domingo, 29 de agosto de 2021

A CENTELHA DE UMA VIDA APULSO SEM DISFARCE ALGUM

 João Veras

 

A cena é inusitada. Manhã de sábado. Ontem. Uma sessão de cinema de um curta independente (o que quer dizer feito sem auxílio de dinheiro público e esquema comercial de distribuição) estrelado por um ator acreano, numa sala de cinema da rede Araújo no shopping Via Verde. Foi uma concessão rara da indústria. Também do filme que não é nenhuma distração senão um grande incômodo. A única coisa normal na cena, que durou 27 minutos – tempo do filme – é o público. Quase ninguém para a capacidade da sala (a menor delas). Quase ninguém das artes locais. Do cinema, nem pensar. Todos tão parcos. Ainda exíguos para fazer. Ainda escassos para consumir. Ainda minguados para resistir juntos. Tem sido este o estado de posição normalizado pela colonização cultural que nos tem colocado naquela condição pela qual o vício invencível é dar as costas ao semelhante enquanto se acotovela para beijar os pés do estranho, o colonizador.  Conheço bem esses lugares. O ano de 1500 não acabou.

Não vou perder tempo para o inusitado. Por que este sobre o qual me refiro ainda é daquele tipo que não passa em si de um evento. Da exceção. Do olhar exótico que passa. Enquanto o seu contrário, o mercado de circulação de filmes continuará centrado num produto alheio às nossas realidades, o que constrói e mantém nossas mentalidades na subalternidade política e estética etc. Lutemos para que este modelo de inusitado se acabe. Ele, em sua violência, terá fim. O melhor agora é visibilizar a sua vítima, isto é, a obra que estava ali gloriosa na sessão.

Centelha – roteiro, direção e montagem do cineasta carioca Renato Vallone – é um curta metragem gravado em Rio Branco e estrelado pelo ator acreano Cleber de Barros Moura, com participação de Karine Guimarães. É um filme belíssimo tanto quanto de um vigorosíssimo incômodo pela sua estética fílmica, pela sua substância política e escolhas éticas, tudo ainda tão inusual não só para o espaço do shopping, também para o construto mental político pelo qual temos sido tão bem educados para se comportar diante do poder sobre as coisas do nosso mundo. 

O filme nos seus 27 minutos é grandioso. Aqui me limitarei a um ou dois aspectos, entre os inumeráveis que carrega. É só para dar uma pequena aproximação pela lente de quem se sentiu profundamente tocado, atravessado.

O filme é uma batalha técnica que é política. A do movimento imagético na sua contenda para nos fazer ver o tanto que está frente aos nossos olhos enquanto “preferimos” a cegueira. É uma luta de quem busca tornar o micro em macro. O invisível em visível. Daí a escolha técnica do enquadramento. Tudo é zoom nele. Tudo é na cara. Ampliado, tudo transborda na tela de tão perto. A câmera ali como se quisesse engolir a imagem. E engole. Por onde não é possível deixar de ver as vísceras da condição humana. Uma peleja do cineasta atrás de tornar visível, física e abstratamente, a condição de miserabilidade concreta e da dignidade existencial de um homem velho abandonado. O infeliz, como é o país colonizado há mais de 500 anos.

Centelha é a ficção no corpo da realidade e vice-versa. É o mapa da dor às escâncaras.

Onde está a distinção ali? O personagem é um ser humano na sua casa, na sua condição, na sua vida, nos seus sonhos, nas suas visões, nas suas necessidades, nas suas relações, nos seus delírios. O ator é o seu animal de estimação. O ator não nega a sua realidade. Não tem como. E o cinema se faz nela. Na realidade enquanto tal. O ator é um artista imperceptível na sua comunidade. Daí ser preciso virar ficção para ser real.  A figura do grande imerecido desvalor cultural.

Cleber é um gigante que ninguém consegue ver. Um fadigado numa sociedade de tantos. Cada um na sua sólida e desvalida solidão. O artista é um ser impossível em lugares como o Acre, onde a pedagogia da indiferença impera. Mas é o ser humano o personagem que se anuncia diante da câmera. E ele se revela para também metaforizar o símbolo da vida indigna.

