POEMAS DA
AMIGA
(1929-1930)
a Jorge de Lima
I
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua
lembrança.
Estavas longes, doce amiga; e só vi no
perfil da cidade
O arcanjo forte do aranhacéu cor-de-rosa
Mexendo asas azuis dentro da tarde.
Si acaso a gente se beijasse uma vez
só...
Ontem você estava tão linda
Que o meu corpo chegou.
Sei que era um riacho e duas horas de
sede,
Me debrucei, não bebi.
Mas estou até agora desse jeito,
Olhando quatro ou cinco borboletas
amarelas,
Dessas comuns, brinca brincando no ar.
Sinto um rumor...
Agora é abril, ôh minha doce amiga,
Te reclinaste sobre mim, como a verdade,
Fui virar, fundeei o rosto no teu corpo.
Nos dominamos pondo tudo no lugar.
O céu voltou a ser por sobre a terra,
As laranjeiras ergueram-se todas de-pé
E nelas fizemos cantar um primeiro
sabiá.
Mas a paisagem logo foi-se embora
Batendo a porta, escandalizadíssima.
Ôh trágico fulgor das incompatibilidades
humanas!
Que tara divina pesa em nosso corpo
vitorioso
Não permitindo que jamais a plenitude
satisfeita
Descanse em nosso lar como alguém que
chegou!...
Não tenho esperança mais nas vossas
revelações!
Vós me destes o amor, me destes a
amizade,
E na experiência de minha doce amiga me
destes
Mais do que imaginei... Mas a volta foi
cruel.
Eu sofro. Êh, liberdade, essência
perigosa...
Espelhos, Pireneus, caiçaras e todos os
desesperos,
Vinde a mim que outros agora aboiam pra
eu marchar!
Tudo é suavíssimo na flora dos
milagres...
Um pensamento se dissolve em mel e à porta
Do meu coração há sempre um mendigo moço
esmolando...
Eu saí da aventura! Eu fugi da ventura!
Nós não estamos na cidade nem no mato.
Nós rolamos na ânsia dos fabulosos
aeroplanos,
E vos garanto que agora não acabaremos
mais!
V
Contam que lá nos fundos do Grão-Chaco
Mora o morubixaba chiriguano Caiuari,
Nas terras dele nenhum branco não
entrou.
São planos férteis que passam a noite
dormindo
Na beira dum lagoão, calmo de garças.
Enorme gado pasta ali, o milho plumeja
nos cerros,
E os homens são todos bons lá onde o
branco não entrou.
Nós iremos parar nesses desertos...
Viajando através de fadiga e miséria,
Os dias ferozes nós descansaremos
abraçados,
Mas pelas noites suaves nossos passos
nos levarão até lá.
E ao vivermos nas terras do morubixaba
Caiuari,
Tudo será em comum, trabucaremos como os
outros e por todos,
Não haverá hora marcada pra comer nem
pra dormir,
Passaremos as noites em dança, e na
véspera das grandes bebedeiras
Nos pintaremos ricamente a riscos de
urucum e picumã.
Pouco a pouco olvidaremos as palavras de
roubo, de insulto e mentira,
A terminologia das nações e da política,
E dos nossos pensamentos afinal
desertarão as profecias.
Oh, doce amiga, é certo que seriamos
felizes
Na ausência deste calamitoso Brasil!...
Fecho os olhos... É pra não ver os
gestos contagiosos...
Ando em verdades que deviam já não ser
do tempo mais...
A nossa gente vai muito sofrer e tenho o
coração inquieto.
VI
Nós íamos calados pela rua
E o calor dos rosais nos salientava
tanto
Que um desejo de exemplo me inspirava,
E você me aceitou por entre os santos.
Erguer do chão um toco de cigarro,
Fuma-lo sem saber por que boca passou,
A terra me erriçava a língua e uma
saliva seca
Poisando nos meus lábios molhados
renasceu.
Todos os boitatás queimavam minha boca
Mas quando recomecei a olhar, ôh minha
doce amiga,
Os operários passavam-se todos para o
meu lado,
Todos com flores roubadas na abertura da
camisa...
O Sol no poente, de novo aurorai e
nativo,
Fazia em caminho contrário um dia novo;
E as noites ficaram luminosamente
diurnas,
E os dias massacrados se esconderam no
covão duma noite sem fim.
