Acontece que minha alma foi tecida com fios anárquicos. Quando me vejo assim, de “mala” cara, idealizo a formação de uma tropa de elite com o fim exclusivo de queimar políticos ladrões, famílias inteiras que se locupletam com o erário público e lobistas do inferno. De uma só vez, para não gastar palitos de fósforo! Onde já se viu usar o helicóptero que atende a população somente para ver se o pé de mulateiro da ilha está pegado?
Este mês foi terrível! As quedas sucessivas das pedras de dominós dos ministérios, a baixa de popularidade de Dilma (nada vertiginosa, como dizem) por conta de sua “falta” de sensibilidade para entender a gentalha peemedebista, peerrista, pecedobista, petebista e outros “istas” de aluguel que compõem a raia miúda, ou do baixo clero, como dizem.
Por falar em clero, para jogar ainda mais para baixo o meu estado lipotímico, li uma matéria sobre panos quentes que o atual chefe de Roma teria colocado para abafar crimes de padres e bispos pedófilos. Pode haver algo pior que isso? Aí o pião girou em volta da minha cabeça e nas rodas do meu coração, como também diz a música. Pensei comigo: o papa é o sumo pontífice ou acobertador de patifarias? Li, logo depois, que não foi assim e que não houve nenhum pecado por omissão. Que foi gravada uma tábua com penas pesadas para os pecadores de batina: comeu criancinha, expurgo, Já! Desterro já! No Alaska! Espero que a verdade esteja na última matéria.
Estava eu ainda bêbada com tanta cachaça ruim, quando o telefone tocou. Era Luzinete dando os ares de sua graça. Atendi de má vontade. Péssima vontade, para ser mais verdadeira.
- Fala, Luzinete! Diga tudo bem rapidinho que hoje não estou para conversa demorada!
- Vixe, Maria, até por telefone eu tenho medo da senhora! Calma!
- Se falar rápido, tudo bem...
- Lembra daquela velhinha, a Dona Dirce? Já falei dela. Contei que ela gostava de tomar cerveja escondendo-se dos filhos, tá se ligando? Pois bem, ela foi enterrada ontem.
- Sim, Luzinete, o que pode haver de espetacular nisso? A senhorinha Dirce tinha quase cem anos e sua morte era questão de mais dia, menos dia, não? Até questão de mais horas, menos horas, estou certa?
- Concordo. Só acho que não precisavam ter agido com tanta brutalidade com a tadinha. A raça vagabunda do filho se mantinha com o dinheirinho da aposentadoria dela. Olhe, pegaram uma seda roxa, rasgaram, e, no próprio corpo da defuntinha, costuraram uma mortalha que parecia as ventas da nora dela, uma pirangueira da pior qualidade que tem aqui. Costuraram, não: pregaram com grampeador, acredita? Dona Leila, fiquei com vontade de bater na cara da “zinha”. A biscate é tão da ralé que, meses atrás, foi presa por mostrar as partes íntimas para crianças de seis, sete anos, acredita em mim? Uma das crianças, de tão inocentinha, quando perguntada sobre o que viu, disse para a Glória Russa, do Conselho Tutelar que viu um bicho grandão, a senhora está entendendo? Gostou do nível?
- Luzinete, fica calma! Os mortos não ligam pra nada. Enterrados, com mortalhas fashions, ou não, o que isso pode impedir para que cheguem aos céus? Quanto às crianças, se avexe não! Por serem muito novinhas, as imagens se dissiparão e, em breve, não lembrarão mais do bicho grandão, me entende você? O certo é que ela foi punida e não deve repetir a safadeza.
- Vou procurar entender. Está certo, mas precisava ser assim, de forma tão bruta? Estou passada de indignação. Olhe, só por curiosidade, enquanto a raça vagabunda fingia que estava sentida, cheguei perto do caixão de Dona Dirce e, sem que notassem, passei a mão no corpo gelado e, não duvide de mim, a velhinha estava sem calcinha. Pode, Dona Leila?
- Até pode! Acho que sim! Sei lá, Luzinete! É só isso que tens para falar? Deixe a velhinha descansar em paz, está bem? Que falta poderá fazer uma calcinha? Falou tudo?
- Não. Ainda não! Tem mais uma coisinha, visse? Fui na casa que a senhora alugou para aquela gerente de banco. Ela queria que eu fizesse uma faxina, tá ligada? Posso contar?
- Pode. Fiquei curiosa. O que aconteceu?
- Minha santa, o marido da madame fez uma devassa nas suas plantas. Arrancou as palheiras, decepou aquela goiabeira linda, a de goiabas brancas e doces. Aquela sibipiruna da frente da casa, que dava florzinha amarela e sombreava seu quarto, o desgraçado capou até ficar só o toco. Nos canteiros da horta ele plantou grama e os três pés de maracujá, com mais de trezentos frutos já inchados, acredite, ele jogou no chão. O pé de laranja lima, sumiu do pedaço. No jardim, minha deusa, não há mais cicadáceas nem roseiras de enxertia. Da trepadeira perto do relógio da luz, de flores parecidas com brincos de princesa, não soube notícias e nem vi o rastro. Só existe capim seco e rés com o chão. E é só!
- Está de bom tamanho, Luzinete! Chega, né? Vou pensar sobre o caso. Só aluguei a casa e preciso entender a sanha desse maluco. Pelo visto ele não gosta de ver pau em pé! Vou procurar por ele.
Desligado o telefone, como num passe de mágica, todas as preocupações anteriores foram para as cucuias. Afinal, pode existir algo mais grave que uma velhinha como a Dona Dirce ser enterrada sem calcinhas? Pode existir algo mais nefasto do que saber que plantinhas floradas, roseiras de enxertia, trepadeiras de flores parecidas com as brincos de princesa e fruteiras produtivas tenham sido varridas do mapa por um inquilino maldito?
Restou-me lembrar Chico e a Roda Viva da vida, adaptada à minha nova realidade.
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.
Luzinete fez uma faxina na minha alma aflita. Não mais me sinto uma folha na tempestade.
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Texto originalmente publicado em Lima Coelho.
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