É a arte e o povo num só corpo. Tudo está em um. Sem ambivalência. É quando o filme vence.  Por isso ele é um delírio de tanta realidade. A luta é a bela mulher insólita vista pelo homem em estado de re-existência. A luta é o outro que aparece para te ver. A luta é o cinema. A luta é feminina. É o desabandono, mesmo como faísca que clareia num átimo de tempo e apaga. É o Brasil que para ser visto só muito zoom lambuzado na cara. A luta é Cleber. Essa vida como a arte apulso. É o filme de Renato Vallone.

Vale muito a pena assistir. É uma experiência rara. E eu disse muito pouco a respeito.

 

João Veras, 29.08.21

João Veras é músico, poeta e produtor cultural. Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Autor, entre outros, de "Seringalidade: o Estado da Colonialidade na Amazônia e os Condenados da Floresta" (Valer, 2017) e "Audiência dos mortos: sobre colonialismo cultural no Acre" (Nepan, 2020) .

 

Mais sobre CENTELHA de Renato Vallone:

https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2021/08/29/pela-1a-vez-filme-independente-feito-no-acre-e-exibido-em-sala-comercial-de-cinema-de-shopping-da-capital.ghtml 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Memórias de barrancos: a poesia comprometida de Isaac Melo

 Zemaria Pinto

 

Há exatos 90 anos, Ezra Pound publicou a primeira versão da sua teoria poética, definitivamente sistematizada três anos depois. Numa palestra para entendidos em poesia, esse tópico frasal causaria comoção: 90 anos?!… Certamente, começariam a abandonar o recinto ou a desligar o aplicativo. Acrescento ainda, para os que não sabem, que Pound (1885-1972), norte-americano, era assumidamente fascista, tendo vivido na Itália de Mussolini, de 1925 a 1945, quando foi capturado pela Resistência e entregue às forças de seu país natal, sendo preso, torturado e declarado “doente mental perigoso”, ficando isolado nessa condição por doze anos. Uma teoria de 90 anos, formulada por um fascista, então? Sim. E ainda não ultrapassada. Se você – minha cara leitora, meu caro leitor – estivesse naquela hipotética sala, continuaria me ouvindo? Se positivo, sigamos adiante. Se não, obrigado pela atenção e até outra. Só não me cancele...

A teoria de Pound resume-se ao seguinte: há três modalidades de poesia; aquela em que predominam propriedades musicais, baseadas em características próprias da poesia, como metrificação, estrofação, rima, assonância, aliteração, anáfora etc.; uma segunda, onde as imagens são construídas a partir de figuras de linguagem consagradas na retórica, como metáfora, metonímia, alegoria, sinestesia, hipálage etc.; e, por fim, aquela em que predominam as ideias, a reflexão, sem prescindir das propriedades musicais e imagéticas – Pound dizia que esta é “a dança do intelecto entre as palavras”. Respectivamente, o querido leitor, a querida leitora, irão encontrar essas definições com os nomes gregos que Pound preferia: melopeia, fanopeia e logopeia.

Memórias de barrancos, de Isaac Melo, é um livro singular. Sua primeira qualidade é fugir de modismos e hermetismos inócuos, construindo uma poesia que tem cores e odores próprios. Uma poesia sensorial, que quase pode ser tocada. E que os idiotas – os daqui e os de lá – chamariam de regionalismo, como se isso fosse um crime de lesa-literatura e não um atributo para além do meramente acessório, o que leva à segunda qualidade do livro: sua universalidade. Calcada no contemporâneo, longe de se datar, colabora com a compreensão do que acontece para além do noticiário ordinário, atrelado a facções e a discursos que entendem a obra de arte apenas na sua superfície visível a olho nu com a mente em suspensão.

