[Cidade do interior à noite (Eduardo Cambuí Junior)] |
Num arremedo de império romano, uma igreja sem padre, um fórum para os tribunos, uma escola caindo aos pedaços, duas ruelas de tijolos, nenhum posto de saúde, hospital inexistente, um armazém desfalcado, um filho ilustre bem relacionado com os morubixabas da capital e, pimba! Nasce um município! Nasce, não é bem o termo: aborta-se um ente público, fadado ao fracasso. Assim está, sempre esteve e será Otaciano Pinté por muitos anos: fracassada!
As poucas melhorias que surgiram desde o fenomenal rito de passagem foram por imposições legais. As maiores “obras” executadas até o presente momento, reconheça-se, foram as aberturas de fossas negras com vasos sanitários e caixas de descarga, em substituição aos antigos cagadores de madeira. Não fosse a continuidade de contaminação do lençol freático, seria uma boa e higiênica ideia. Como está, nada mais é que um arranjo para desarranjos. As instalações da delegacia, do cartório, do destacamento militar, e da escola de segundo grau, que não passa de quatro salas de alfabetização de adultos e crianças, são precárias. Merenda escolar ainda é coisa rara e, quando há, é na base do feijão podre, frango podre, carne de sol com bichos tapurus, biscoitos molhados e farinha das boas. A farinha de Otaciano Pinté é das melhores da região. Pelo menos isso!
Quando da elevação a município, em 1996, o patriarca e até hoje prefeito, Otaviano Pinté, herdeiro político de Otaciano Pinté, sonhava alto. Por um mandato e por exigência da legislação eleitoral, o cargo foi ocupado por sua esposa Madalena. Só para inglês ver. Quem mandava era ele mesmo.
Refestelado em sua cadeira de vime, com pose de entronado, vislumbrava uma comunidade rica e feliz que honrasse a figura de seu falecido pai, que deu nome à cidade. Ele e os irmãos José Otávio e José Olavo Pinté faziam arquiteturas na areia. Uma fonte luminosa, um palacete imponente, uma praça infantil e outra para adultos e mais outras e outras edificações vistosas para os poderes legislativo, executivo e judiciário. Quase nada saiu do devaneio. A Câmara de Vereadores ainda está num velho barracão que pertence a José Otávio, agora revitalizado com as cores da bandeira do município. Azul e vermelho, como nas cruzadas, são os matizes do lábaro que vive pendurado e ostentado num cano de PVC na Praça dos Três Poderes Pintecianos.
O fórum, um pouco melhor alojado, ainda está sem a escultura cimentosa da Deusa Minerva no pátio de entrada. A casa onde morou o velho Otaciano Pinté continua locada para o pleno exercício da justiça por uma mensalidade exorbitante e incompatível com os valores regionais. O tal palacete, sede do governo, é a própria casa de Otaviano, recuperada e ampliada com dinheiro público. Tudo em família, pois! A velha escola Sarneyziana invade territórios, por mais longínquos que sejam.
Os irmãos Pinté, antes católicos por conveniência, resolveram fundar a própria igreja. Como homens de visão, assistiram e comprovaram pela TV com possantes antenas parabólicas que as “igrejas de crentes” eram um bom negócio. Num zás, lás e trás, com toras de madeiras extraídas da mata próxima, ergueram o templo da Igreja Cristo é Rei. José Olavo, o mais desocupado dos irmãos, foi “nomeado” pastor.
O primeiro culto da mais nova denominação foi em ritmo pop. Os funcionários da prefeitura, evidentemente, foram todos convocados para a grande manifestação de fé da comunidade pinteciana. Ai, ai, dos que não comparecessem! Muitas músicas goospel de Jamile, Régis Danezzi, Robson Monteiro e companhia limitada foram entoadas antes da celebração inaugural. O povo em geral, na marra, cooptou e compareceu.
Às vinte horas, depois do corte da fita inaugural, sobe ao púlpito o pastor José Olavo. Para honra e glória dele mesmo, sua roupa de apóstolo mais parecia com a beca dos gaúchos dos pampas em dias de churrasco fincado no solo e danças com as prendas nas noitadas frias do Rio Grande do Sul. No lugar do terno preto e gravata sóbria, vestia bombachas e camisa branca com um lenço vermelho atado em seu pescoço. Várias meninas da comunidade, devidamente ungidas, saltitavam pelo palco, vestidas com gazes e tules, como se fadinhas tontas fossem. A palavra foi pregada e o público aplaudiu. Qualquer pessoa que dissesse que o culto não foi bonito, estaria faltando com a verdade. E a verdade, a bem da verdade, é bem de Deus!
