quinta-feira, 30 de julho de 2015

BITO

Florentina Esteves


Onde se visse um ajuntamento, uma rodinha, no centro estaria ele. Garotada do Ginásio, um que outro desocupado, quem fosse passando. Ah! é o Brito... E lá estava ele sentado no banco da praça, perto do Bar Municipal, na hora do costume. Paramentado.

– Por que essa roupa, Bito?
Calado.

– Bito, esses revólveres são de verdade?

Levava as duas mãos aos coldres, rapidamente. Certificava-se: estavam lá. Calado.

E essas botas, e as esporas, cadê o cavalo? Disseram que lá no Papoco tem um bandido que já matou três. Chiquita Peito-Mole mandou te chamar.

Imperturbável. Olhava a assistência, ar superior, alisava o colete franjado, cuidava que o lenço estivesse bem posto, tirava o chapéu, abanava-se. Penteava o cabelo, chapéu de volta. Sorria.

– Onde você comprou essa roupa de caubói, Bito? Vira um pouco, deixa a gente ver. Levantava do banco.

Então conta, Bito. Como foi aquela vez em que você enfrentou “Touro Sentado” e matou todos aqueles índios?

– Foi assim, começava ele: eu fui lá nos campos do Zé Português – ele mandou me chamar, foi o Ilson Ribeiro que trouxe o recado – tinha um touro brabo que ninguém chegava perto, andou dando umas corridas atrás da Libéria, espantando tudo que é vivente. Peguei o bicho, deis três laçadas, derrubei ele, segurei pelo chifre; aí, estava trazendo ele pro curral quando um bando de índios me rodeou. Montei no touro, comecei a atirar, assim (sacou os dois revólveres de plástico, rodou-os nos dedos, a cada estalido seco do gatilho pulava pra esquerda, pra direita). Matei todos eles. E quando chefe “Touro Sentado” partiu pra cima de mim, com esse foi no muque, botei pra correr. Nunca mais voltou.

Todas as tardes herói, mocinho, Bito caubói contava uma nova história. Anos seguidos (ou foram poucos anos?), lá no seu banco de praça, povoava imaginações, criava fantasias, enfeitava a vida.

Um dia não apareceu. Outro dia. Outros. Sumiu. E assim ficamos sem saber sua última aventura.

ESTEVES, Florentina. Enredos da Memória. Rio de Janeiro: Oficina do Livro Ed., 1990. p.73-74

EPÍSTOLA SOBRE O SUICÍDIO

Bertolt Brecht (1898-1956)


Matar-se
É coisa banal.
Pode-se conversar com a lavadeira sobre isso.
Discutir com um amigo os prós e os contras.
Um certo pathos, que atrai
Deve ser evitado.
Embora isto não precise absolutamente ser um dogma.
Mas melhor me parece, porém
Uma pequena mentira como de costume:
Você está cheio de trocar a roupa de cama, ou melhor ainda:
Sua mulher foi infiel
(Isto funciona com aqueles que ficam surpresos com essas coisas
E não é muito impressionante.)
De qualquer modo
Não deve parecer
Que a pessoa dava
Importância demais a si mesma.


BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000. p.24

terça-feira, 28 de julho de 2015

O (IN)DISPENSÁVEL SER

Inês Lacerda Araújo


Se algum escritor ou pensador se aventurasse a dispensar o verbo ser, conseguiria que seu leitor o compreendesse? Alguém poderia ousar eliminar "ser"?

Impossível, por inúmeras razões. "Ser", "être", "to be", e certamente nas diferentes línguas, algo semelhante à função de "ser" deve ocorrer.

Sequer questionamos, nem poderíamos, que conjugar tal verbo seja imprescindível (acabei de escrever "seja"...). Simplesmente porque nomear, é (novo uso do verbo ser) distinguir algo para que nós ou para que os outros nos compreendam. Identificar, classificar, opor, destacar, apontar, e muitas outras ações linguísticas requerem por detrás a pressuposição de que coisas, pessoas, lugares, temporalidades, situações, sejam, no sentido de existirem, de estarem aí à nossa disposição.

Desde que a Filosofia nasceu, a pergunta é pelo ser e pelo não ser. A mais essencial de todas as questões, como apontou Heidegger é essa: por que existe o ser e não antes o nada?