Alguns clichês descartáveis, um ou outro adjetivo supérfluo e até mesmo inevitáveis “gralhas”, podem ser corrigidos (ou não) numa próxima edição – o que me lembra um ensinamento poundiano: poesia é condensação, poesia é medula. Só assim, o poeta pode alcançar o máximo da sua expressão, atingindo a “linguagem carregada de significado até o mais alto grau possível” – outra sacada de Pound. Formado em filosofia, o autor orienta sua poesia a repensar a condição humana – e como ele está em Rio Branco ou Tarauacá, não em São Paulo ou no Paraná, sua poesia repensa o seu universo próximo – não apenas a gente, mas os mitos que fundaram essa gente.

Os oitenta e quatro poemas que compõem o livro não estão divididos por temas, embora obedeçam a uma organização lógica – que, às vezes, é negada. Mas isso não tem muita importância, embora fosse desejável. O poema que abre o livro – “Da Amazônia” – tem uma clara função de “poética”, na medida em que anuncia para o leitor o que o espera na leitura dos poemas consequentes:

 

escrevo da Amazônia (…)

escrevo com estes barrancos (…)

escrevo com estes igarapés podres (…)

 

São os versos que iniciam as três primeiras de dez estrofes. “Corpos rebeldes / que sucumbem nas periferias”; “rios assoreados”, onde faltam peixes “e se envenenam as águas”; a violência das queimadas; o sangue de indígenas, posseiros e quilombolas; matas que viram pastos, pastos que viram cemitérios.

 

escrevo também com as mãos calejadas

deste povo sofrido (…)

às vezes atadas, às vezes em oração

mãos em luta ou em luto

mas jamais em vão

 

O segundo poema, que dá título à coletânea, “Memórias de barrancos”, tem uma construção inusual, nas suas seis páginas e meia, misturando versos curtos e versos longos, que podem ser, equivocadamente, tomados como prosa, mas são poesia de alta tensão, lembrando um remoto Roberto Piva ou ainda um não menos longínquo José Agripino de Paula. E aqui, sigo o ensinamento soberano de Pound: nenhum poeta está sozinho no mundo. É preciso comparar e descobrir conexões, ainda que não intencionais. O poema de Isaac Melo tem um tom de manifesto, procura vínculos, links, nexos:

 

coração de ouricuri, dentes de coco jarina

olhos de sementes de mulungu

pele de barranco, cabelos pretos de igapós

mãos de sapupemas, dedos de cipós (…)

kaxinawá yawanawá katukina ashaninka (…)

 

e foi assim, sem brasão nem nobiliarquia, às margens do rio tarawaká, que tudo se deu. (…)

aí chamaram o delegado que chamou o pastor que chamou o padre que chamou o bispo que chamou a corte celestial do supremo (…)

 

A ironia de Isaac Melo tange a crueldade, quando trata da poesia como mero instrumento de ascensão social:

 

poesia, poesia sempre, não a guardada em potinhos, daquelas que os poetas lavram e levam para a admiração das confreiras e confrades sempre casta e castrada nunca cáustica.

 

Aliás, poesia cáustica não cabe na mediocridade de grupinhos de mensagens.

A aproximação com a poesia de Thiago de Mello é explícita: “faz escuro e eu me espanto”. Tal como em Thiago, a poesia de Isaac é comprometida – com a vida. “Memórias de barrancos” corre o risco mesmo de datar-se: quem haverá de lembrar-se, daqui a vinte, trinta anos, do sentido destas palavras de maldição?

 

chores por quem trocou o cristo pelas figuras caricatas dos messias de armas nas mãos com seus apóstolos da ignorância e da ignomínia do medo e da morte

 