À época da inauguração do templo, soberana no IBOPE, Glória Perez ditava o conhecimento da cultura da Índia. Juliana Paes, Tony Ramos, Marcelo Farias e o veterano Lima Duarte, interpretavam os maiores e melhores da trama. Pois bem, no templo Cristo é Rei, de olhos fechados e em transe, homens e mulheres dançavam ao som da música de convite ao coito, da trilha sonora dos namorados, amantes e calientes Maya e seu maridão Raj, o hoje protagonista de 0 ASTRO, da não menos conceituada Janete Clair. Aproveitando a deixa e o sucesso, um compositor ungido e desconhecido deu nova versão à letra da música. Sem as fantasias e joias, tic? Só com os are babas, correto?
José Otávio animou-se com a renda da igreja do irmão. Medindo numérica e qualitativamente a clientela, verificou ser perfeitamente possível e estratégica a existência de outra denominação “cristã”.
Munido de toda a documentação exigida, em tempo recorde, deu entrada nos papéis para a criação da Igreja Deus é Pai. Noutro barracão com toras de madeira das cercanias ergueu o toldo do novo templo. A costureira Francismar Milhomen criou o uniforme branco com cinco estrelas azuis bordadas no peito. Um brinco de uniforme, inspirado na constelação do Cruzeiro do Sul. Para a festa inaugural, viajando de barco, veio de Belém um cantor de rock goospel, com cachê de dois mil contos.
A partir desse evento, não poderia ser diferente, a notícia carece de exatidão. Uns dizem que a igreja Cristo é Rei ficou desfalcada em cerca de trinta por cento. Os mais exagerados falaram em quarenta e até cinquenta por cento. Motivo mais que suficiente para que ocorresse a cisão. José Otávio e José Olavo apartaram as farinhas depois da péssima divisão das almas-reses.
Inconformado, José Olavo foi à luta. Vereador, tanto quanto José Otávio, a contenda foi parar na plenária da Câmara. Não mais se falavam informalmente. E partiram para o debate. Os podres dos edis eram do conhecimento público, porém tratados na penumbra do fuxico e da maledicência. Melhor, então, escancarar. Na sessão única da semana, galeria lotada, aconteceu a primeira dentre muitas e seguidas lavações de roupa suja.
- Vossa Excelência, vereador José Olavo, não passa de um enganador de almas. Está no Livro o aparecimento dos falsos profetas. Vossa Excelência é o pior deles. Anotei uns poucos e veja o que encontrei sobre o que representa Vossa Excelência:
“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus. Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má dar frutos bons. Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.
Mateus 7:15-20
Rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem dissensões e escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles. Porque os tais não servem a Cristo nosso Senhor, mas ao seu ventre; e com palavras suaves e lisonjas enganam os corações dos inocentes.
Romanos 16:17-18
E a besta foi presa, e com ela o falso profeta que fizera diante dela os sinais com que enganou os que receberam o sinal da besta e os que adoraram a sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre.
Apocalipse 19:20”
- E o que direi de Vossa Excelência, Vereador José Otávio? Que é um ladrão da pior espécie? Que engana viúvas e órfãos? Também está na sagrada escritura, fique Vossa Excelência sabendo! Qual o destino das cestas básicas de sua igreja? Quem varre sua casa e cozinha para sua família? Quantos salários Vossa Excelência paga para os fiéis que cuidam de suas propriedades?
Indiferentes às brigas dos pais, os primos Grace e Ruslander Pinté engataram um namorico às escondidas. Largaram as igrejas dos pais e caíram na gandaia da juventude moderna. Na base do faça amor, não faça guerra, em lugar de louvores e discursos, passaram a ouvir os batidões do funk e a bebericar uns drinks de Tang de tangerina com Caninha 51.
