-Sebralense, para o qual era nomeado, cargo esse que aceitei de boa vontade, tendo que deixar dias depois em vista de minha saída para Belém do Pará.
Esta é que é a verdade, para a qual chamo a atenção da consciente população deste Termo.
Serei um indigno se houver quem desminta qualquer um dos pontos contidos nesta resenha de verdades; também chamarei de indigno o meu censor e difamador barato se não vier em público contar a palinodia das suas infâmias, mostrando à guisa pérfida de caluniador, a sua figura degenerada e sobre tudo digno de figurar n’um gabinete de exposição antropométrica-policial.
É o que de coração lhe diz o am.º sincero
Joaquim Gondim
Foz do Tarauacá, 25/12/911

O Municipio, Tarauacá-AC, 28 de janeiro de 1912, Ano III, N. 70, p.3-4

* * *

TELA CEARENSE

Manhã. Contemplo a tela. O panorama é lindo
E lindo o próprio mar que cintilante espelha.
No alto o firmamento escuro-azul semelha
Um bojo magistral de pérolas fulgindo.

Em tudo acresce o encanto... Aqui, gentil, vermelha,
Desprende o agudo canto uma jandaia. Infindo,
Ali palpita o lago onde a brilhar, sorrindo,
O sol mergulha a cauda argêntea de centelha.

Além, tudo redobra a bela expectativa!
Em baixo, em verdes tons, poética se aviva
A tela colossal dos floridos palmares.

No alto, atalaiando, em claro-azul demora
A serra gigantesca onde Iracema outr’ora
Quebrara, aventureira, a paz dos Tabajaras.

O Municipio, Tarauacá-AC, 26 de fevereiro de 1911, Ano II, N. 22, p.1


NOITE

Quando ao vivo clamor de atroz melancolia
A noite se distende em meio d’amplidão,
Ofuscando da tarde o lívido clarão
E envolvendo de crepe a abóboda sombria,

Palpita-me no peito a dor da nostalgia;
E, como a ave a gemer, sem ninho e sem paixão,
Pressinto tristemente a voz do coração
Murmurar-me baixinho o nome de Maria...

E, debalde, a cismar, relembro seus olhares;
Ouvindo a cada instante, em meio da tortura,
O soturno planger da harpa dos pesares.

A nem sabe Maria o quanto me entristece
Ver, ausente de si, morrer a tarde pura
Ao triste badalar do Angelus da prece.

O Municipio, Tarauacá-AC, 5 de março de 1911, Ano II, N. 23, p.1


HALLEY

Quando te vejo assim, imaculado,
Quando te vejo magistral, fecundo,
De cauda erguida, olhar incendiado,
Do céu rompendo o dorso mais profundo.

Quando penso que agora agigantado
Vais de terror amedrontando o mundo,
E, que depois, vencido, esfacelado,
Hás de rolar nas trevas morindo,

Certo, comparo a tua vida à minha:
Outrora eu tinha vida e luz eu tinha,
E muita luz e muita mocidade...

Mas hoje às ilusões esmaecendo,
Vou pressentindo o coração morrendo
No perihelio imenso da Saudade.

O Municipio, Tarauacá-AC, 12 de março de 1911, Ano II, N. 24, p.1


DIANTE DO MAR

Desça embora do espaço em sublime transporte
O clarão do luar majestoso e fecundo,
E de luz abrilhante o teu dorso profundo,
E de amor o teu seio acalante e conforte,

Que tu és sempre o mar, sempre temível e forte
Gladiador da procela e do vento iracundo,
O terror dos bateis, o Netuno do mundo,
O tormento da Noite, o sepulcro da Morte.

Mas, um dia virá, em que tu’alma errante
Vergue aos pés da Vingança; e o próprio céu, tremendo,
Desabe sobre ti do pélago distante...

Então, como trovões ecoando na serra,
Aplacado de horror, sob os astros gemendo,
Hás de morto rolar no coração da terra.

O Municipio, Tarauacá-AC, 19 de março de 1911, Ano II, N. 25, p.1


VISÕES DO PASSADO
A Quintela Junior

Tempo grato e feliz! Passado azul de outr’ora!
Quando n’alma seu sentia o fogo de uma Aurora
Toda cheia de amor, de luz, brilhante pura,
Não sei porque de mim roubando a grata sorte
Fostes ceda da vida, aos funerais da morte,
Cair pelos umbrais da eterna desventura.

Tempo grato e feliz! Passado de criança!
Quando à mente eu sentia a luz de uma Esperança
Aclarando os gentis rimários de meu Verso,
Não sei porque no roxo ocaso da Saudade
Para sempre o meu sonho azul da mocidade
Deixastes como um sol em tenebras submerso.