VII
É hora. Mas é tal em mim
o vértice do dia
Nesta sombra... Porque serás mais que os
rapazes,
E bem mais, muito mais do que as
amantes?...
Sombra!... Sombra de cajazeira
perfumada,
Saudando a minha inquietação com a tua
delícia!
Eu poderia dormir no teu regaço, ôh
mana...
Abri-vos, rincões do sossego,
Não cuideis que é minha amante, é minha
irmã!
Porém é muito cedo ainda, e no portão do
Paraiso
O anjo das cidades vigia com a espada de
fogo na mão.
VII (bis)
É uma pena, doce amiga,
Tudo o que pensas em mim.
Eu sei, porque acho uma pena
Também o que penso em ti.
Mesmo quando conversamos,
E uma pena, outras conversas
De olhos e de pensamentos.
Andam na sala, dispersas.
VIII
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e um branco
Ecoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
IX
Vossos olhos são um mate costumeiro.
Vossas mãos são conselhos que é
indiferente seguir.
Gosto da vossa boca donde saem as
palavras isoladas
Que jamais não ouvi.
Porém o que eu adoro sobretudo é vosso
corpo
Que desnorteia a vida e poupa as
restrições.
Oh, doce amiga! vossos castos espelhos
de aurora
Despejam sobre mim paisagens e paisagens
Em que passeio feito um rei sem povo,
Cortejado por noruegas, caponetes e
caminhos,
— Os caminhos incompetentes que jamais
não me conduzirão a alguém!...
X
Os rios, ôh doce amiga, estes rios
Cheios de vistas, povoados de ingazeiras
e morretes,
Pelo Capibaribe irás ter ao Recife,
Pelo Tietê a São Paulo, no Potengi a
Natal.
Pelo Tejo a Lisboa e pelo Sena a
Paris...
Os rios, ôh minha doce amiga, na beira
dos rios
E a terra de povoação em que as cidades
se agacham
E de-noite, que nem feras de pelo
brilhante, vão beber...
Pensa um bocado comigo na vasta briga da
Terra,
E nas cidades que nem feras bebendo na
praia dos rios!
Insiste ao pé de mim neste meu
pensamento!
E os nossos corações, livres do orgulho,
Mais humilhados em cidadania,
Irão beber também junto das feras.
XI
A febre tem um vigor suave de tristeza,
E os símbolos da tarde comparecem entre
nós;
Não é preciso nem perdoar nem esquecer
os crimes
Pra que venha este bem de sossegar na
pouca luz.
É a nossa intimidade. Um fogo arte,
esquentando
Um rumor de exterior bem brando, muito
brando,
E dá clarões duma consciência
intermitente.
A poesia nasce.
Tu sentes que o meu fluido se aninha em
teu colo e te beija na face,
E, por camaradagem, me olhas
ironicamente.
Mas estamos sem mesmo a insistência dos
nossos brinquedos.
E o vigor suave da febre
Não intimida os nossos corações
tranquilos.
XII
Minha cabeça poisa nos seus joelhos,
Vem o entre-sono, e é milagroso!
A vida se conserva em mim doada pelos
seus joelhos,
E sou duma inimaginável liberdade!
Ôh espíritos do ar que os homens
adivinham,
Dizei-me o que se evola do meu corpo!
Essa outra coisa vaporosa e brancacenta
Que não é fumo, nem echarpe,
Não tem forma porém não se desmancha
E baila no ar...
Todos os adeuses, todos os espelhos e
girandolas
Voltijam no espaço que se enche e
esvazia
Num tremor avido a esfolhar-se em pregas
sem dureza...
Abre a rosa oculta em sinais,
Manhãs em vésperas de ser,
Pireneus sem desejo, enquanto à
espreita,
Os objetos em torno me invejam
Buscando me prender na miséria da
imagem...
Oh espíritos do ar, dizei-me a rosa
incomparável
Que se evola reagindo em baile no ar!
Baile! Baile de mim no entre-sono!
Não é uma alma, não é um espírito do ar, não é nada!
E a outra coisa que baila, que baila,
que baila,
Livre de mim! gratuita enfim! fútil de
eternidade!
Ôh, brinca, brinca, minha melodia!
Sabiá da mata que canta a mei-dia!
Olha o coco, Sinhá!
ANDRADE, Mário de. Remate de Males. São Paulo: Eugenio Cupolo, 1930. p. 147-174
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