domingo, 30 de julho de 2023

PENSANDO SOBRE CERTAS GERAÇÕES DE POETAS ACREANOS

João Veras (07/09/21)

 

Este texto foi lido por ocasião do lançamento virtual do livro Sonetos apolíticos, de Dalmir Ferreira, o que se deu na data de 7 de setembro de 2021, em plena pandemia do corona vírus.


Eu gostaria de colocar o livro do Dalmir – Sonetos Apolíticos - num contexto que envolve expressões poéticas de outras gerações de tempos passados e contemporâneo. 

Do presente, Dalmir Ferreira (com Sonetos Apolíticos) e Danilo de S’Acre (com Fractais). Do dado tempo pregresso (anos 80 do século passado), Betho Rocha e Bartolomeu. E um pouco mais ao longe, Juvenal Antunes.

A respeito de Betho e Bartolomeu, vou me valer da análise, realizada por Laélia Rodrigues em seu livro Um Caminho de Muitas Voltas, de 2002, a partir das obras Aqui Jaz de Baton Lilás (1984) De Betho Rocha, e Vagar vagando (1980) e o Sonho Perdido e etc (1982, de Bartolomeu. 

Em Bicho de Sete Cabeças, artigo que abre o livro Um Caminho de Muitas Voltas (2002), a professora e pesquisadora da literatura acreana, Laélia Rodrigues, analisa a produção poética dos dois acreanos Betho Rocha e Bartolomeu, os quais ela aponta como detentores de um projeto literário distinto não só das gerações anteriores de poetas acreanos como também da maioria da sua própria geração, no período da década de 80 do século passado, quando publicaram suas obras.

Segundo a pesquisadora da literatura acreana, Betho Rocha e Bartolomeu se diferem, enquanto projeto poético, tanto das gerações passadas, quanto da maioria dos seus contemporâneos e que coincidiam elementos comuns em suas poéticas.

Primeiro, pelo fato de que não se filiam às formas fixas de poemas, com as suas métricas e rimas.

Segundo, por que se negam a imprimir tematicamente uma poética de busca pela cor local de cunho pitoresco, exótico e historicista das oficialidades.

Terceiro, por que, sob o aspecto das suas linguagens, manipulam o uso da “linguagem dos símbolos”, pela qual o eu lírico busca significações que ultrapassam “à lógica do diálogo objetivo”, incitando “o leitor na busca das significações  novas vislumbradas na beleza das imagens poéticas, a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles.”, e “além das superficialidades dos clichês caraterísticos da maioria dos poetas de sua geração no Acre.” (Idem)

E quarto, por que se valem de um lirismo que revela conflitos existenciais e indenitários na busca de si ou algo a mais a serviço de um eu narcísico a partir da vivência do meio sociocultural.

Mais de quarenta anos depois, nos vemos diante de dois poetas contemporâneos cujos projetos estéticos já se diferem entre si, de pronto, na forma. Dalmir pelo uso de sonetos e Danilo pelas formas livres do verso.

Assim, considerando os processos da poesia acreana, enquanto Dalmir, no aspecto formal, se associa à tendência sonetista presente na sua gênese histórica, Danilo se conecta diretamente à expressão poética de Betho e Bartolomeu, também, em seu tempo, minoritária, na década de 80 do século passado.

Dalmir e Danilo não aderem a busca de uma cor local, tão comum nas gerações iniciais de poetas acreanos. Nem pitoresca nem desenvolvimentista (a serviço das oficialidades do poder institucional), característica esta que os identificam a Betho e Bartolomeu.

 

O SONETO E O VERSO LIVRE DA LINGUAGEM DOS SIMBOLOS

 

Como se anuncia no título de sua obra, o que parece ser mais urgente, a primeira vista, para Dalmir Ferreira não é o dito, mas o como é dito. O que se expressa a partir da escolha exclusiva de uma estrutura canônica de poema, o soneto.

De fato, o nome da obra Sonetos apolíticos já anuncia a forma Sonetos de conteúdo apolíticos, o que pode ser interpretado também como sonetos dedicados aos políticos. Ao final, ambos os sentidos são aceitáveis coetaneamente expressando de forma potente o sentido da obra.