Tempo grato e feliz! Passado azul de gozo!
Quando à boca eu sentia o pomo dulçuroso
Dos lábios liriais de uma gentil menina,
Quando ao vivo calor de palpitos desejos
Desprendia em seu lábio um turbilhão de beijos,
Tão doces como o doce aroma da bonina.

Tempo grato e feliz! Passado azul de amores!
Relembro o vosso céu, o vosso céu de flores,
Tão claro como a luz de uma estação florida;
E quanto mais relembro, em misterioso assomo
Sinto a alma a voar pelos vergéis, bem como
Em serenas manhãs a borboleta amada.

Tempo grato e feliz! Passado azul de outr’ora!
Quando n’alma eu sentia o fogo de uma Aurora
E o frescor de uma Brisa em divinal açoite...
Por vós, como um romance eterno de maldade,
Agora eu sinto o peito ardente de saudade,
Agora eu trago n’alma as trevas de uma noite.

O Municipio, Tarauacá-AC, 21 de maio de 1911, Ano II, N. 34, p.1


PARTINDO

Parto, minh’alma... em vão, tudo é deserto e lento
E lenta vem a noite além no descampado.
Nodoa o Sol de sangue o azul do firmamento,
Tristonho e quase extinto, ameno, apapoilado.

Nodoa... e tudo vago : desde a serra ao prado.
O prado – esse bendito doce isolamento
Do afeto – onde nascera o nosso amor sonhado,
Entre os beijos da tarde e os afagos do vento.

Parto... e que importa o dar – esse cruel, tremendo
Martírio que me aplaca e me tortura agora
E deixa o coração em lágrimas gemendo...

Que importa! Se nas ânsias desta mágoa infinda
Eu sigo satisfeito a minha estrada em fora
Por saber que tu és o meu amor ainda.

O Municipio, Tarauacá-AC, 16 de julho de 1911, Ano II, N. 42, p.1


23 DE JULHO

À memória de Silveira Martins

Os mestres do pincel, nas mais custosas telas
Procuram te moldar a imagem cintilante,
Buscando a fantasia eterna e palpitante
De mil traços de luz e cores as mais belas.

Os ricos de talento, em descrição brilhante
Modelam-te o perfil e até procuram pelas
Sonoras vibrações das notas mais singelas
Cantar do teu passado o hino triunfante.

Mas eu, pobre amador do Verso, mestre, apenas
Procuro manejando a pena desditosa
Grafar o teu perfil em frases mais amenas.

Frases cheias de dor, que na mais terna calma
Te levam nesta data infinda e lutuosa
A prece da saudade imensa da minh’alma.

Vila Seabra, 23 de Julho de 1911

O Municipio, Tarauacá-AC, 23 de julho de 1911, Ano II, N. 43, p.1


EXCERTO DE UMA CARTA

Para o meu amigo Dejard Mendonça

Lutei, muito lutei para encontrá-la um dia
A sós... Mas, celebrei um dia o pensamento:
Ela, em breve passo inesperado, lento,
Transpunha do colégio a vasta escadaria...

Sedento de paixão, nesse feliz momento
Falei-lhe... Ela corou... (suprema fantasia!)
Julguei os olhos seus os olhos de Maria
Formosos, do Sinai fitando o Firmamento.

Desde esse dia, esse sublime ensejo,
Divina comunhão do seu primeiro amor,
Suprema comunhão do meu primeiro beijo,

Hemos levados a vida em doce alacridade,
Como dois rouxinóis pelos campos em flor
Cantando as ilusões azuis da mocidade.

O Municipio, Tarauacá-AC, 6 de agosto de 1911, Ano II, N. 45, p.1


ACRÓSTICO

Ao amigo Pantaleão

Senhor! Um lar na terra é um Paraiso n’alma.
A alma é o grande altar em cujo adro santo
Um dia, aos pés de Deus, a criancinha em calma
De preces desfibrou o seu primeiro canto.
A alma é a luminosa fibra onipotente
Das noites de tristeza, as noites de cismar,
E cofre onde palpita o peito mais dolente,
Suspiros imortais Serenos de luar.

Ditoso o que tem alma e suspiroso passa
O tempo ante o seu lar, distante da desgraça.

Gozar... nem sempre o gozo aqui na humana terra
Em Sonhos e venturas magistrais encerra
O que de muito n’alma angélica perdura
Risonho o que, por certo, vive de tristeza
Gozar demais vida é vaidade acesa.
É dor que não tem fim, é mal que não tem cura.

Santa Julia – 16-9-1911

O Municipio, Tarauacá-AC, 8 de outubro de 1911, Ano II, N. 54, p.1


TRIBUNAL DO AMOR

Para o Argemiro Alves de Lima

Vamos, minh’alma, ao tribunal... É certo
Que em vão tentaste assassinar-me a vida,
Ficando à pena máxima infligida,
E eu, in totum, de razões coberto.

