segunda-feira, 29 de agosto de 2011

MENINO DE SERINGAL - Isaac Melo

                                                                             Menino acordado pro mundo
                                                                             no vasto seringal do Acre
                                                                             ... menino de seringal
                                                                             do Acre não tão acre
                                                                             um pouco doce somente
                                                                             da doçura da infância.

                                                                                             Leandro Tocantins

No dia em que descobri a literatura, eu descobri o mundo. Causaram-me uma profunda impressão tais palavras. Ouvi-as, certa noite, da boca do premiado autor baiano Antônio Torres, num encontro literário, em Curitiba. Adotei-as como se fossem minhas, pois abarcam o sentido que a literatura também exerce em minha vida. Torres fora menino no sertão, em contrapartida, trago a sina de menino de seringal. Aquele sonhava com os verdes mares de que tanto falavam, este com o que havia além das verdes matas que o cercavam.

O seringal. A definição dicionarizada de seringal não me satisfaz. Tampouco a versão romantizada propalada por aí. Assalta-me um universo de significados e símbolos, de memórias e saudades, de angústias e alegrias quando ouço a palavra seringal. Aliás, é difícil fazer alguém não amazônico compreender a vivência em um seringal, sobretudo, no que se refere aos costumes e ao linguajar. Ainda mais porque os seringais de hoje não são a mesma coisa dos seringais de antanho.

Desenho de Percy Lau.
A história. Iludidos ou acossados pela seca, os primeiros atraídos aos seringais, majoritariamente nordestinos, depois de resistir aos porões dos “navios negreiros” amazônicos, eram vomitados em algum barracão, uma casa relativamente confortável, espécie de representante da Casa Grande por essas bandas, onde inconteste reinava o coronel (de barranco). Daí eram empurrados às “colocações” e “centros”. O sonho da riqueza fácil, sob o símbolo da árvore que dava dinheiro, convertia-se em pesadelo. Para a maioria foi assim. Ressalte-se, no entanto, que alguns seringueiros realmente enriqueceram. Eram os chamados “ressuscitados”, pois haviam rompido o túmulo verde que os encerravam, e iam dar o ar da graça nos cabarés, de cocottes importadas, de Belém e Manaus, ostentando, nos dedos, anéis de ouro com pedras preciosas, degustando os mais finos e caros champanhes e fumando charutos enrolados em cédulas de dinheiro. Verdade ou lenda, os que se enveredaram por tal caminho (re)encontraram a falência. Novamente tiveram que se enterrar na floresta. Não mais “ressuscitaram”.

Desenho de Percy Lau.
A outros nunca foi dada oportunidade análoga. Encerrados em alguma “colocação” ou “centro”, a léguas de distância do barracão, que ficava às margens do rio, dali, às vezes, só retornavam quando outros o traziam numa rede, atada a uma vara, acometido por alguma moléstia tropical ou pela peçonha de algum ofídio. Se havia chegado com a esperança de acumular alguma fortuna e, quem sabe, mandar buscar a noiva ou a família que ficara no sertão, por fim, seu único desejo era apenas o de sair com vida, livrar-se das garras tirânicas de seus patrões. Mais uma vez, ressalte-se, nem todos os patrões foram maus e nem todo seringueiro foi vítima. A história está muito além de vilões e mocinhos, como nos fora apregoado pela mentalidade europeia mal cristianizada. O fato é que os primeiros anos não foram fáceis. Enriqueceram poucos, empobreceram muitos. Tal verdade não pode ser olvidada, para que a realidade de opressão e injustiça de outrora não se perpetue no presente.

O lugar. Sumaré. Assim se chamava o seringal em que vim à luz. Os tempos eram outros. Não era mais o seringal dos ‘impiedosos’ patrões. Meus pais, com muito trabalho, haviam comprado parte de um seringal, às margens do Rio Tarauacá. À época, muitos seringalistas estavam deixando seus seringais. A borracha já não mais era capaz de sustentar qualquer espécie de luxo. Razão pela qual meus pais compraram tão vasta terra por um preço pequeno. Aí vivi toda minha infância, entre banhos de rio e galhos de goiabeiras.