Mesma intenção parece perseguir Danilo com a sua Fractais. Figuras geométricas, uma forma, seguida do conteúdo: abstrações poéticas em imagens diluídas. No próprio subtítulo, há um subconjunto que replica a regra forma/conteúdo: abstrações poéticas em imagens diluídas.

O que acontece de tal modo que, em ambos, a forma precede – se anuncia - a substância. O que pode ser explicado, talvez, pelo fato de os dois serem também artistas da imagem. Artistas plásticos, portanto das formas e não da palavra como substância. Isto é uma hipótese.

Em sua obra, Dalmir mantém-se preso a uma forma fixa e pré-determinada de poema. Não são sonetos de amor, como popularmente é conhecida esta forma de poema. Dalmir usa os materiais clássicos (a métrica e a rima) para substanciá-los de desassossegos sociais e políticos. O que não é novidade na literatura acreana. Nem na forma nem no conteúdo.

O soneto Acre, de Juvenal Antunes, de 1923, já destila a verve crítica, pessimista e irônica do poeta sobre esse lugar. Com isso, no aspecto estrutural, Dalmir estaria vinculando-se à gênese acreana do modo de se fazer poemas, visto que era muito comum no Acre o uso de sonetos pelos poetas inaugurais.

Enquanto Danilo experimenta com a manipulação dos versos em suas formas livres de métricas e rimas, sendo quase performático, senão completamente diante do que se considera a forma tradicional do verso, ele vai reciclando sentidos simbólicos do que sai sua poética sem perder, a exemplo de Dalmir, os vínculos com a realidade social a qual se encontra profundamente voltado, e que se amolda à forma com o que sua tradução se torna enviesada pela tendência performativa, a que Laélia vai denominar de “linguagem dos símbolos”, por onde o eu lírico busca significações que ultrapassam “à lógica do diálogo objetivo.”, pela qual se “fustiga o leitor  na busca das significações  novas vislumbradas na beleza das imagens poéticas, a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles.”, com o que a pesquisadora vai caracterizar a poética de Betho e de Bartolomeu, a qual Danilo, como vejo, não só se filia como a radicaliza ainda mais.

Assim, considerando os processos da poesia acreana, enquanto Dalmir, no aspecto formal, se associa à tendência sonetista presente na sua gênese histórica, da qual Juvenal Antunes é um de seus expoentes, Danilo se conecta diretamente à expressão poética, também em seu tempo, minoritária, na década de 80 do século passado, na poesia de Betho e Bartolomeu.

 

DOIS CRÔNISTAS

 

Penso que a poesia acreana, aproveitando-se de sua forma curta, tem um pé muito presente no relato, na crônica, nos causos, na necessidade de contar, posicionando-se, reflexivamente, a respeito das coisas e fatos da vida do lugar.

Danilo conta de uma maneira peculiar, digo por onde parece não haver relatos, do tipo linear, com certeza.

Dalmir é declaradamente um contador da pequena aldeia (“o nosso Acre de cada dia”, soneto XI), daquele molde, num aspecto da gama de poemas, que procura não dar nome aos bois. Vai construindo causos como que um jogo de adivinhações. Quase como quem não quer se comprometer pessoalmente nessa terra de muro baixo. Quebra cabeças da história local. Lendo seus sonetos sempre vem a indagação: de quem, que é vivo ou morto, ele está falando mesmo?

Os dois relatam sobre o que veem no campo da existência social no mesmo lugar em que vivem e de onde são naturais. Ambos observadores mais próximos do momento presente da perdição que para Danilo não tem futuro (“para onde iremos se não tem pra onde ir, p. 76). A ausência de destino, nos seus caminhos “silente” e “dolente” (p. 14), o que para Dalmir significar não ter presente: “Este é um livro do meu lugar/e de meu tempo para o futuro/tempo sem luz, tempo escuro/em que perdemos nosso situar (soneto II).

Ambos, fincados no tempo contemporâneo sob um olhar de cor niilista, aquele que não acredita mais na redenção da vida social. Para Dalmir, “Só para repetir nós viemos”, Soneto I), no presente onde “nada é novo”(soneto I) e de “futuro incerto” (Danilo, p. 76).

Afinal, os dois parecem ler, da mesma forma crítica, a realidade em que vivem e observam. Para Danilo “O mundo acaba e tudo continua sendo a mesma coisa de sempre” (p. 56). Para Dalmir “Passado e futuro que nada são/inútil fruto que o presente gera”. (soneto LII). A indistinção das palavras diante do que traduzem como uma realidade imutável social e politicamente.