Os dois poemas citados dão o tom geral do livro, mas não esgotam o prazer de novas descobertas, surpreendendo o leitor com subtextos diversos. Mulheres fortes: “A bisavó”, “Chica”, “Maria Mulher”, que “trabalhava o dia inteiro / e à noite ainda apanhava do companheiro”. Futebol-ópio: abordado no poema-título, retorna em “Seleção”, “e as almas exangues / já não aguentam gritar / tantos gols de sangue”. A poesia do silêncio: “Intervalo”, “O pó”, “A sombra”, “Epifania”, “No escuro”. A delicadeza dos tercetos, nas páginas 57 a 68. Imagens de altíssima densidade poética, como “o vento, pendurado no varal” (“Porque é domingo”); “o desossar das horas” (“Prisioneiros”); “sob o escarro do tempo” (“A existência”); “as vísceras das horas” (“A sombra”); “o sangue das horas lentas” (“Momento”), um improvável diálogo com Raimundo Monteiro, como improvável é o diálogo com Anibal Beça em “Terna colheita”; “a vida tem o comprimento / de um banzeiro” (“Banzeiro”); “a lembrança em mim é água de repiquete” (“Memorial lírico da infância”).

Sem descuidar do ritmo, da melodia e da harmonia, a principal sustentação das ideias em Memórias de barrancos são mesmo as imagens. O neologismo “servilização”, por exemplo, do poema “Coração doador”, é em si mesmo uma ideia que reflete uma imagem de servilidade, opondo-se à civilidade – esta, tão transparente que prescindimos de imagem para entendê-la. O poema “Uma tarde na Amazônia” tem um desfecho surrealista:

 

acordo-me, a rede é agora um poema

meu corpo, um rio de palavras

leio-me na nudez de minhas águas

 

E lembrando que, afinal, ninguém está sozinho, o poema “Epitáfio” é um papo descontraído com uma das “Polonaises” de Leminski: “um dia / a gente ia ser homero / a obra nada menos que uma ilíada”.[2] Intertextos.

A ironia, figura presente na maior parte dos poemas de Isaac Melo, pode ser ilustrada, sem necessidade de maiores explicações, no poema “Depois do último”, que transcrevo na íntegra:

 

depois do último

indígena sucumbir

pela bala envenenada

do capital

vão erguer

em plena capital

em bronze maciço

um grande memorial

para eternizar

e ensinar

às gerações futuras

o amor

e o valor

das culturas

 

Se “os artistas são as antenas da raça”, como acreditava Ezra Pound, Isaac Melo, de seu posto, às margens do Tarawaká plantado, capta, processa e retransmite os sinais da servilização, fazendo o seu trabalho de metamorfose – mudando a banalidade em linguagem – para que um dia cheguemos ao estágio da civilização. Ou não.

___________________

Zemaria Pinto é escritor, mestre em Estudos Literários, e tem mais de vinte livros publicados em gêneros diversos.  É membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Edita, ainda, os blogs: palavradofingidor.blogspot.com e poesianaalcova.blogspot.com

 

Nota:

Texto originalmente publicado no site: www.amazonamazonia.com.br

https://www.amazonamazonia.com.br/2021/08/24/memorias-de-barrancos-a-poesia-comprometida-de-isaac-melo/



[1] How to read (1931) e ABC of reading (1934), encontráveis em português com os títulos Como ler (in A arte da poesia: Cultrix, 1976) e ABC da literatura (Cultrix, 1977). Os anos referem-se às minhas edições.

[2] Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 50.

domingo, 22 de agosto de 2021

POR QUEM OS POETAS GRITAM: uma leitura de “Bastante aos gritos” de Cesar Garcia Lima

Isaac Melo


A leitura, escreveu Sartre em “Que é a literatura?”, é um sonho livre.

Já que os verdadeiros sonhos sempre impulsionam à luta, então, permitam-me sonhar um pouco em torno de “Bastante aos gritos” (7Letras, 2021), o quarto livro de poesia de Cesar Garcia Lima, professor e poeta acreano radicado no Rio de Janeiro.

Tomei contato com a poesia do Cesar quando, numa das visitas à Livraria Paim, em Rio Branco-AC, deparei-me com um exemplar de “Águas desnecessárias”, publicado nos idos de 1997, pela Nankin Editorial.

Depois, virtualmente, por meio das redes sociais, nos encontramos. O tempo passou, e, finalmente, nos deparamos presencialmente, e estabelecemos, desde então, uma amizade, digamos, à distância.