O menino. Todos nascem despojados. Porém, ocorre-me pensar, às vezes, que os meninos de seringal nascem mais despojados ainda. Nascem longe de tudo e de todos. Talvez por isso Deus costuma, em noites de verão, vir, com eles, brincar de contar estrelas. Quando nasci não havia estrelas. Era dia. Todavia, segredou-me a laranjeira que, em seu galho, maviosamente, gorjeava o sabiá. Aliás, no seringal, a primeira coisa a que se aprende é ouvir. Ouvir a nutureza do coração e a natureza da criação. Quem for capaz de se enternecer com a beleza de uma noite na qual a lua se esparrama por sobre as matas e as águas, adornando-as de prata, ou se alegrar com uma arrevoada de andorinhas, ao entardecer, será sempre alguém capaz de um amor sublime, a si mesmo e aos outros. Deus muitas vezes comunica-se aos homens pela beleza. Beleza que, antes de ser algo apreendido pela inteligência, é dom do coração.

O encontro primordial. Nesse ambiente despojado, como o sol lá na curva do rio, morosamente fui despontando. A comida era farta. A cultura era pouca. Havia um rádio que trazia um pedaço do mundo, longínquo e estranho, para a nossa casa. Era só. O mais era ouvir as histórias dos mais velhos ou daqueles que conheciam outras plagas. Gente viajada é outra coisa. O que eu sabia era de baladeira, de mariscar, de andar de casco... A escola veio com o passar do tempo. E com o passar do tempo também se fora, para mim. De fato, não logrei resultados aí. Culpa das goiabas que me induziram a práticas ilícitas.

Meu irmão mais velho, esse sim, era o cara. Fora o primeiro a aprender a ler. Além do mais era um rapaz afeito ao trabalho, qualidade indispensável num seringal, e costumava também ser muito requisitado pelas moças. Ele tinha até “Gravador”, auto-reverso, daqueles quando ligava acendiam-se várias luzes coloridas. Um espetáculo. Ainda mais para quem só conhecia a luz monótona de lamparina. Aos domingos, Evaldo Freire, Adelino Nascimento, Frankito Lopes... desfiavam suas vozes, a encher nossa sala, circundada por gentes e cachorros. “Te amo cigana, ciganinha feiticeira...”.

Tudo isso, como as águas de um repiquete, passara. Uma coisa, no entanto, não passou. As coisas que têm o poder de tocar nossa alma nunca passam, nunca cessam. Ainda meu irmão primogênito. Quando começou a frequentar a escola ganhara um livro, didático. Ao abri-lo, para realizar alguma tarefa ou para ler alguma coisa à minha mãe, aquilo era um espetáculo para meus olhos. O livro, como que envolto num halo fulgurante, emitia um brilho de suas páginas, tal como aparece em certas películas de hoje. O menino ficava inebriado num misto de contentamento e inveja. Minha felicidade assemelhava-se com aquela felicidade clandestina da menina do conto de Clarice Lispector. Ansiava também por tê-lo só para mim. Em minha rede, dormir abraçado a ele. Porém, ansiava ainda mais, o querer decifrar os seus códices, a mim, ainda enigmáticos. Sempre pensei que aprender o segredo das palavras seria aprender um caminho que nos leva direto ao coração humano.

O desfecho. As circunstâncias nos levaram para a cidade, menos a meus pais e a meu irmão mais velho. As exigências do seringal os impediram de deixá-lo. No ambiente citadino, as coisas tomaram outros rumos. Viera a escola, o sobe-e-desce, o alfabeto, as palavras... Finalmente, a primeira leitura. Assim comecei a sair empolgado pelas ruas a ler tudo o que encontrava: nomes de lojas, placas, anúncios...