Por eles, como poetas de uma geração, é possível saber como é viver o tempo presente no Acre. Em desesperança no campo coletivo. Esta característica, presente em Juvenal Antunes, mas não expressa no lirismo autobiográfico existencial de Betho e Bartolomeu, por onde as questões sociais, pelo menos em cores expressas, não ganharam relevo como ganharam nos poetas contemporâneos do agora e mesmo no de lá dos tempos iniciais.

 

SEUS SUJEITOS-TEMAS

 

Os sujeitos de Danilo são os que estão no mundo, na rua, nas feiras, mercados e praças. Estão expostos na vida do cotidiano para quem “à vista a vida basta” (p. 16). Os de Dalmir são os que estão escondidos, embora públicos, o que estão na tradição, nas instituições. Os tipos políticos. Os que estão fincados nos relatos históricos oficiais. Estão na sua memória política chapa branca. Mas são também as suas presas, o povo.

Danilo fala das pessoas para falar do poder. Dalmir fala do poder para falar das pessoas. Um é o motivo do outro que se entrelaçam na vida real. Ambos não nomeiam, não individualizam. Tudo é uma questão da relação entre o poder e o coletivo, “a geração de sofredores” (Dalmir em soneto XI), a que vive “de promessas feitas em fatias indivisíveis” (Danilo na p. 22).   

Vejo em Dalmir uma preocupação em ser patente. Um desejo educativo, quase à beira do normativo. Ele quer falar para as gentes e ser entendido. Há um desejo de diálogo com o leitor. Em Danilo, não tanto, pelo menos de forma explícita. A preocupação do Danilo se funda mais na construção simbólica da forma de dizer. Ele experiência a linguagem, no que não resulta uma clareza didática. É o que Laélia vai denominar de “linguagem simbólica” pela qual cabe muito ao leitor a tarefa de garimpar o entendimento “a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles”, segundo o ensino de Laélia.

 

NENHUM É PITORESCO AMAZÔNIDA

 

Nem inferno nem paraíso. Onde estão os animais, a floresta misteriosa e os povos selvagens, as lendas, a barbárie versus civilização, o passado passado, o meio ambiente como a cor local de disputa, o exótico... Vida que se vive num mundo de expressas afetividades e antipatias. Um mundo que se vive e se viveu des-ignorado. Um momento de incômodos só pode produzir sujeitos poetas inquietos.

Dois urbanos. Mas um, Dalmir, de infância seringal (nasceu no Seringal Bom Destino). Mas outro, Danilo, de experiência transatlântica (morou por anos na Itália). O que vai determinar suas temáticas. Estão expressos em suas experiências os contornos estilísticos de cada um fincados num tema recorrente, suas vivências no lugar de vida presente e memorial.  

 

O NÃO LIRISMO E O TOM ANTI-ÉPICO

 

Em nenhum dos dois percebo intenções líricas. O mundo pega fogo em suas penas. A coisa como ela é vista por quem (acre)dita (Danilo) e des(acre)dita (Dalmir).

Em nenhum dos dois impera o discurso da florestania/sustentabilidade, essa espécie de lirismo político inventado pelo poder local contemporâneo do período histórico de suas produções poéticas. Tal ausência vai significar o desvalor dado por ambos a tal discurso.

Em Dalmir e Danilo, cada um à sua maneira, mas potentemente em Dalmir, constato o tom dominante de uma literatura anti-épica, isto é, a expressão de um poema épico às avessas, pelo qual a voz dominante não é do herói que vence (o personagem das histórias oficiais), mas aquele que se encontra em estado perdedor, que é o povo.

Trata-se de um desvendamento da história oficial, a da injustiça colonial e seus personagens arquétipos. A que busca a salvação do povo, que só é heroico por resistir ao poder político que lhe explora, domina, racializa. São narrativas a respeito das armadilhas em que caem em sua “triste sorte” (soneto XIX), de “massa de manobra” (soneto XXII).

Dalmir fala para esse povo (constata e adverte), enquanto Danilo fala a respeito (mostra, joga na cara sua miséria).  Para ambos, impera uma inércia social, daí o pessimismo apolítico e fractal. O contrário da festiva e enganosa florestania que inventa um povo revolucionário para si.