Após “Águas desnecessárias”, vieram “Este livro não é um objeto” (2006), um livro de poemas-postais; mais tarde, “Trópico de papel” (2019); e, finalmente, neste fatídico 2021, “Bastante aos gritos”. O leitor observa, desde os títulos, o poeta em sua transgressão, na subversão de uma lógica utilitarista em afirmação de valores “desnecessários”, como a arte e a poesia.

A primeira imagem que me veio, a partir do título, “Bastante aos gritos”, foi a cena final de “Teorema” (1968), de Pier Paolo Pasolini, quando Paolo, personagem de Massimo Girotti, depois de desnudar-se em plena estação ferroviária de Milão, em seguida aparece numa região quase vulcânica, inóspita, desértica, e corre de braços abertos “bastante aos gritos”, naquela que é, para mim, uma das cenas mais impactantes do cinema.

Aquele grito é um grito que jamais deixa de ecoar. Porque é um grito que emerge da profundidade, do desalento, do desespero, do desamparo, o grito da consciência de si e do mundo. Mas, quem sabe, também, o grito de libertação.

“Bastante aos gritos” surge num momento crítico da história mundial e, conturbado e obscuro, no cenário brasileiro. O livro de Cesar é contundente, neste sentido. Seu conteúdo é um conteúdo eminentemente político, mas vazado numa escrita por excelência poética. Pois, como escreveu Edgar Morin, em “Amor, poesia, sabedoria”, “o poeta tem uma competência total, multidimensional, que diz respeito à humanidade e à política, mas não tem que se deixar subjugar pela organização política. A mensagem política do poeta é de ultrapassar a política.” Sim, é isso que, magistralmente, Cesar Garcia Lima faz. O poeta está constantemente falando sobre política sem, no entanto, mencioná-la explicitamente um só instante.

O livro, que traz uma belíssima capa com obra do artista plástico Danilo de S’Acre, com todo o esmero editorial da 7Letras, compõe-se de cinco blocos: agora interminável, nome aos boys, personas, as cidades da memória e autorretrato em fuga. Todos reveladores da cartografia ontopoética do autor.

No “agora interminável”, por exemplo, os poemas trazem uma certa angústia e apreensão, pelas incertezas e intranquilidades geradas pelo contexto político e social do momento.

 

Respire, amigo.

Esqueça que mora no corpo

e descanse

a alma intranquila. p. 15

 

Em vez de fugir, o poeta convida para assumir o presente: “Conversemos sobre o agora. / Deixe o medo perder / a força” (p. 15). Pois “a ajuda não tarda”.

No poema “desagora”, temos uma espécie de diagnóstico da nossa realidade brasileira. O poeta, com certa amargura, constata o esmorecimento das lutas ou a falta de sentido que elas hoje têm, frente àqueles que, rendidos às telas, deixaram-se levar pela boa-nova prometida por certos salvadores ocultos.

Qual o sentido das lutas de outrora num presente que opta por repetir as mesmas tragédias do passado? Os que venceram, afinal acabaram também mortos ou encerrados em seus “apartamentos limpos”. E o presente os mira com certo desdém, a anular todas as suas conquistas:

 

Ninguém comemora

a queda da Bastilha

na cidade decaída:

os que venceram se foram

ou estão abrigados

em seus apartamentos limpos. (p. 16)

 

O poeta não está aí simplesmente para demonstrar, a partir de seus talentos, ser um “poeta nato”, mas, sim, expressar, por meio da poesia e da arte, o seu descontentamento, a sua revolta. E se o poeta está “mais calado do que de costume”, não é por covardia. Mesmo quem cala, o seu calar ainda é fala. Tal como o silêncio de Cristo frente a Pilatos, é preciso “perceber a eloquência de quem cala”, pois o silêncio, no momento oportuno, é mais eloquente que qualquer discurso. 

 

Estou calado até quando discurso

porque minha revolta é tanta

que transbordou a margem da cidade

em busca da sua decadência.