Com a leitura vieram os livros. Primeiramente os didáticos. Em casa não havia livros, muito menos jornais, que dirá revistas. Então, esquecia-me, por completo, imersos nas pequenas histórias que continham aqueles livros. Sim, agora também tinha o meu livro. Ainda fulgurante, ainda belo, como aquele do meu irmão, outrora. Aliás, numa tarde domingueira em que palavras caiam como chuva, segredou-me uma pipira vermelha que, nas terras do terceiro pensamento, há um céu que é uma grande biblioteca, em que anjos são livros que saem pelo mundo encantando meninos. Disse-me ainda que na terra há muitos desses anjos, só que ninguém os conhece, porque eles se escondem sob a forma de poetas, contistas, cronistas...

Minha vida, que não mudou nem inspirou ninguém, a conceberia, até aqui, sem muitas coisas. Porém, não a conceberia sem os livros. Não é pedantismo. Eis um rasgo do meu ser. O aprender a ler me fez nascer para o mundo enquanto o mundo nascia para mim. O que a geografia ou os homens tentaram esconder, os livros mo revelaram. Desde então comecei a levar o mundo em meus olhos. Menino de seringal tem dessas coisas... de noite vira estrela, de dia, passarinho.

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Nota I.: este texto é dedicado a Leila Jalul e R. Palazzo, pelas palavras ou pela amizade, eles também enriquecem os sonhos do menino de seringal.

Nota II.: sobretudo para aqueles que desejam explorar um pouco mais a temática dos seringais, no aspecto a que me referi, sugiro as seguintes bibliografias: Seringal – Miguel Ferrante; Terra Caída – José Potyguara; Terra Encharcada – Jarbas Passarinho; Coronel de Barranco – Cláudio de Araújo Lima; A Selva – Ferreira de Castro; Ressuscitados: romance do Purus – Raimundo Morais.

Nota III.: os versos do epíteto do texto foram retirados de: TOCANTINS, Leandro. Invenção da Floresta. Belém: CEJUP, 1993. p. 51. O desenho ilustrativo é do artista Appe, presente em: TOCANTINS, Leandro. Os olhos inocentes. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984. p. 21.

Nota IV.: "Menino de Seringal" também está publicado no Site Lima Coelho.

domingo, 28 de agosto de 2011

PODERIA SER PIOR? - Leila Jalul

Como na música, tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. É verdade! Tenho andado cheia de banzo com a vida que vou levando. Desde que me entendo por gente, com pesar, vejo que no mundo político, quase sem exceções, a roubalheira é o norte. É tanta fome e tanta sede, que os cabras acabam perdendo a noção do que é ter, pelo menos, um mínimo de dignidade. Poderia ser pior? É claro que poderia! Há os que roubam, mas fazem, dizia titio Maluf. Se o fazer justifica o roubar, o crime fica atenuado. Titio Maluf ainda está no palco firme e forte, como Jesus na hora da sua morte!Cabe revolta? Sim! Porém, de pelancas arriadas e libido diluída, acabo aceitando as regras. Fosse nos bons tempos de Juventude Estudantil Católica – JEC, quando estudava para ser uma valorosa comunista-cristã-libelúdica, teria rodado a havaiana, torcido a baiana e estrangulado a cubana. Pregaria a desobediência civil, a luta armada e a eliminação biológica dessa raça podre. O sangue jovem também tem poder, ora bolas!

Acontece que minha alma foi tecida com fios anárquicos. Quando me vejo assim, de “mala” cara, idealizo a formação de uma tropa de elite com o fim exclusivo de queimar políticos ladrões, famílias inteiras que se locupletam com o erário público e lobistas do inferno. De uma só vez, para não gastar palitos de fósforo! Onde já se viu usar o helicóptero que atende a população somente para ver se o pé de mulateiro da ilha está pegado?

Este mês foi terrível! As quedas sucessivas das pedras de dominós dos ministérios, a baixa de popularidade de Dilma (nada vertiginosa, como dizem) por conta de sua “falta” de sensibilidade para entender a gentalha peemedebista, peerrista, pecedobista, petebista e outros “istas” de aluguel que compõem a raia miúda, ou do baixo clero, como dizem.

