Profª. Inês Lacerda Araújo
Michel Foucault (1926-1984) deveria ter seguido a profissão de médico, era o desejo de seu pai, cirurgião. Seu irmão seguiu o apelo paterno, ao passo que Paul-Michel estudou filosofia e psicologia. Ganhamos nós com seus escritos contundentes, como que flechadas no coração do tempo presente, nas palavras de Habermas.
Ele reinventou noções que estavam desgastadas e bloqueavam uma visão mais acurada e crítica de nossa época. A história do tempo presente moveu seus interesses intelectuais e pessoais. Um a um conceitos foram derrubados e novamente constituídos à luz de novos intrumentos "metodológicos", a arqueologia do saber, a genealogia do poder e a análise das práticas de si. Renovou não só quanto à abordagem, também nos temas: loucura, medicina, práticas discursivas, o poder microfísico, a prisão, a sexualidade, a governamentalidade. Com enorme erudição, facilidade de assimilação, um arco de pensamento que percorre desde os clássicos gregos, latinos, escritos medievais e do renascimento, passa pelas as fontes documentais esquecidas, formas arquitetônicas, os mais importantes filósofos, cientistas notórios, mas também práticas menores e obscuras de médicos e psiquiatras que forjaram o moderno sujeito medicalizado e psiquiatrizado; e ainda, o nascimento de instituições como a prisão e seu papel na "sociedade disciplinar", as formas de governar, desde os gregos até a do neoliberalismo do século 20.
A reinvenção da história: considerar os acontecimentos como feixes de relações e não como ascenção dialética em direção a uma realização mais completa e final ao estilo de Hegel. Exemplo: a história dos saberes no ocidente é tecida em formações discursivas; nelas nascem conceitos como os de circulação das riquezas, vida, evolução, norma, sistema. As mutações na concepção de sujeito, o sujeito pensante (Descartes) que representa o mundo pela sua consciência, o sujeito transcendental de Kant que "formata" a realidade, o de Heidegger que é finito e morrerá - são mutações que mostram como o saber ocidental elege certos temas e constitui verdades. Não há a verdade, a filosofia faz e refaz perspectivas. A relação entre o que se diz, as palavras, e o que é dito, as coisas, produz mudanças no modo como se concebe o ser humano, como figura de saber.
A reinvenção do papel das instituições sociais: família, governo, Estado, direito, leis penais não formam um bloco sólido e permanente. Há profundas modificaçoes das instituições sociais que não se devem exclusivamente a estadistas, conquistas, guerras, grandes invenções, mas a necessidades estratégicas e ao surgimento de tecnologias, que servem para o controle das populações, e também para a circulação de bens e indivíduos. Podem assegurar, ainda, a saúde dos governados, o que inclui desde a separação e a exclusão de doenças contagiosas, até a vacinação e o controle de fronteiras. Outros exemplos: a invenção do fusil exigiu novo modo de formação dos exércitos; acomodar o comportamento humano para operar com máquinas, aprender em escolas, curar-se em hospitais, exigiu do corpo treino, saúde, disciplina; as intervenções do governo a partir de meados do século 18 na família visaram produzir uma população saudável, ou seja, mais produtiva e menos onerosa para o Estado. E isso até nossos dias.
A reinvenção da concepção de ser humano: houve profundas mudanças no modo como nos conduzimos criando e modificando comportamentos e concepções, as chamadas "práticas de si". Exemplo: estilos de vida antigos, como o dos gregos, eram pautados pela moderação, usufruindo de conselhos para um domínio ativo de seus desejos e prazeres, uma espécie de economia da vida que leva a satisfações e serve inclusive à educação de cidadãos e dos governantes. Em contraste, as práticas de si dos cristãos privilegiavam o ser governado por um tipo de poder pastoral, o que exigia submissão e, mais tarde, a confissão dos pecados. Já o homem moderno, é aquele que nasce de ciências "humanas", sempre que elas visam conhecer, dominar, interpretar, moldar, examinar o comportamento e a subjetividade, entregues ao saber de Outro. Este tem o poder de apaziguar, reconduzir os desejos, a sexualidade inclusive, para algo paradoxal: curar expondo que não há cura para o desejo.
Pinel libertou os insanos das correntes e os prendeu à objetividade do saber com pretensão à cura pela estrita disciplina asilar. |
Ainda assim, há espaço para o exercício de atos de liberdade: recusar ser moldado, o que inclui estilos de vida alternativos, mais prazerosos e menos sujeitados à vontade de saber e ao biopoder. Um exemplo: recusar a instituição do casamento no caso dos gays, pois casar implica laços jurídicos, uma dependência do dispositivo de aliança.
Cuidar de si, reinventar-se é melhor do que prender-se à ditadura do "você deve ser e agir assim" e do que a obrigação de ser "normal".
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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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