 

PARA NÃO DAR ASSAS À COLONIALIDADE LITERÁRIA

 

Especialmente no que diz respeito às formas, fosse querer moldar a poética de Dalmir e de Danilo à historicidade canônica da chamada literatura mundial (replicada pela brasileira na qual a acreana não está contida) – que dispõe de um estatuto universal do fazer poético como algo progressivo que começa e se desenvolve na Europa se espraiando a sua adoção normativa pelas, por ela considerada, periferias -  festejaria a ideia de atraso cultural da poética acreana apontando, no caso, Dalmir como um parnaso dos fins do século XIX e Danilo, Betho e Bartolomeu uns modernistas de 22, do século XX.

Creio que aceitar isto – como um carimbo de subdesenvolvimento literário - é aceitar à condição histórica-colonial, instaurada há mais de 500 anos na relação da Europa, que busca se impor como o Centro (avançado, moderno) e, como tal, produtor e difusor de poder e saber padrões ditos civilizatórios do modo de viver e, no caso, conceber a arte, a literatura. 

Cada lugar constrói, por obra de seus, o modo de se relacionar com as coisas do mundo e consigo próprio. Dalmir, Danilo, Juvenal Antunes, Betho Rocha e Bartolomeu são poetas e como tais produtores estéticos e históricos de seu meio e tempo.

Todavia, é indispensável não perder de vista que a re-existência artística-cultural – a luta pelo direito de ser e criar, de ser próprio, - carece da manutenção da resistência politica e cultural frente aos sistemas de educação e de cultura estatais que nos move para a condição inerte de consumidor da matriz, isto é, colonizado, explorado e racializado. 

 

POR FIM

 

Como procurei demonstrar aqui rapidamente, Sonetos Apolíticos é uma obra que se comunica com outros tempos e outras formas, contemporâneas ou não, de expressão poética produzida no Acre. Vincula-se a um conjunto de manifestações estéticas plurais as quais se pode denominar de literatura acreana.

Uma obra que faz jus à sua história, tanto na forma quanto no conteúdo, que não ignora a vida vivida. A do tipo que nos conta e reflete em que lugar e tempo vivemos. Justamente como fez Juvenal Antunes, em 1923, com o seu soneto Acre pelo qual destila a verve crítica, pessimista e irônica a respeito desse lugar, tão insistentemente o mesmo. 

terça-feira, 25 de julho de 2023

REMATE DE MALES: Mário de Andrade


POEMAS DA AMIGA

(1929-1930)

 

a Jorge de Lima

 

I

 

A tarde se deitava nos meus olhos

E a fuga da hora me entregava abril,

Um sabor familiar de até-logo criava

Um ar, e, não sei porque, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.

Estavas longes, doce amiga; e só vi no perfil da cidade

O arcanjo forte do aranhacéu cor-de-rosa

Mexendo asas azuis dentro da tarde.

 

II

 

Si acaso a gente se beijasse uma vez só...

Ontem você estava tão linda

Que o meu corpo chegou.

Sei que era um riacho e duas horas de sede,

Me debrucei, não bebi.

Mas estou até agora desse jeito,

Olhando quatro ou cinco borboletas amarelas,

Dessas comuns, brinca brincando no ar.

Sinto um rumor...

 

III

 

Agora é abril, ôh minha doce amiga,

Te reclinaste sobre mim, como a verdade,

Fui virar, fundeei o rosto no teu corpo.

Nos dominamos pondo tudo no lugar.

O céu voltou a ser por sobre a terra,

As laranjeiras ergueram-se todas de-pé

E nelas fizemos cantar um primeiro sabiá.

 

Mas a paisagem logo foi-se embora

Batendo a porta, escandalizadíssima.

 

IV

 

Ôh trágico fulgor das incompatibilidades humanas!

Que tara divina pesa em nosso corpo vitorioso

Não permitindo que jamais a plenitude satisfeita

Descanse em nosso lar como alguém que chegou!...

 

Não tenho esperança mais nas vossas revelações!

Vós me destes o amor, me destes a amizade,

E na experiência de minha doce amiga me destes

Mais do que imaginei... Mas a volta foi cruel.

 

Eu sofro. Êh, liberdade, essência perigosa...

Espelhos, Pireneus, caiçaras e todos os desesperos,

Vinde a mim que outros agora aboiam pra eu marchar!