Por falar em clero, para jogar ainda mais para baixo o meu estado lipotímico, li uma matéria sobre panos quentes que o atual chefe de Roma teria colocado para abafar crimes de padres e bispos pedófilos. Pode haver algo pior que isso? Aí o pião girou em volta da minha cabeça e nas rodas do meu coração, como também diz a música. Pensei comigo: o papa é o sumo pontífice ou acobertador de patifarias? Li, logo depois, que não foi assim e que não houve nenhum pecado por omissão. Que foi gravada uma tábua com penas pesadas para os pecadores de batina: comeu criancinha, expurgo, Já! Desterro já! No Alaska! Espero que a verdade esteja na última matéria.

Estava eu ainda bêbada com tanta cachaça ruim, quando o telefone tocou. Era Luzinete dando os ares de sua graça. Atendi de má vontade. Péssima vontade, para ser mais verdadeira.

- Fala, Luzinete! Diga tudo bem rapidinho que hoje não estou para conversa demorada!

- Vixe, Maria, até por telefone eu tenho medo da senhora! Calma!

- Se falar rápido, tudo bem...

- Lembra daquela velhinha, a Dona Dirce? Já falei dela. Contei que ela gostava de tomar cerveja escondendo-se dos filhos, tá se ligando? Pois bem, ela foi enterrada ontem.

- Sim, Luzinete, o que pode haver de espetacular nisso? A senhorinha Dirce tinha quase cem anos e sua morte era questão de mais dia, menos dia, não? Até questão de mais horas, menos horas, estou certa?

- Concordo. Só acho que não precisavam ter agido com tanta brutalidade com a tadinha. A raça vagabunda do filho se mantinha com o dinheirinho da aposentadoria dela. Olhe, pegaram uma seda roxa, rasgaram, e, no próprio corpo da defuntinha, costuraram uma mortalha que parecia as ventas da nora dela, uma pirangueira da pior qualidade que tem aqui. Costuraram, não: pregaram com grampeador, acredita? Dona Leila, fiquei com vontade de bater na cara da “zinha”. A biscate é tão da ralé que, meses atrás, foi presa por mostrar as partes íntimas para crianças de seis, sete anos, acredita em mim? Uma das crianças, de tão inocentinha, quando perguntada sobre o que viu, disse para a Glória Russa, do Conselho Tutelar que viu um bicho grandão, a senhora está entendendo? Gostou do nível?

- Luzinete, fica calma! Os mortos não ligam pra nada. Enterrados, com mortalhas fashions, ou não, o que isso pode impedir para que cheguem aos céus? Quanto às crianças, se avexe não! Por serem muito novinhas, as imagens se dissiparão e, em breve, não lembrarão mais do bicho grandão, me entende você? O certo é que ela foi punida e não deve repetir a safadeza.

- Vou procurar entender. Está certo, mas precisava ser assim, de forma tão bruta? Estou passada de indignação. Olhe, só por curiosidade, enquanto a raça vagabunda fingia que estava sentida, cheguei perto do caixão de Dona Dirce e, sem que notassem, passei a mão no corpo gelado e, não duvide de mim, a velhinha estava sem calcinha. Pode, Dona Leila?

- Até pode! Acho que sim! Sei lá, Luzinete! É só isso que tens para falar? Deixe a velhinha descansar em paz, está bem? Que falta poderá fazer uma calcinha? Falou tudo?

- Não. Ainda não! Tem mais uma coisinha, visse? Fui na casa que a senhora alugou para aquela gerente de banco. Ela queria que eu fizesse uma faxina, tá ligada? Posso contar?

- Pode. Fiquei curiosa. O que aconteceu?

- Minha santa, o marido da madame fez uma devassa nas suas plantas. Arrancou as palheiras, decepou aquela goiabeira linda, a de goiabas brancas e doces. Aquela sibipiruna da frente da casa, que dava florzinha amarela e sombreava seu quarto, o desgraçado capou até ficar só o toco. Nos canteiros da horta ele plantou grama e os três pés de maracujá, com mais de trezentos frutos já inchados, acredite, ele jogou no chão. O pé de laranja lima, sumiu do pedaço. No jardim, minha deusa, não há mais cicadáceas nem roseiras de enxertia. Da trepadeira perto do relógio da luz, de flores parecidas com brincos de princesa, não soube notícias e nem vi o rastro. Só existe capim seco e rés com o chão. E é só!