Celebro os mortos já que

os vivos são sombras. (p. 17)

 

Em “Bastante aos gritos”, não escapa ao poeta a problemática dos aplicativos de comida e a precarização das condições de trabalho dos entregadores. Quantos Paulos Robertos atualizam e dão vida ao sistema de escravidão contemporâneo, sem as mínimas garantias trabalhistas, laborando, tantas vezes, por uma remuneração que mal basta à sua própria alimentação?!

Ainda recorrendo a Sartre, o filósofo existencialista afirma que “a leitura é um pacto de generosidade entre o autor e o leitor; cada um confia no outro tanto quanto exige de si mesmo.” Neste sentido, ler é ato de cumplicidade do leitor para com o autor. E mesmo aquele se apresenta imprescindível para este. Todavia, o autor não tem qualquer domínio sobre o leitor, uma vez que o livro está em suas mãos.

 

Não pergunto sobre o livro

certamente não lido

com dedicatória e tudo

meu livro não é meu

e o não leitor tampouco o quer

essa lírica miúda

chegada a santos

poética da iniciação

com atalhos de descidas.

Não tenho pena dele

inocentes não leem

publicam. (p. 66)

 

A última parte de seu livro, Cesar o intitulou “Autorretrato em fuga”. Talvez seja a parte mais filosófica, mais densa, da obra, porque trata do sentido último do ser e da existência, o poeta frente a si mesmo, entre o “massacre do tempo” e “o ponto final”. O poeta frente às perguntas inevitáveis e respostas imponderáveis, diante da constatação de que, um dia, “tudo desmorona”.

 

Ter o espírito repleto de navios

sonhos obsoletos

alma dispersa

corpo de brumas

a respiração à medida

do medo

o limite o que insiste

sensibilidade barroca

de atropelos

o outro a sombra

o não percebo

o horror o espelho

o inimigo íntimo número um

na luta de perdedores

do desejo

a caricatura do receio

o massacre do tempo

o ponto final (p. 98)

 

“Bastante aos gritos” é também essa desvelação de si e a revelação do outro. Não se perde em devaneios solipsistas. Mas encontra toda a sua potência na alteridade, no encontro com o outro, com suas dores, angústias e esperanças. O pai, a mãe, a família, os amigos. Toda esta matéria poética é a matéria de vida na vida mesmo do poeta.

 

Quando Lady Di morreu

eu estava em retiro

num ashram na Califórnia

e soube ao telefonar para a família

do acidente fatídico em Paris.

Sem saber o que fazer,

fui à sala de leitura

e perguntei ao monge mais próximo

se ele sabia que Lady Di tinha morrido.

Ele me disse:

– Morrem pessoas todos os dias.

Eu fiquei tão chocado

que não consegui dizer mais nada.

Ontem

vi no noticiário

milhares de pessoas mortas no Nepal

e não senti nada.

Hoje

soube que um conhecido

morreu

depois de uma longa doença.

Fiquei tão chocado

que não consigo parar de pensar

nos mortos do Nepal. (p. 101)

 

Por fim, cabe-nos, ainda, indagar. Que grito é este? Por que gritamos? Ou por quem gritamos ou deixamos de gritar? Cesar Garcia Lima, neste tempo de retrocessos, de ódio, de ignorância, de mentira, de tantas violências, nos oferece o seu grito de revolta, de indignação, de protesto, que é, no fundo, o grito de todos nós, o grito daqueles que cultivam a estante, o saber, a beleza contra toda forma de prepotência e violência que atentam contra a justiça e a dignidade da vida no planeta.

“Bastante aos gritos”, embora se leia, com certo travo na garganta, nos possibilita, no entanto, a fazer do grito a possibilidade de um canto de amor e de esperança. Pois como escreveu, em “A literatura em perigo”, Tzvetan Todorov: “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro.” “Bastante aos gritos” é, portanto, este convite, que ora se nos apresenta como necessário e irrecusável.

 

 

Referências

LIMA, Cesar Garcia. Bastante aos gritos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021.

MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1993.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.