 

Tudo é suavíssimo na flora dos milagres...

Um pensamento se dissolve em mel e à porta

Do meu coração há sempre um mendigo moço esmolando...

 

Eu saí da aventura! Eu fugi da ventura!

Nós não estamos na cidade nem no mato.

Nós rolamos na ânsia dos fabulosos aeroplanos,

E vos garanto que agora não acabaremos mais!

 

V

 

Contam que lá nos fundos do Grão-Chaco

Mora o morubixaba chiriguano Caiuari,

Nas terras dele nenhum branco não entrou.

São planos férteis que passam a noite dormindo

Na beira dum lagoão, calmo de garças.

Enorme gado pasta ali, o milho plumeja nos cerros,

E os homens são todos bons lá onde o branco não entrou.

 

Nós iremos parar nesses desertos...

Viajando através de fadiga e miséria,

Os dias ferozes nós descansaremos abraçados,

Mas pelas noites suaves nossos passos nos levarão até lá.

E ao vivermos nas terras do morubixaba Caiuari,

Tudo será em comum, trabucaremos como os outros e por todos,

Não haverá hora marcada pra comer nem pra dormir,

Passaremos as noites em dança, e na véspera das grandes bebedeiras

Nos pintaremos ricamente a riscos de urucum e picumã.

Pouco a pouco olvidaremos as palavras de roubo, de insulto e mentira,

A terminologia das nações e da política,

E dos nossos pensamentos afinal desertarão as profecias.

Oh, doce amiga, é certo que seriamos felizes

Na ausência deste calamitoso Brasil!...

Fecho os olhos... É pra não ver os gestos contagiosos...

Ando em verdades que deviam já não ser do tempo mais...

A nossa gente vai muito sofrer e tenho o coração inquieto.

 

VI

 

Nós íamos calados pela rua

E o calor dos rosais nos salientava tanto

Que um desejo de exemplo me inspirava,

E você me aceitou por entre os santos.

 

Erguer do chão um toco de cigarro,

Fuma-lo sem saber por que boca passou,

A terra me erriçava a língua e uma saliva seca

Poisando nos meus lábios molhados renasceu.

Todos os boitatás queimavam minha boca

Mas quando recomecei a olhar, ôh minha doce amiga,

Os operários passavam-se todos para o meu lado,

Todos com flores roubadas na abertura da camisa...

O Sol no poente, de novo aurorai e nativo,

Fazia em caminho contrário um dia novo;

E as noites ficaram luminosamente diurnas,

E os dias massacrados se esconderam no covão duma noite sem fim.

 

VII

 

É hora. Mas é tal em mim o vértice do dia

Nesta sombra... Porque serás mais que os rapazes,

E bem mais, muito mais do que as amantes?...

Sombra!... Sombra de cajazeira perfumada,

Saudando a minha inquietação com a tua delícia!

Eu poderia dormir no teu regaço, ôh mana...

Abri-vos, rincões do sossego,

Não cuideis que é minha amante, é minha irmã!

 

Porém é muito cedo ainda, e no portão do Paraiso

O anjo das cidades vigia com a espada de fogo na mão.

 

VII (bis)

 

É uma pena, doce amiga,

Tudo o que pensas em mim.

Eu sei, porque acho uma pena

Também o que penso em ti.

Mesmo quando conversamos,

E uma pena, outras conversas

De olhos e de pensamentos.

Andam na sala, dispersas.

 

VIII

 

Gosto de estar a teu lado,

Sem brilho.

Tua presença é uma carne de peixe,

De resistência mansa e um branco

Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.

Anoiteço feito um bairro,

Sem brilho algum

 

Estamos no interior duma asa

Que fechou.

 

IX

 

Vossos olhos são um mate costumeiro.

Vossas mãos são conselhos que é indiferente seguir.

Gosto da vossa boca donde saem as palavras isoladas

Que jamais não ouvi.

Porém o que eu adoro sobretudo é vosso corpo

Que desnorteia a vida e poupa as restrições.

Oh, doce amiga! vossos castos espelhos de aurora

Despejam sobre mim paisagens e paisagens

Em que passeio feito um rei sem povo,

Cortejado por noruegas, caponetes e caminhos,

— Os caminhos incompetentes que jamais não me conduzirão a alguém!...