- Está de bom tamanho, Luzinete! Chega, né? Vou pensar sobre o caso. Só aluguei a casa e preciso entender a sanha desse maluco. Pelo visto ele não gosta de ver pau em pé! Vou procurar por ele.

Desligado o telefone, como num passe de mágica, todas as preocupações anteriores foram para as cucuias. Afinal, pode existir algo mais grave que uma velhinha como a Dona Dirce ser enterrada sem calcinhas? Pode existir algo mais nefasto do que saber que plantinhas floradas, roseiras de enxertia, trepadeiras de flores parecidas com as brincos de princesa e fruteiras produtivas tenham sido varridas do mapa por um inquilino maldito?

Restou-me lembrar Chico e a Roda Viva da vida, adaptada à minha nova realidade.

O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.

Luzinete fez uma faxina na minha alma aflita. Não mais me sinto uma folha na tempestade.

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Texto originalmente publicado em Lima Coelho.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

DE POETAS & FLORES

<< Três belos poemas de três grandes vozes da poesia brasileira. >>

PEQUENA FLOR
Cecília Meireles

Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil e preservar o perfume que aí dorme,

e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente,

e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,

e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida
- assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.

Cecília Meireles
in: Viagem (1939)

ANÍMICO
Adélia Prado

Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorinha conversa.

Adélia Prado
In: Bagagem (1975)

ESTÉTICA MÚSICA
Carlos Drummond de Andrade

A rosa no vaso
já não te seduz.
Rosa na roseira
é a que te alumbra.
Pendente do galho,
é muito mais rosa.
O vaso é violência
contra a rosa pura,
contra a forma pura,
dom da natureza
que não merecemos.

Carlos Drummond de Andrade
In: Poesia Errante (1988)

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Créditos fotos:
1 > arquivo pessoal; 2 > Flickr jluizsc; 3 > Flickr nicoren.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Série A POESIA ACREANA > LUÍSA LESSA

Dado interessante a se perceber, nas letras acreanas dessas últimas décadas, é a presença da mulher. Não uma presença qualquer. Trata-se de uma presença marcante e que, de certa forma, a meu ver, ressignificou o fazer literário acreano. Ressignificou, sobretudo, no aspecto, de trazer uma ótica, de ver e compreender o mundo, que não mais se orienta apenas pelo prisma paradigmático do homem. Para se ter uma ideia, das quarenta cadeiras da Academia Acreana de Letras, treze são ocupadas por mulheres, mais que o dobro se comparada à Academia Brasileira de Letras, com apenas quatro. Porém, é bom que se diga: não foi a sociedade que abriu espaço para a mulher, mas a mulher que abriu, construiu e galgou seu espaço na sociedade.

Assim, tantas são as cronistas, contistas, romancistas, poetas, pesquisadoras... de grande qualidade no atual cenário das letras acreanas. Entre elas não poderia deixar de mencionar, por exemplo, nomes como Fátima Almeida, Florentina Esteves, Leila Jalul, Robélia Fernandes, Margarete Edul Prado, Francis Mary, Íris Célia Zanini, Olinda Assmar, Glória Perez, Luísa Lessa... e inúmeras outras não menos importantes. Divas da palavra. Inteligentes. Qualificadas. Profissionais. Sensíveis. Mulheres.

A escritora e professora Luísa Galvão Lessa ilustra bem a inteligência acreana. É dona de um currículo acadêmico notável (e invejável), com Pós-Doutorado em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutorado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense; etc. Além do mais, integra duas Academias, a Brasileira de Filologia e a Acreana de Letras. Uma profissional competente, “uma estudiosa da vida, amante da ciência e dos bons textos”, como costuma se autodefinir.