E aconteceu que, numa certa noite, foram apanhados num flagra sobre a cama de José Otávio, pai da menina Gracezinha. O fato elevou a ira do Pastor-Vereador. Não esperava que sua bonequinha de luxo, sua princesa adolescente tivesse sido desvirginada justo por seu sobrinho e filho do seu principal desafeto no âmbito familiar, religioso e político. A cena da sua menina nua e bêbada nos braços do canalha Ruslander Pinté foi deveras chocante. Até ensaiou uma síncope cardíaca, com direito a dor no peito, falta de ar, formigamento nas mãos e vômito.
“Como evitar o escândalo? Como posso impedir o vazamento desta trepada infame entre primos? Minha reputação e a de minha filha vão parar na lata do lixo! Meu Deus, o que fazer?” - repetia desesperadamente o desatinado pai.
Medicado e aconselhado pela esposa e pelo irmão José Otaviano, prefeito, patriarca e pensador da família, José Otávio deitou e dormiu sedado. Ficou acertado que dali mesmo o prefeito iria à casa de José Olavo relatar o acontecido e preparar os irmãos para uma conversa franca. Assim procedeu. Ruslander, que a tudo ouviu, revelou ao pai que Gracezinha não era mais virgem e que isso não tinha a menor importância. Ele tinha intenção de casar-se com ela e só não revelaram o namoro antes, por medo dos pais.
No dia seguinte, ainda cedo, José Olavo e José Otávio, no Gabinete do Prefeito-irmão mais velho, iniciaram o “debate” de reconciliação. Pela preservação do nome e honra da família, sem maiores questionamentos, acertaram a data de casamento dos filhos. José Olavo não estava nem um pouco preocupado com as vergonhas de José Otávio. É voz corrente dos homens da comunidade pinteciana que: “quem tem suas éguas soltas, que prendam, pois meus cavalos continuarão soltos”. Também não é raro ouvir dizer que “xereca não tem lombada e piroca não tem freio”.
Outros acertos foram consolidados na base do fio do bigode: por uma semana os cultos seriam suspensos e, passado esse prazo, a igreja Deus é Pai seria definitivamente fechada, para honra e glória de José Olavo que assistiu, pesaroso, a debandada de seus fiéis para a igreja do irmão, como se fosse uma verdadeira revoada de jacus.
Na câmara, na igreja e na cidade inteira, a mudança de comportamento dos irmãos foi notada. Encerradas as atividades da Deus é Pai a normalidade voltou à igreja Cristo é Rei. Por decisão e a pedido de José Otávio as reses desgarradas voltaram a colocar lenços vermelhos em volta dos pescoços, apagando de uma vez a constelação do Cruzeiro do Sul de suas vidas.
Um novo templo foi erguido por voluntários capitaneados pelo irmão de José Olavo, seu ex-detrator e irmão José Otávio. Na região não há outra igreja tão grandiosa e moderna. Foi nele – no templo -, que aconteceu o casamento de Ruslander e Gracezinha e é ele – o templo -, a última grande obra da cidade de Otaciano Pinté. O mais continua a passos de lesma, inclusive a instalação de fossas negras com vasos de louça e descarga, em substituição aos antigos cagadores de madeira. Na merenda escolar continuam sendo servidos alimentos estragados.
Em pesquisa recente realizada pelo Ibope local, na próxima eleição a chefe do Executivo Municipal, na cabeça, com previsão de setenta e cinco por cento dos votos válidos, será eleito o Pastor-Vereador José Olavo Pinté. Ruslander e Grace disputarão vagas na vereança, ambos com sucesso garantido. Para a honra e glória de quem?
É promessa do futuro prefeito aos irmãos de fé e correligionários a contratação de Luan Santana para abrilhantar a festa.
A escola Sarneyziana é eficiente. Os irmãos Pinté sabem disso!
NOTA DA AUTORA:
Tenho convicção de que a fé em Deus independe de igrejas, padres e pastores. Demonstro profundo respeito por todos os credos, apesar de não professar nenhum. Minha fé é solitária e sou feliz assim. Sentir asco pelos que enganam pessoas incautas, como é prática atual no país, honestamente, é o mínimo que posso sentir. São de uma enorme canalhice as mesclagens de fé com política. No meu entender, abrem caminhos para crimes hediondos. Tão hediondos quanto o abandono de idosos, o trabalho escravo, a pedofilia, o preconceito racial e todos os atos que atingem de morte ou mancham a dignidade de seres humanos indefesos ou em minoria.
Aos meus leitores, peço: entendam assim!
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Obs.: Texto publicado originalmente em Lima Coelho.
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