 

X

 

Os rios, ôh doce amiga, estes rios

Cheios de vistas, povoados de ingazeiras e morretes,

Pelo Capibaribe irás ter ao Recife,

Pelo Tietê a São Paulo, no Potengi a Natal.

Pelo Tejo a Lisboa e pelo Sena a Paris...

 

Os rios, ôh minha doce amiga, na beira dos rios

E a terra de povoação em que as cidades se agacham

E de-noite, que nem feras de pelo brilhante, vão beber...

Pensa um bocado comigo na vasta briga da Terra,

E nas cidades que nem feras bebendo na praia dos rios!

Insiste ao pé de mim neste meu pensamento!

E os nossos corações, livres do orgulho,

Mais humilhados em cidadania,

Irão beber também junto das feras.

 

XI

 

A febre tem um vigor suave de tristeza,

E os símbolos da tarde comparecem entre nós;

Não é preciso nem perdoar nem esquecer os crimes

Pra que venha este bem de sossegar na pouca luz.

 

É a nossa intimidade. Um fogo arte, esquentando

Um rumor de exterior bem brando, muito brando,

E dá clarões duma consciência intermitente.

A poesia nasce.

Tu sentes que o meu fluido se aninha em teu colo e te beija na face,

E, por camaradagem, me olhas ironicamente.

Mas estamos sem mesmo a insistência dos nossos brinquedos.

E o vigor suave da febre

Não intimida os nossos corações tranquilos.

 

XII

 

Minha cabeça poisa nos seus joelhos,

Vem o entre-sono, e é milagroso!

A vida se conserva em mim doada pelos seus joelhos,

E sou duma inimaginável liberdade!

 

Ôh espíritos do ar que os homens adivinham,

Dizei-me o que se evola do meu corpo!

Essa outra coisa vaporosa e brancacenta

Que não é fumo, nem echarpe,

Não tem forma porém não se desmancha

E baila no ar...

 

Todos os adeuses, todos os espelhos e girandolas

Voltijam no espaço que se enche e esvazia

Num tremor avido a esfolhar-se em pregas sem dureza...

Abre a rosa oculta em sinais,

Manhãs em vésperas de ser,

Pireneus sem desejo, enquanto à espreita,

Os objetos em torno me invejam

Buscando me prender na miséria da imagem...

Oh espíritos do ar, dizei-me a rosa incomparável

Que se evola reagindo em baile no ar!

Baile! Baile de mim no entre-sono!

Não é uma alma, não é um espírito do ar, não é nada!

E a outra coisa que baila, que baila, que baila,

Livre de mim! gratuita enfim! fútil de eternidade!

 

Ôh, brinca, brinca, minha melodia!

Sabiá da mata que canta a mei-dia!

Olha o coco, Sinhá!

 

ANDRADE, Mário de. Remate de Males. São Paulo: Eugenio Cupolo, 1930. p. 147-174

sábado, 22 de julho de 2023

ÁLGIDA: Moacir Marques da Silva

ÁLGIDA, de Moacir Marques da Silva, publicado pelas Edições do Governo do Amazonas, em 1967.

O texto, abaixo, consta na orelha do romance.

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Moacir Marques da Silva, agora surge, nas Edições do Governo do Amazonas, com o seu segundo romance “ÁLGIDA”, depois de ter alcançado boa cotação com a análise psicológica que desenvolveu com a novela “RENATA”.

“Renata” teve repercussão nacional. Ultrapassou nossas fronteiras.

Nesta segunda tentativa, parece que Moacir Marques da Silva, mais se amadureceu e vai alcançar uma posição definida entre os romancistas brasileiros.

“ÁLGIDA” é outra análise psicológica profunda, com grandes lances de emoções em diálogos bem equilibrados, lances de psicologia amorosa, onde uma mulher se apresenta sob o estilete de uma análise séria, verdadeiramente, à maneira do romance psicológico de Paul Bourget.

Este romance é bem feito. As descrições correm tranquilas, sem o empolado de certos iniciantes. É um livro bem feito, delicado, onde a vida social, o namoro de jovens aparecem, com tal naturalidade que encanta.

As entradas dos assuntos são perfeitas. São aberturas de lances ao “xadrez” no tabuleiro social da vida humana.

