Thomas Mann
(1875-1955)
Em Meersburg, perto
de Constança, vivia em fins do século XV um rapaz decente, de nome Heinz
Klöpfgeissel, tanoeiro de profissão. Era bem-apessoado e gozava de boa saúde.
Tinha uma inclinação afetuosa, por sinal correspondida, por uma rapariga,
Bärbel, filha única de um sineiro viúvo. Queria casar-se com ela, mas o casal
de namorados esbarrou na oposição paterna, uma vez que Klöpfgeissel era um
pobretão e o sineiro exigia dele que primeiramente se arranjasse, obtendo o
grau de mestre em seu ofício. Antes não lhe daria a mão da filha. A afeição dos
dois jovens mostrava-se, no entanto, mais forte do que sua paciência, e
prematuramente ambos se tinham tornado homem e mulher. Pois, à noite, quando o
sineiro saía de casa para repicar seus sinos, Klöpfgeissel entrava pela janela
de Bärbel, e seus abraços faziam com que cada qual dos dois considerasse o
outro a criatura mais maravilhosa do mundo.
Assim andavam as
coisas, quando, um belo dia, o tanoeiro, em companhia de uns camaradas
pândegos, fez uma excursão a Constança, onde se realizava uma quermesse.
Passaram ali um dia alegre, de modo que de tardezinha se descomediram e
resolveram visitar o mulherio de um lupanar. Como a ideia não agradasse a
Klöpfgeissel, ele nem queria acompanhar os outros. Mas os companheiros,
zombando dele, trataram-no de maricas. Em seguida, passaram para insultuosos
escárnios, pondo em dúvida as qualidades de homem inteiro de Heinz e indagando
se ele talvez não se sentia à altura do que dele se esperava. Como Klöpfgeissel
não suportasse essas ironias e, assim como os demais, houvesse emborcado muito
canecos de forte cerveja preta, deixou-se convencer. Bazofiando que se conhecia
melhor do que eles, subiu com o resto da turma pela escada do conventilho.
Lá aconteceu que o
moço sofresse uma humilhação tão pavorosa que nem sabia o que pensar de si
mesmo. Pois, contra todas as expectativas, nada deu certo entre ele e a
rameira, uma húngara. Klöpfgeissel absolutamente “não se sentiu à altura”, o
que lhe causou imenso desgosto e também o sobressaltou enormemente, porquanto
aquela marafona não apenas se ria dele, senão também meneava a cabeça com ar
ominoso, afirmando que qualquer coisa estava cheirando mal. Insinuou que nessa
história havia algo sinistro; pois, quando um rapaz da estrutura de
Klöpfgeissel de um momento para outro ficava impotente, devia ser vítima do
Diabo; certamente alguém lhe dera um filtro, e outras conjeturas desse gênero.
Heinz a pagou generosamente, para que ela não dissesse nada aos companheiros, e
muito acabrunhado voltou para casa.
O mais depressa
possível, posto que com muitas preocupações, foi ter com Bärbel, e enquanto o
sineiro repicava os sinos, passavam ambos uma hora muito bem-sucedida. Assim o
jovem reencontrava sua honra viril e podia sentir-se totalmente satisfeito, já
que, além dessa sua primeira e única amada, não se interessava por nenhuma
outra, e por que deveria ele interessar-se muito por si próprio, a não ser na
presença dela? Mas, desde aquele fracasso, cravara-se em sua alma alguma
inquietude. Intrigava-o a ideia de submeter-se a outro teste, enganando a sua
querida, pelo menos uma vez e nunca mais. Por isso, espiava clandestinamente
uma oportunidade para pôr-se à prova, a si mesmo e também a ela, visto que não era
capaz de desconfiar de si, sem provar, ao mesmo tempo, uma leve suspeita,
carinhosa, sim, e todavia angustiada, com relação àquela à qual pertencia toda
a sua alma.
Pois bem, ocorreu
pouco depois que o chamassem, para que, na adega de um ventrudo e enfermiço
estalajadeiro, fixasse os aros soltos de dois barris. A esposa do homem, uma
fêmea ainda bem viçosa, descia junto com ele e o observava durante o trabalho.
Subitamente lhe acariciou o braço e encostou o seu nele, como para comparar as
medidas. Fê-lo com uma expressão tão súplice que o moço absolutamente não lhe
podia recusar o que sua carne, em que pesasse a toda a prontidão do espírito,
era totalmente incapaz de realizar, de modo que ele se viu forçado a dizer-lhe
que não tinha vontade de bailar, que estava com pressa e que certamente o
marido dela não ia demorar a descer. Com isso, deu nos calcanhares, enquanto a
mulher amargurada ria sarcasticamente atrás do moço, que lhe ficara devendo o
que nenhum rapaz robusto deixa de pagar.