Em seus textos consegue, de modo extraordinário e instigante, traduzir o saber acadêmico/científico numa linguagem mais acessível e próxima da realidade cotidiana, sem, no entanto, torná-lo algo simplista e banal. Luísa Lessa é uma apaixonada pela vida, pela linguagem, pela cultura. E daí nasce suas reflexões, que tem se concretizado em inúmeros artigos espalhados pelos mais diversos meios de comunicação social, pelos mais variados cantos do país.

Por ser exigente com o que escreve e crítica de seus próprios textos, Luísa Lessa tem nos legado textos bem escritos e fundamentados, reflexões pertinentes à atual conjuntura política, linguística, cultural, etc. Também tem se enveredado pelos bosques da poesia (embora se considere uma poetisa amadora), a lançar suas sementes poéticas. O chão é a vida; as sementes, o amor. Thomas Merton certa vez comentou que a poesia antes de ser deleite humano, é a arte do coração. É assim que olho para os versos de Luísa Lessa, pois “o que o amor pode fazer, o amor ousa tentar”, nos valendo das palavras do Romeu shakespeariano. Seus poemas cantam e evocam o amor, com seus encontros e desencontros.

Finalmente, numa última palavra de admiração e respeito, Luísa Lessa representa uma das inteligências mais sutis de nossas letras, a meu ver. Sabe o que diz e como diz, na palavra, no tom e na metáfora certa. Embora insista na autocrítica, na busca por um constante aperfeiçoar-se. Porém, como dissera o australiano Morris West “quer um vaso esteja inteiro ou quebrado, ele denunciará sempre o talento do ceramista que o moldou”.

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QUANDO UM AMOR VAI EMBORA
Luísa Lessa

Quando o amor decide partir
Geralmente ele não consegue fingir
Ele segue sem olhar para o lado
Não deixa nenhum recado
E sai pelo mundo angustiado.
Quando ele descobre que chegou o momento
Não se apega a nenhum lamento
Esquece as memórias e histórias.
Não há nada que consiga prendê-lo
Nenhuma lembrança é capaz de detê-lo
Nada que o faça resistir e ficar.
Quando acontece de o amor acabar
Ele não avisa se um dia vai voltar
Tão pouco confidencia se vai renascer
Quando ele termina faz a gente sofrer.
Quando o amor escorrega por entre os dedos
Como mistério e com muitos medos
Ele não escuta os soluços, os apelos
Isso é sinal que ele se atropelou
Se rompeu, se partiu, se quebrou.
Então, quando o amor vai embora
Deixa uma ferida sangrando no peito
E uma esperança de ser um dia refeito.
Mas quando o amor foge para lugares distantes
Ele se perde em momentos intrigantes
Entre palavras e frases decepcionantes
Dando sinal que ele ficou fraco
Frágil, rasgado em farrapo.
Amor verdadeiro possui qualidade
Equilíbrio e quantidade
Tem muita sinceridade
É passivo nos estragos, mas com consertos
Pode esmorecer, mas sabe sobreviver.
Quando o amor vai embora
Ele parte com o peso dos ombros
É capaz de mover e remover os escombros
Sabe que chegou sua hora.
Quando o amor vai embora
Alguma cicatriz ele deixou
Algum arrependimento ficou
Sinal de tormenta restou
Assim como a dor
E soluços de lamento.
Mas aí vem o tempo
Grande amigo e companheiro
E faz parecer que nada foi verdadeiro
Cada segundo, cada hora e dia
O tempo segue e passa
Cada ano que se vai
Carrega consigo as lembranças
Leva na mala a tristeza, a desconfiança
Faz nascer nova esperança
Quando tropeça em outro amor
Esquece que viveu intensa dor.
Quando um amor vai embora
Significa que chegou a hora
De esquecer e apagar o passado
Olhar para o lado da vida que vai recomeçar
E um novo amor encontrar.