Moacir Marques da Silva pode ser considerado como a maior figura do romance amazônico, no bom sentido psicológico, na beleza das descrições, que são de uma naturalidade encantadora. O autor não se apressa. É uma revelação admirável seu nome. Mesmo quando surgiu com “RENATA”, o autor foi logo considerado o nome firmado, com uma certa e determinada técnica para escrever romances.

Dos choques entre os desenganos havidos com os temperamentos em luta, esposo e mulher desiludida, nessas muitas tragédias silenciosas que ocorrem em sociedade.

Só às noites, o silêncio, o “far niente”, o espiritual em chamas face os clamores da carne, esse sensualismo sutil que se percebe nos dramas sociais de Moacir Marques da Silva.

Os Robertos do mundo, face a assexualidade e a frieza de uma mulher que clama por melhor compreensão, pelo amor de seu esposo, meio bruto, egoísta.

Os desesperos entre Roberto e Núbia, são tão humanos como tão animais são os desajustes entre a frieza oriunda da brutalidade animal de um homem anômalo, estupidamente macho, sem ver a delicadeza da mulher que não era uma anormal, uma verdadeiramente fria, ÁLGIDA.

Reputa-se este romance como mais uma joia de nossas publicações.

Cenas delicadas, infantis, algumas, profundamente, sensuais, mais veladas, discretas, quase imperceptíveis, como devem ser certas passagens dos romances chamados psicológicos.

Moacir Marques da Silva cresce cada vez mais na admiração dos que querem a boa leitura, a habilidade dos que sabem escrever bem, claro, sem se perturbar com os lances finais dos capítulos.

Não podemos deixar de recomendar a leitura deste livro aos que admiram o bom romance, a boa a leitura, a inteligência ao serviço da arte, da beleza e da cultura.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

VIAGEM PELO BRASIL 1817-1820: Spix e Martius

VIAGEM PELO BRASIL 1817-1820

Edição, em 3 volumes, capa dura

Prefácio de Mário Guimarães Ferri

Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer

Revisão B. F. Ramiz Galvão, Basílio de Magalhães e Ernst Winkler

Anotações de Basílio de Magalhães

Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo; Edusp, 1981

Entre as obras de viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil colonial, o livro deixado por Spix e Martius goza de reputação especial em face de seus atributos como narrativa de viagem, como inventário científico da Natureza local e como depoimento fiel, colorido e vivo, sobre o homem da época e sua complexa atividade social, econômica, cultural e política. Trata-se, pois, de uma das maiores contribuições ao conhecimento do Brasil dos princípios do século XIX, com os valores culturais do século XVIII e já às vésperas da Independência. Valoriza a edição a consagrada tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer revista por B. F. Ramiz Galvão e por Basílio de Magalhães, este último também anotador da obra.

Na viagem, que durou três anos e meio (1817-1820), o botânico Martius e o zoólogo Spix, não obstante sua missão estritamente científica, deixaram-se fascinar pela sociedade brasileira na sua aventura de criar uma nação nos trópicos baseada na multiplicidade de raças e na tolerância cultural de suas correntes tributárias. Embora colônia, já os autores vislumbraram a nação futura. O convívio com negros, brancos, indígenas, mestiços, enfim, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e Amazonas, amenizou o rigor científico da missão, do que resultou um livro de raro interesse do ponto de vista humano.

No primeiro volume, a riqueza da obra de Spix e Martius, como observação, como constatação e como compreensão dos problemas registrados na sociedade brasileira de então, põe a manifesto imensa simpatia pela terra, pelo homem e pela Natureza. A visão é universal, abrangendo Geologia, Botânica, Zoologia, Climatologia, Etnologia, Música, Política, Economia, diversões, alimentação, técnicas, transportes, condições sociais e, sociologicamente, as culturais. As regiões agora abrangidas pela narrativa incluem o Rio de Janeiro, São Paulo, São João de Ipanema e Vila Rica dos primórdios do século XIX, além da viagem marítima até o Rio de Janeiro. À Medida que aprofundam pelo interior do país ressaltam os autores, na complexidade geográfica e cultural brasileira, os contrastes com o litoral.

No segundo volume da obra, Spix e Martius narram a continuação da viagem partindo de Vila Rica em direção a Belém do Pará através das vastas regiões do Distrito Diamantino, Salvador, Ilhéus, Juazeiro, Oeiras e São Luís do Maranhão. Da mesma forma que no primeiro volume, são aqui realçadas observações, não só do domínio puramente físico da paisagem (relevo, flora e fauna), como de suas possibilidades de riqueza. E, na constante dos apontamentos da grande viagem, os autores continuam a recolher curiosos dados sobre a paisagem humana.