Mesmo no uso banal, e, talvez mais importante nesse mesmo uso cotidiano, "é", "era", "sou", "não é", "não sou", se apresentam o tempo todo. "Ele é", invoca quem, o que, como. "Isto é", acarreta indagar o que, como, e também, duvidar, afirmar, pressupor.

Sujeito, predicado e objeto: "Algo ou alguém é tal". Essa proposição, o núcleo da lógica e da gramática durante séculos, foi analisada como resumindo todo tipo de pensamento.

No sentido tradicional, o ser pertence à realidade entendida no sentido metafísico, quer dizer, como inerente a tudo. Ser ideal, ser substancial, ser como consciência de si, ser como ideia se autoproduzindo na história, ser aí no tempo, ser como existência humana, assim a filosofia rondou em torno ao SER.

Não mais. A Filosofia da Linguagem mais recente deslocou a questão para a diversidade dos usos do verbo ser na medida em que não identifica o verbo empregado na linguagem usual com o ser na acepção de que tudo é, tudo tem uma essência, de que todos os entes existem ou subsistem no ser.

Hoje a Filosofia retira do ser esse caráter absoluto e essencial, as coisas se dispõem para nós, para nosso uso e nosso conhecimento.

A afirmação "algo é isso", passou a ter um uso entre inúmeros outros. Para Wittgenstein, após quebrar a cabeça com a proposição geral que resumiria tudo o que é o caso, tudo o que ocorre, concluiu que é na e pela linguagem de todo o dia que faz sentido afirmar que algo é. E mais em um sem número de usos. Pense na comunicação entre falantes e como passa despercebido o verbo ser, e falar acerca do ser em si fica restrito ao linguajar do filósofo.

Indispensável no uso normal da linguagem, e dispensável ou como disse Wittgenstein, dissolvido enquanto eixo fundamental da metafísica. Assim é "ser", ou "o ser".

Faça o teste, pergunte para si mesmo "o que eu sou?"


* Inês Lacerda Araújo - Professora de Filosofia durante 40 anos, na UFPR, e nos últimos anos na PUCPR. Autora de livros sobre Epistemologia, História da Filosofia e Teoria do Conhecimento. Atualmente aposentada.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A GAROTA DE SAQUAREMA E A LENDA DO SURFISTA PRATEADO

Jorge Araken Filho


Solitário, em tempos de crise existencial, busco na paz da natureza um refúgio para as emoções que não sou capaz de expressar, uma fala para os sentimentos que se represaram na realidade, aprisionados pelo silêncio das palavras que não foram ditas. Nesse paraíso de sons e cores, busco oxigênio para os afetos que sufoquei no limbo do inconsciente, uma gratificação ilusória para os desejos que não ousei experimentar na realidade.

Nesse contemplar do belo, do efêmero, viajo na companhia dos pássaros, enfrentando esse temor pegajoso e disforme de conhecer o que sou por baixo da persona de conveniência que me veste no teatro da vida.

Mas é melhor gritar no meio dos pássaros, soltar os meus sintomas ao lado das orquídeas do que acumular lixo emocional e andar por aí, de mau humor, reclamando do destino que eu mesmo criei. Cansei de despejar os meus dejetos nas pessoas que amo.

Um dia desses, mais uma bela tarde do inverno tropical, caminhava por uma pequena estrada de terra, cercada de palmeiras e bromélias, últimos vestígios da Mata Atlântica em Saquarema, região dos Lagos do Rio de Janeiro.

Enquanto as folhas serpenteavam, arrancadas pelo vento traiçoeiro, que vinha do mar, os meus sintomas caíam dos seus refúgios, soltando-se do inconsciente, misturando o real e o imaginário, o simbólico e o concreto, numa metamorfose dos signos e significantes da minha existência, que foram sendo progressivamente ampliados pelos novos significados que a maturidade me impôs.

O meu mundo real, agora, depois de ver a criatura no espelho, parece a mistura do imaginário dos meus devaneios com os símbolos da linguagem que reaprendi na catarse dos personagens que aprisionava nas sombras, como personas estranhamente familiares, que reconheci no espelho, falando com os comigos de mim mesmo.

Begônias solitárias, algumas orquídeas e velhos cipós cercavam o caminho desse paraíso perdido, no litoral de Saquarema.