CAMINHANTE DA VIDA
Luísa Lessa

Caminhei pelo mundo,
Andei, naveguei, mergulhei,
Mais tarde aqui despertei
Não sei, não lembro aonde cheguei…
Só sei que caminhei à procura
De alguém, um lugar seguro,
Um coração valente, maduro…
Perambulei pelas incertezas da vida,
Vivi um dia a cada instante,
Um instante a cada dia...
No viver do passado que sorria,
Muitas noites perdi,
Em meio aos amores sofri,
Por paixões, encantos e ternuras…
Vi o rosto amado pelas ruas
Que ainda não esqueci...
Por muitos lugares naveguei,
Vivi outras paixões e pereci…
Mas nada adiantou
Deleitar em outros braços
As noites foram pueris,
Sonhei por onde passei...
Em lugar algum te achei,
Sempre tudo foi comum
Os dias quietos, sombrios,
As noites desertas, frias,
Não te encontrei em lugar algum...
Vou dormir sem a poesia dos cantos,
Encantos viris,
Sonhar no porvir,
Dias de outono que hão de vir,
O tempo que vivo sem ti...


SONHO CONTIGO
Luísa Lessa

É assim que sonho, amor,
Na brancura dos lençóis,
Nas noites sem faróis
No amanhã de esplendor,
Nas noites de lua-cheia,
Nas correntezas dos arrebóis.

Te quero de dia, de noite,
No claro, no escuro,
Na vida todinha,
No perfume das flores,
No alvorecer da aurora,
Na plenitude da vida.

Sonho em te abraçar,
Sonho em te acariciar,
Sonho em te beijar,
Dia e noite aconchegar,
Viver a vida a rolar.

É sonho de muitos amores,
Com beijos de flores,
Carinho de carmim,
Vem para perto de mim,
Vem meu coração,
Que a vida possui muitas cores.

Ao pão não peço que me ensine,
Mas antes que não me faltes,
Em cada dia que passe,
Em cada minuto eu sei,
Que os sonhos embalam a vida,
De sonhos viverei.


O AMOR MAIOR DO MUNDO
Luísa Lessa

Ah, eu tenho o maior amor do mundo!
E isso não é privilégio, é humano, direito de todos.
O maior amor do mundo faz o coração vibrar e até chorar de vez em quando!
É extraordinariamente único e maravilhoso,
Transforma qualquer dia chuvoso na mais linda noite enluarada.
Ah!... ele é como as estrelas mais brilhantes do universo!
O amor maior do mundo deixa a gente com alma de criança,
Um jeito de adolescente, inocente e puro,
Jeito de adulto que encontrou um caminho...
Ele abre as portas do coração para o mundo..
É tão grande que dói, tira o sono, a mansidão,
Mas tão alegre que devolve, sempre, o riso.
O amor maior do mundo é imenso, porém tangível,
Incomparável, único, individual.
É amor que dura a vida inteira,
É amor sereno, macio, brilhante,
É vibrante com as cordas de um violão,
Aquece e afina as cordas do coração,
E toca a melodia mais bela, a mais doce canção,
A serenata do coração feliz.


PÉTALAS DO AMOR
Luísa Lessa

Pétalas de amor
Tu és o doce amor,
O bem mais precisoso,
O doce mais saboroso,
O petisco mais gostoso.

Tu és o rouxinol,
O canto do arrebol,
Da luz tu és o farol,
Da flor o nectar puro,
O amor mais maduro.

Tu és pétalas radiantes,
Pétalas brilhantes,
Tu és um diamante,
A brisa do horizonte,
És como água da fonte.


TU ÉS SABOR, LUZ E VIDA
Luísa Lessa

És o orvalho que nutre uma rosa
És a rosa que enfeita o jardim
És o jardim que ornamenta a campina
És o campo radioso sem fim
És um raio de luz no espaço sombroso
És a sombra suave e fiel
És o manto da cor de mel
És o abraço ardoroso.

És o sonho ideal da poesia
Que radia na rima do verso
Na candura do dia a dia
No segredo total do universo
És o berço a ninar o universo
És a face alegre da melodia
És degrau da eterna subida
És a vida de noite e de dia
És a vida em poesia.

És a ponte que jaz sobre o abismo
És a fonte dos mananciais
És o doce marulho das águas
És o fruto dos ninhos
És a primavera dos florais
És o forte que sustenta a cruz
És o norte a orientar caminhos.