Spix e Martius testemunharam na região aurífera de Minas Gerais os derradeiros esforços da produção de ouro e diamantes, tanto da zona de Sabará como no famoso Distrito Diamantino. Este último ainda conservava os rigores da fiscalização que vinham do século XVIII, onde ninguém poderia entrar ou sair sem ordem escrita do Intendente-Geral. Administração e as técnicas de extração do diamante em Curralinho, Linguiça, Mata-Mata e outras minas são descritas em minúcias, abrangendo inclusive aspectos sociais. No capítulo referente ao Distrito Diamantino encontra-se tabela de produção de diamantes, desde o princípio da administração real, do ano de 1772, até 1818, quando Spix e Martius estiveram na famosa zona diamantífera brasileira.

A viagem é continuada agora pelo sertão interior até o Rio São Francisco. A Natureza e o homem são as constantes da narrativa, elementos de uma simbiose dramática em tão afastadas regiões. Os autores revelam comovente simpatia pelo sertanejo, registrando seu modo de vida, suas alegrias e doenças. Do mesmo modo o Rio São Francisco, pela sua imponência e importância, não poderia deixar de impressionar Spix e Martius, e recolhem soma enorme de informações da vida ribeirinha. A cidade de Salvador é evocada da mesma forma que Ilhéus e algumas vilas do sertão baiano com a vida das caatingas, além de Oeiras, São Luís do Maranhão, até a chegada a Belém do Pará. As estatísticas de que dispunham os autores na época são carreadas para ilustração de suas observações sobre a vida econômica das regiões percorridas. Do ponto de vista histórico, são apresentados elementos da formação do Piauí, Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

No terceiro e último volume da obra, Spix e Martius focalizam, em páginas de grande realismo científico, com observações válidas até hoje, a surpreendente Amazônia. Toda sua geografia, ao lado da flora e fauna, em seus pormenores mais significativos, abrangendo a ilha de Marajó, as regiões do Tocantins, Xingu, Tapajós, Rio Negro e Madeira, além de outros cursos d’água de leste a oeste, perpassa aos olhos dos leitores com sua paisagem fantástica e seus fenômenos locais mais típicos, como o das “terras caídas” e o da pororoca. A descrição abrange as numerosas vilas das margens dos rios e do interior, como Fortaleza da Barra, Parintins, Vila de Ega, Tabatinga, Barcelos e outras tantas cujos nomes lembram as origens europeias e indígenas.

Ainda dentro das constantes generosas de sua viagem, Spix e Martius focalizam, com grande simpatia, a dramática aventura do homem nessa moldura de terra primitiva, aventura expressa em termos de moradias, de vida cotidiana, diversões, alimentação e higiene, todo um esforço humano para dominar a paisagem física adversa e sobreviver com seu destino de povoamento e conquista.

Trata-se de um quadro rico de informações e observações, tanto do ponto de vista da formação orogênica da Amazônia e do regime dos rios, como dos produtos naturais vegetais e minerais, da topografia, da etnografia e da economia política. Esta minúcia de dados de informação demonstra consciência de Spix e Martius sobre o trabalho que realizavam, “descrever nesta relação de viagem tanto a feição física do país como os costumes, a vida intelectual e burguesa dos habitantes, também as nossas impressões durante a estada ali, é tarefa cuja significação histórica tanto mais grandiosa parece quanto mais rápido o Brasil se vai antecipando no seu desenvolvimento”.

Ainda uma vez se põe em relevo, neste terceiro volume da importante narrativa de viagem de Spix e Martius pelo Brasil, a contribuição iconográfica dos autores, com desenhos originais de situações, paisagens, elementos humanos, que elucidam passagens do texto. Outrossim, as notas de Basílio de Magalhães valorizam o texto de Spix e Martius em suas implicações particularmente econômicas e históricas com a coleção de tabelas, dados estatísticos esclarecedores.

Continua também neste volume o anexo de peças musicais recolhidas entre os indígenas, principalmente indígenas remadores da Amazônia.

 

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Nota: texto retirado, respectivamente, da orelha dos três volumes.