Jacarandás seculares, testemunhas silenciosas da biodiversidade da Mata Atlântica, cochichavam a minha presença com jequitibás-rosas e cedros:

— Lá vem aquele bicho doido, que fala sozinho! — sussurrava uma velha figueira, cansada da maldade dos homens, mas ainda enérgica, com grandes raízes, que afloravam, aqui e ali, no solo encharcado por um olho d'água ao lado da estrada.

Um pequeno beija-flor de peito verde e cauda alaranjada, sem se dar conta daquele ser humano indigno, que caminhava perdido, batia as suas asas aflitas, sugando, com rara felicidade, o néctar de uma camélia branca que insistia em ser bela, apesar do negrume dos meus tormentos.

Como seria a minha vida, se a sede de poder e bens materiais, a cobiça por reconhecimento e aceitação encontrassem numa bromélia atraente e acolhedora o ninho para descansar meus dilemas, o néctar para saciar meus desejos?

Perdido em pensamentos desconexos, que flutuavam, com estranha nitidez, em tempos passados, eu mergulhava, em progressões ritmadas pelo som da natureza, nas memórias das pessoas amadas, que enterrei ainda vivas, mas que, malogrado a minha injustiça, deixaram marcas no meu coração.

Completamente absorto, escutava o eco distante de ondas ferozes, que quebravam na areia, levantando breves redemoinhos na água, que divisava ao final da trilha estreita, que se afunilava a cada passo, como se a natureza retomasse seus domínios do homem.

O sol, que se refugiava do dia, cansado, iluminava o horizonte, com suas cores difusas, tons indistintos de vermelho e laranja, que tingiam as águas agitadas do Atlântico.

Egoísta, mesmo sem consciência disso, só desejava aquela solidão momentânea, que me concedia alguns minutos de contemplação do belo, sem me preocupar com os meus cabelos, com as minhas roupas ou com o meu jeito descuidado de falar sozinho, desafiando os seres invisíveis que me atormentam.

Mas o destino é caprichoso e sorrateiro...

Distraído por um canário, que atravessou o meu caminho, não percebi um vulto que acabara de sair de uma casa. Só o percebi depois de alguns segundos, quando passei em frente ao portão de madeira maciça, com a singela inscrição: "paraíso perdido". Aquele vulto não me viu, seguindo o caminho do mar azul turquesa.

Era um belo exemplar do sexo feminino, longos cabelos loiros, soltos ao vento, olhos azuis (assim os imaginei à distância), curvas perigosas, protuberâncias monumentais, vales profundos, reentrâncias e concavidades que me enfeitiçavam com o seu doce gingado, aquela malemolência cruel, quase sádica das mulheres que herdaram a beleza de Afrodite, mas possuem a impura concupiscência das sereias, que enfeitiçam os guerreiros e entorpecem os sábios.

Nem sábio, nem guerreiro, eu não passava de um menino, com seus carrinhos de plástico, diante daquela sereia que atormentava os navegadores incautos e solitários, inebriados por seu canto melódico. Sem a força de Odisseu, a caminho de Ítaca, sem a intercessão de Atena, acabei cativo da bela ninfa de Saquarema. Com ela, a Calipso da minha Odisséia, passaria sete anos perdido... Pobre Penélope! Haveria de permanecer, pelo resto das suas noites, frias e solitárias, desfazendo a mortalha, à minha espera, enquanto eu me deliciava com a encantadora Calipso, a ninfa do mar de Saquarema.

Ela caminhava, distraída, fumando seu beck, sem perceber que eu me aproximava, hipnotizado por seus encantos, derrapando os olhos pedintes e cobiçoso em suas curvas salientes e bem definidas.

Suas pernas, e que pernas... A obra mais divina da criação, longas e graciosas, grossas e firmes como um carvalho, voluptuosas como as de Afrodite. Não, que Afrodite que nada! Eram como os ébanos divinos das passistas de Escolas de Samba! Os seios eram majestosos, eretos e arredondados, daqueles de proporções hercúleas, que enchem bocas famintas de meninos fogosos. . . Nem vou falar do lindo bumbum, de boca gulosa, com um talho divino, que formava um vale profundo entre os Apalaches...