Bem vez? Diz todo o inquérito aberto
Que de paixão me apunhalaste o peito...
Não há portanto, coração, Direito
Que te faça sair do mal liberto.

Vamos... Prossegue... Eis a denúncia feita.
A pena a que tu’alma está sujeita
É muito justa – alega o Promotor.

Vê qué conclusa a formação de culpa,
E o Julgador teu crime não desculpa
Pronunciando-te às galés do amor.

O Municipio, Tarauacá-AC, 7 de janeiro de 1912, Ano III, N. 67, p.1


NUNCA MAIS!

Para o Manoel de Moura Negrão

Vestiam-se de neve os matagais... Disseste:
– Podes partir em paz. O teu amor, querido,
O amor tão puro e santo que a chorar me deste
Ficara ao meu peito eternamente unido: –

Parti... Não sei se jura ainda me fizeste...
Mas tenho na memória em breve instante ouvido
O teu lábio dizer: – o nosso amor reveste
Um laço de aliança eternamente fido... –

Hoje – escravo de ti, do teu olhar, sozinho,
Exilado de amor, por tu’alma esquecido,
Passo a vida a chorar como uma ave sem ninho.

Gemo, praguejo, cismo, exclamo: aonde estais!?
E não responde nunca! Apenas dolorido
Me fala o coração: é de outro... nunca mais!

O Municipio, Tarauacá-AC, 25 de fevereiro de 1912, Ano III, N. 74, p.3


PRIMAVERA

Não vês? Olha o matiz! Perfumam-se de flores
Os campos imortais. Sobre a plácida areia
A luz do loiro sol poética pompeia
Como um lindo fanal de esparsos esplendores.

Desponta a Primavera. Em místicos olores
Embriaga a flor do prado à brisa que vagueia.
E no verde ramal, sutil bandolincia
O pássaro gazil dos lúcidos amores.

Das pétalas gentis de lindas violetas
Em sereno bailado, em mágicos valsejos,
Fogem mansos cais de loiras borboletas.

E elas partem n’um voo, à perfumada esfera,
De azas soltas ao sol em trêmulos adejos,
Saudando o firmamento azul da Primavera.

O Municipio, Tarauacá-AC, 10 de março de 1912, Ano III, N. 76, p.1


SONETO

À minha desolada irmã Lourdes

Irmã: como feliz eu fora se te visse
Com aquele mesmo rosto angélico, venusto,
Com aquele mesmo olhar divinamente augusto
Lembrando qual da lenda a deslumbrante Eunice.

Como feliz eu fora, estrela, se sentisse
Teu peito de alegria anda hoje onusto,
Se ainda na minh’alma, alacrimente a custo
Embora, a tua voz tão palpitante ouvisse.

Seria eu bem assim, e mais clemente
O fado que hoje arrasto, intérmino a vogar,
Vogar por sobre um mar de desventura insana...

Mas, ao contrário, irmã, te vendo assim doente,
Sou da dor o Sísifo eterno a tatear
Pelo arco sem fim d’esta existência humana.

O Municipio, Tarauacá-AC, 14 de abirl de 1912, Ano III, N. 81, p.1

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

RIO BRANCO, DE CARA

João Veras

Quando o mundo pega fogo, busco água em qualquer lugar.
Sobre isso que direi nada tem de poético, talvez.
O português é uma língua que às vezes confunde.
Não diz nada denotando.
Ou não diz o que quer, dizendo outra coisa.
Estou pensando em duas palavras que no caso são uma, afinal.
Rio branco não é absolutamente o que significa, de cara.
Não passa de uma ideia que não incorre no real.
Um substantivo rio – curso de água - adjetivado pela cor branca.
Aonde se pode encontrar neste mundo um rio de cor branca?
A ciência já disse: a água é azul.
E um rio, aos olhos de todos, pode ser negro, barrento, cinzento...de toda cor...menos branco.
Isso é corrente. E vai se falando não que o rio é branco.
Tanto que ninguém repara – nem se importa com isso.
Isso se leva no automático, o seu uso.
Irrefletidamente vamos usando sem qualquer senso poético, nem de realidade. Há um senso comum imposto.
A não ser uma criança, um estrangeiro, por razões diversas – imaginárias e linguísticas,
e um poeta às avessas, desses postiços que ama confundir cabeças.
Dessa impossibilidade de rio branco significar rio branco.
Rio Branco é um nome dado a cidades. Também a gentes.
Essas coisas do mundo que costumam também não significar o que são, nem de cara.
Como um tipo de literatura, a que suspende as zonas de verdades e mentiras, talvez!

01/20