TU ÉS ESPELHO DE VIDRO
Luísa Lessa

Tu és o sonho sonhado
A roseira branca e rosa
A brisa da manhã ditosa
Tu és oração, devoção
Amor, poesia, um achado.

Tu és o amanhã pra chegar
Um sonho pra encontrar
Um amor por despertar
Uma espera para chegar
Tu és uma esperança a alcançar.

Tu és o choro, o pranto, o grito
Por vezes o acalanto do gemido
N’outros tempos desencanto
Dor, tormento, sofrimento
Tu és sempre um coração partido.

Tu és a estrela que deseja um guia
O manto que carece de poesia
O choro de cada dia
Tu és o canto, a melodia
Tu és o eco da maresia.

Tu és o engano
O sonho perdido
O coração iludido
O pranto dolorido
Tu és um espelho de vidro.


MEU PRANTO DOÍDO
Luísa Lessa

Meu pranto doído
Meu coração partido
Meu desengano
Meu destrono
Meu ente perdido...

Sou da Amazônia
Sou poetisa amadora
Uma mulher sofredora
Um alguém em agonia
Porém sem covardia...
No momento estou chorando...
E nessa hora indago
Qual parte do mundo esqueci
Em quais oráculos me perdi
Em qual mundo hora viajo...

Qual parte do mundo esqueci
Quando teus tímpanos escutam o som
Dos meus soluços tristes
Os oráculos da terra selvagem
Os anseios da eterna viagem...
Busquei olhar as estrelas e ver algum sinal
Do ser sonhado, esperado, aguardado
A noite se fez manto
Cobriu meu pranto como acalanto
De longe a brisa abismal...


POR TI
Luísa Lessa

Por ti que um dia sonhei,
Por ti que um dia evitei,
Por ti que um dia sorri,
Por ti que um dia parti,
Por ti que hoje encontrei.

Saudade do perfume das rosas
Das lembranças ditosas
Das flores na janela
Das nuvens na passarela,
De um olhar no poente,
Dois corações sorridentes.

Hoje tu habitas a esfera,
A casta atmosfera,
A brisa, o vento, o horizonte,
Num rumor luxuriante,
Ao abrigo de luz que te transforma em tela.

Toco-te na face vibrante e macia,
Vejo-a como uma imagem que sacia,
O teu coração acesso como uma vela,
Que toca a melodia da aquarela.

Sei que não sou nada, não sou ninguém,
Mas fiz de ti poesia,
Lançei-te o pó de fada da alegria,
Para em ti repousar a minha alma além,
Depois, contigo dormir na magia.


ÉS TU O SONHO
Luísa Lessa

És o orvalho que nutre uma rosa
És a rosa que enfeita o jardim
És o jardim que ornamenta a campina
És o campo radioso se fim
És um raio de luz dentre a sombra
És a sombra suave e fiel
És o manto azulado do espaço
És o braço que me uni aos céus.

És o sonho ideal da poesia
Que radia na rima do verso
Na cantura do meu dia a dia
O segredo total do universo
És o berço que embala a criança que nasce
És a face alegre da alma remida
És degrau da eterna subida
És a vida meu Deus
És a vida.

És a ponte que jaz sobre o abismo
És a fonte dos mananciais
És o doce marulho das águas
No deserto és descanso de paz
Tú que reinas acima da morte
És o forte que sustenta a cruz
És o norte que orienta o filho.

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Nota: agradecemos a gentileza da autora por nos ceder a publicação de seus versos.

Para leitura de textos de Luísa Lessa recomendamos:
coluna do Jornal A Gazeta
coluna do site Gosto de ler

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

ODES DE RICARDO REIS

<<Ricardo Reis é um dos três heterônimos mais conhecidos de Fernando Pessoa. Ricardo Reis é um erudito que insiste na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. E retoma o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo.>>

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

27-9-1931

...


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

14-3-1933

...


Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.

27-12-1931

...


Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que amas, bebes ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!

16-3-1933

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PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 286, 289, 290.