Precisaria de um livro inteiro para descrevê-la. Diria o poeta Austin Henry Dobson, no poema "To a Greek Girl": "a Dream of form in days of thought" ("um sonho de forma em dias de pensamento"). E que formas...

Nem os meus pensamentos mais longínquos e fantasiosos a teriam imaginado em traços mais perfeitos, nem nos meus delírios de prazer solitário, a cinco dedos, haveria de buscar inspiração em uma beleza assim tão delicada, quase divina, a serpente do paraíso, que oferece aos caminhantes solitários o fruto proibido, que dá voz ao inconsciente e desperta a libido sublimada pelos fracassos na arte do amor.
E como balançava aquele doce poema em forma de Ninfa. . . Parecia não perceber os mortais, como eu, que a seguiam, hipnotizados por seu canto silencioso, feito de gestos, aparentemente descuidados, quase imperceptíveis aos olhos femininos, mas vivamente capturados pelos sentidos de fera dos homens enjaulados em seus hormônios.

Ela talvez não tivesse consciência dos feromônios que marcavam seus passos de gata no cio, algo que sentia nas golfadas de ar, que invadiam os meus pulmões. Tá bem! Posso estar exagerando um pouquinho. Perdem-me, contudo, o eventual exagero! Aquele vapor barato, um leve odor de sândalo, que se misturava com a brisa do mar, deve ter entorpecido os meus sentidos, que nunca foram muito confiáveis diante de fêmeas no cio, principalmente dessas dançarinas do efêmero, musas dos poemas eternos, que carregam esses grandes e profundos apêndices no dorso.

Éramos só nós dois naquela estrada deserta, um paraíso perdido, com raras habitações, quase sempre de alto padrão, ocupadas pelos nobres da Cidade Maravilhosa, nos feriados e meses de verão.

Ela saiu de uma casa da praia, misto de sítio e Jardim do Éden, com árvores frutíferas e belas flores. No centro do terreno, numa parte mais elevada, ao final de uma grande alameda de plátanos e palmeiras imperiais, havia uma casa de dois pisos, com uma ampla varanda que a circundava.

A doce Calipso não percebeu que eu vinha ao longe, distraída, talvez, pela difícil tarefa de acender seu baseado. A brisa insistente, que vinha do mar, caprichosa e irritante, parecia ter vontade própria, brincando, teimosamente, com a chama do seu pequeno isqueiro prateado, que refletia a luz do sol nos meus olhos.

Logo que ela se virou em direção à praia, vi, por cima dos seus ombros, a fumacinha da paz, que subia, iluminada pelo sol, que baixava, sonolento, às nossas costas: "habemus cannabis" — pensei, sorrindo.

Ela seguia em direção à praia, com passos curtos e ritmados, enquanto desfrutava, em silêncio profundo, os efeitos inebriantes do seu pescador de ilusões. Nada melhor do que o Rio de Janeiro e seus encantos, para saborear pecados e aventuras que fazem da vida esse maravilhoso e caótico conto de fadas e duendes, de princesas e sapos, de monstros honrados e heróis sem caráter. Prefiro pecar sem pudor do que morrer de tédio no paraíso. Só percebi a felicidade, quando parei de julgar!

O meu plano era apenas caminhar pela estrada de terra que margeia a praia. Era... Antes de me encantar com aquele corpo dourado, a deliciosa e suculenta maçã do amor proibido... Finalmente entendi o Vinicius e sua Garota de Ipanema. Sem inspiração não nascem poemas, não se pintam quadros...

As palavras começaram a surgir, revoltas, sem forma, como as ondas do mar que divisava ao longe. Mentalmente, comecei a escrever este conto de uma tarde de verão... Escritores, como eu, encontram gratificação para os desejos mais profundos, mais secretos e proibidos nos personagens, que soltam, ao longo da narrativa, os instintos reprimidos pelo medo de enfrentar as sombras do inconsciente.

Continuei andando na direção daquela doce garota e seu balançar, que era muito mais que um poema, diria o bom e velho “capitão do mato Vinicius de Moraes, Poeta e Diplomata, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô”.

Mantive alguns metros de distância, para que os meus olhos traidores, cheios de verdade, não desfizessem as minhas ilusões de perfeição divina.

Depois de acender seu beck, a musa do paraíso perdido, com um leve menear da cabeça, enfim percebeu, visivelmente surpresa, que alguém se aproximava. Ela deve ter estranhado aquele penetra em sua festinha solitária. A estranheza inicial logo se transformou em incômodo.

