terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A BOLA NÃO É A INIMIGA

ROGEL SAMUEL


EU me lembro de alguns indiozinhos Cambebas (ou Omáguas) que inventaram a bola, o futebol, a Copa, no Amazonas de 1744.
Quando La Condamine, em meados de 1744, descia o Rio Amazonas por inteiro, desde as montanhas peruanas, Jaén de Bracamoros, até Bélem do Pará, viu uns indiozinhos jogando bola de látex, balata, na praia.
Maravilhou-se ele e trouxe a bola para a Academia das Ciências de Paris. Lá, triunfante, jogou a bola no chão, num escândalo, para todos os sábios.
No dia seguinte, publicaram: “Estranho objeto desafia a lei da gravidade”.
Ao látex La Condamine chamou de “caoutchouc”, dizendo viria a ser de grande valor industrial, e que os portugueses aprenderam dos omáguas, discípulos dos Incas, que já o conheciam, sua extração e beneficiamento.
É verdade que alguns autores dizem que Colombo já a conhecera no Haiti, diz o Mestre amazonense João Nogueira da Mata, em “Biografia da borracha”, de 1978, que tenho com dedicatória.
Lembro-me de Ademir da Guia. Não o jogador, mas o poema de João Cabral.
O látex é uma gosma grudenta como cola.
Era calculado o jogo, estudado, “desafinado” pelo jogador brasileiro, que dava a ele o ritmo pessoal, o tempo, o chumbo, a câmara de pesadelo lento, transformando o adversário no cúmplice de sua vitória, atando-o, na atadura hospitalar da doença que Ademir inoculava no irrequieto adversário, como aranha, hipnotizando-o, inutilizando o ímpeto, com a anestesia do jogo pesado, encharcado, sobre areia, ou no alagado, na lama, nos baixios da alma, de um peso morto, de um psicológico, psicótico lastro do espírito, da langorosa alma, da materialidade da larva, da lesma, da gosma, da goma, dos líquidos pegajosos, espermáticos e seminais, grude, esparadrapo, óleo podre.

“ADEMIR DA GUIA”:
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

Não há vitória, mas “não-perda” do jogo. Falta Romário. Mesmo quando joga mal, sua presença ameaça o adversário. Não foi à Copa porque tem voz, é sujeito, não objeto. Todo sujeito é suspeito. Opina, critica. Brasileiro não pode, não está acostumado à fala, à liberdade, à democracia. Mas à submissão, ao mandonismo, ao autoritarismo. O “povo” quis Romário? Scolari não quis. O povo? Aqui? Democracia? O Brasil das Capitanias Hereditárias vive agora uma onda de denúncias contra os representantes do povo.
Em outro poema, diz Cabral no “TORCEDOR DO AMÉRICA F.C.”:

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.

Cabral lembra os Ronaldos europeus:

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

A bola, a vida, a alma. As eleições. Não inimiga, mas amante. A bola de futebol, malícia, manha, reações perigosas, não se usa sem risco. Como a nudez da mulher, ou do touro. Cabral, nordestino, machista. Jogador toureiro, amansa a bola. Futebol machista. O time perdedor não corta o afiado. Não o Jogador, o Clube, o time, mas a bola. O orbe. O mundo. O calo da vitória. O calo do verbo calar. A bola algo que rola, rebola, imprevista, perigosa, nervosa, telegrama, aerograma, míssil, ogiva nuclear, torpedo:

Não é a bola alguma carta
que se levar de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.

É só reler: BRASIL 4 X ARGENTINA O (Guayaquil 1981)

Quebraram a chave da gaiola
e os quadros-negros da escola.
Rebentaram enfim as grades
que os prendiam todas as tardes.
Nos fugitivos, é a surpresa,
vendo que tomaram-se as rédeas
(dos técnicos mudos, mas surpresos,
brancos, no banco, com medo).
Estão presos os da outra gaiola,
que não souberam abrir a porta:
ou não o puderam, contra o jogo
dos que estavam de fora, soltos,
De certo também são capazes
de idênticas libertinagens
uma vez soltos, porém como
se liberar daquele tronco
em que os aprisionaram os táticos
argentinos, também gramáticos.
E enquanto os fugitivos seguem
com a soltura, a sem lei que os regem,
nos bancos é uma a indignação:
dos que vão vencendo e dos que não:
“Voltamos ao futebol de ontem?
Voltou a ser um jogo dos onze?
Voltou a ser jogar de pião?
Chegou até cá a subversão?
Como é possível haver xadrez?
Sem gramática, bispos, reis?”

Sem subversão. Culpa daqueles indiozinhos cambebas, que inventaram o futebol por volta de 1744.
Os Cambebas, entretanto, foram exterminados!

Um comentário:

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

VOCÊ POSTOU AQUI JOÃO CABRAL "com aritméticas de circo",
MEU AMIGO POETA QUE BOLA BORRACHA BRAVO
SABE ACREANIZAR