Klöpfgeissel sentia-se
profundamente ferido. Duvidava de si mesmo e não só de si. Pois a suspeita que
já depois do primeiro malogro se infiltrara em sua mente, a essa altura se
apossava dele por inteiro. Já não hesitava nenhum instante em crer-se vítima do
Diabo. Por isso, e considerando que a salvação de uma pobre alma e ainda a
honra de sua carne estivessem em jogo, encaminhou-se ao padre e, através da
grade, sussurrou-lhe tudo na orelha: que fora enfeitiçado por alguém e desde
então se tornara impotente e inibido, a não ser com uma única. Perguntou como
era possível uma coisas dessas. Não dispunha a Religião de recursos maternais
para livrá-lo de tal infortúnio?
Ora, naquele tempo
e naquela região, estava terrivelmente difundida a peste da bruxaria, em
combinação com muitos outros pecados, leviandades e vícios afins, por
instigação do Inimigo desejoso de ofender a Majestade divina. Em face disso,
impusera-se aos pastores do rebanho a mais severa vigilância. O padre, por
demais familiarizado com essa categoria de malefícios, que, como por encanto,
privavam certos homens do melhor de sua força, comunicou a confissão de
Klöpfgeissel a seus superiores. A filha do sineiro foi presa. Interrogada,
confessou veraz e sinceramente que, na angústia de seu coração preocupado com a
fidelidade do rapaz, para evitar que outra moça lho surrupiasse, antes de ele
pertencer-lhe perante Deus e os homens – confessou, pois, que de uma velha
megera, curandeira de profissão, recebera um specificum, alguma pomada pretensamente feita de gordura de uma
criança falecida sem batismo; para obter certeza da fidelidade de seu Heinz,
esfregara-lhe secretamente as costas com esse unguento durante o amplexo,
traçando nelas um desenho predeterminado. Em seguida, a curandeira foi
submetida à inquirição. Ela negou tenazmente tudo. Tornou-se então preciso
entregá-la às autoridades seculares, deixando-se ao critério delas o uso de
meios de interrogação incompatíveis com a Igreja, e, depois de um pouco de
pressão, verificou-se o que era de esperar, a saber, que a velha realmente
fizera um pacto com o Diabo, o qual se lhe apresentara sob o disfarce de um
monge de pés de bode e a persuadira a renegar com atrozes blasfêmias a
Santíssima Trindade e a fé cristã, pelo que, em compensação, comunicara-lhe
receitas não somente daquela pomada de amor, mas também de outras panaceias
ignominiosas, entre as quais se achava uma banha que bastava passar num pedaço
de madeira, para que este subisse aos ares, carregando consigo o adepto de tal
magia. As circunstâncias sob as quais o Maligno selara seu acordo com a anciã
saíram à luz somente aos poucos, sob repetida pressão. Eram, no entanto, de
arrepiar cabelos.
Para a moça, que
apenas indiretamente fora afastada do bom caminho, dependia então tudo da
medida em que a aceitação e o uso dos maléficos ingredientes houvessem
comprometido a salvação de sua alma. Para maior desgraça da filha do sineiro, a
velha depôs que o Dragão a mandara fazer um número muito grande de prosélitos;
pois o Demônio prometera-lhe que, por cada criatura humana que ela pusesse à
disposição dele, induzindo-a a servir-se dos diabólicos produtos, torná-la-ia
um pouco mais imune ao fogo perpétuo, de modo que, após um assíduo trabalho de
angariamento, ficasse revestida de uma couraça de asbesto, protetora contra as
chamas do Inferno. Essa declaração foi funesta apara Bärbel. Impunha-se a
necessidade de preservar-lhe a alma da perdição eterna e arrancá-la das garras
do Diabo, com sacrifício de seu corpo. E uma vez que, de qualquer jeito, em
face da perversidade que imperava em toda a parte, carecia-se urgentemente de
um exemplum, foram queimadas em praça
pública, lado a lado, em fogueiras vizinhas, duas bruxas, a velha e a moça.
Heinz Klöpfgeissel, o enfeitiçado, encontrava-se em meio à multidão de
expectadores, murmurando orações, de cabeça descoberta. Os gritos de sua
bem-amada, abafados pela fumaceira e roufenhamente transformados, pareciam-lhe
a voz do Demônio, que renitentemente, coaxando, afastava-se do corpo dela. A
partir de então, cessava a vergonhosa inibição que lhe haviam pespegado, pois
bastava que aquele seu amor fosse reduzido a cinzas para que se restaurasse ao
moço o uso livre de sua virilidade criminosamente surrupiada.
MANN, Thomas.
Doutor Fausto. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
p.141-145
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