Ela acelerou o passo, mas não conseguia desvencilhar-se do seu "perseguidor" (um ato falho, talvez). Por mais que as suas pernas se esforçassem para vencer o terreno, eu continuava por perto, devorando, com os olhos gulosos, cada pedacinho daquele corpo dourado. Antes que você pense algo terrível sobre mim, vou me defender, suspeitamente, embora, de certas insinuações: ando rápido, mesmo quando não tenho nada a fazer. Acredite, se quiser...

Continuei no meu ritmo, mas sempre me aproximando da loira misteriosa. Não sei exatamente o que se passava na cabecinha daquela Eva e seu cigarrinho proibido. Talvez pensasse em estupro ou, pior ainda, que eu fosse algum conhecido. Poderia ser alguém a revelar a indiscrição daquele cigarrinho mágico, o fruto proibido do paraíso, que inebriava um casal de pintassilgos pousados em uma mangueira anciã.

Sem diminuir o passo, ela olhou para trás, fixando-se nos meus olhos, para desvendar as intenções ocultas do seu estranho "perseguidor". Não me reconheceu, como era de se esperar. Embora eu sempre caminhasse por ali, nunca havia cruzado os seus caminhos. E teria me lembrado daquela ninfa, se os nossos olhares, mesmo por um breve instante, houvessem se encontrado.

Diante da dúvida, ela apertou o passo e, quando nada lhe restava, a não ser o desespero, começou a correr.

Hesitei de início, sem saber como reagir. As palavras não saíam da garganta, sufocadas pelo despertar de um sonho.

Ela deu um grito, que rompeu o silêncio da tarde:

— Pedro, me espera!

Os canários permaneceram mudos, testemunhando o horror daquela jovem feiticeira do amor.

Com o coração palpitando, quase saindo pela boca, continuei a caminhar. Sem entender os motivos, diminuí o passo, culpando-me, talvez, por tê-la assustado, ou entorpecendo-me, quem sabe, por acordar tão subitamente da ilusão do amor correspondido (eu a imaginava num longo beijo, trocando os doces e inebriantes fluidos do amor).

Os meus pés pareciam ter vontade própria, seguindo adiante, enquanto o diabinho do ouvido esquerdo, ardilosamente disfarçado de anjo, me dizia para voltar no meu próprio rastro.

Depois de alguns segundos de lenta agonia, percebi que tínhamos companhia: a cerca de duzentos metros estava um rapaz alto, sem camisa, com uma longa prancha de surfe, que a aguardava no portão de uma bela casa de frente para o mar.

Ela correu em busca do herói, desesperada pelos braços fortes e acolhedores daquele jovem, que a recebeu com certa perplexidade. Eles se abraçaram, com um beijo no rosto, trocando algumas palavras, que não pude ouvir. O cigarrinho encantado, abandonado durante a corrida para a salvação, ainda soltava seus vapores, em ondas que serpenteavam no ar, levadas pela brisa úmida do oceano.

Ao passar pelo casal, pensava no medo profundo, quase histérico, que a violência causa nos seres humanos, transformando em malfeitores hediondos os mais inofensivos animais, como eu. Será que sou mesmo inofensivo, começo a me perguntar...

Naquele instante, nasceu um herói. Eu poderia ter esclarecido o engano daquela jovem, mas deixei que o herói do paraíso perdido, o Odisseu da minha Calipso, desfrutasse sete anos de prazer na ilha de Ogígia.

Mas, enfim, o que seria do herói sem o vilão? Alguém consegue esquecer de Darth Vader, do Coringa ou de Hannibal Lecter? E do coiote do desenho animado? São todos vilões, seres que odiamos amar ou que amamos odiar. Por que eles permanecem em nossos corações, muitas vezes até mais do que os heróis?

Ora, porque esses pontos fora da curva, esses rebeldes incompreendidos, arquétipos da maldade, representam as nossas sombras, o submundo de crueldade que preferimos ver nos outros, e não em nós.

Inicia-se, na fantasia que dialoga com o nosso próprio mundo psíquico, uma verdadeira batalha épica que reproduz, através dos arquétipos humanos do herói e do vilão, do bem e do mal, a luta entre os princípios do prazer e da realidade, entre o id e o superego, pelo controle do ego e do que vai se tornar consciente.

De um lado, a complexa maldade dos vilões, seres de inteligência maquiavélica, com desejos impulsivos e inesperados, além de profundo desprezo por convenções sociais e limites éticos. Estes representam o nosso próprio id, que é governado pela busca do prazer.

De outro, a tediosa moralidade dos heróis, figuras simples, em sua infinita nobreza, com preocupações éticas e morais, atitudes sempre bondosas e sem o calor do inesperado. Estes representam o papel do superego, que simboliza a realidade e seus limites.

Através deles, exorcizamos de nós mesmos, através das lendas e mitos, e em nome do princípio da realidade, os nossos próprios demônios.

O vilão começa vencendo, ou seja, o id obtém prazer nas suas vitórias fugazes, mas, ao final, o bem prevalece, com a derrota do mal, mesmo provisória, que satisfaz o superego e suas preocupações morais.

Em meio a essa batalha épica, o ego do leitor ou espectador das lendas e mitos consegue conciliar as suas forças internas, harmonizando o prazer com a realidade. Mais que isso, gratifica as pulsões mais primitivas e os desejos reprimidos no inconsciente, experimentando o prazer possível diante das exigências castradoras do superego, descarregando, assim, a pressão interna.

Na verdade, só desprezamos os vilões, porque eles se identificam com uma certa criatura que reprimimos dentro de nós mesmos...

Preferi criar o herói, tornando-me o vilão...

Passei tão próximo daquele Tarzan e sua Jane, que conseguia escutar a respiração do herói e da mocinha indefesa, a virgem dos lábios de mel (aceite, que é melhor: o conto é meu, portanto ela era virgem e gostosa). Com uma leve contração dos lábios, tentava manter o ar de mistério, para não demonstrar a excitação da minha libido naquele encontro furtivo. Não sei exatamente o porquê, mas fazia esforço, para não dar pistas do meu desejo de fazer amor com a Eva do paraíso perdido.

No mais profundo e respeitoso silêncio, contudo, prossegui no meu caminho, olhando as ondas que lambiam a areia da praia.

Só um coração partido consegue entender a poesia daquela musa de Saquarema, a mulher do corpo dourado que nunca toquei. Se a houvesse tocado, o encanto se desfaria nas areias daquela praia deserta, e ela, a etérea e indefinível sereia, que foi a razão de tantos naufrágios em corações humanos, deixaria de ser um sonho para se tornar uma realidade muito distante das minhas fantasias.

E assim nasceu a lenda do surfista prateado de Saquarema...

Quanto a mim, já que não pude ser o herói, tornei-me o vilão...

quinta-feira, 23 de julho de 2015

MUGE O BOI, CHORA O HOMEM

Isaac Melo


era uma vez
na terra de Galvez
era uma rês
Chico Mendes
a lenda
negociaram
trocaram
por aquilo que rende
ideais à venda
produto de exportação
na feira de Milão
moeda de troca
promissória da oca
enquanto isso a floresta
comemora em festa
e é um e é dois
viva os bois
madeira certificada
mata empenhada
e as flores em agonia
sem florestania
sim, mentiram
cala-te, eles atiram
e chega a exposição
a imposição
o Acre exposto
servido a tira-gosto
aos sócios
do agronegócio
e tudo sucumbe
pelo dinheiro ou pelo chumbo
nem mapinguari aguenta
se afugenta
tangido pela pata
que incendeia e mata
porém, muito perto
é certo
muge sincera
a miséria
mas esse mugido
no palácio não é ouvido

quarta-feira, 8 de julho de 2015

56 ANOS DE VIDA LITERÁRIA DE ROGEL SAMUEL

“Mas eu festejei neste ano solitariamente os 56 anos de minha vida literária. O primeiro poema publiquei no 8 de fevereiro de l959, em O jornal de Manaus. Fiz versos como: “o vento/ o córrego entre as montanhas / a lua líquida / sobre a superfície”. Os lugares-comuns de sempre, ou seja, eu poetizei a "poesia" com os chavões conhecidos de que não me libertei até hoje.

Sim, festejo silenciosamente os 56 anos de minha profissão de escritor. Não escrevo com tristeza, mas com certa vitória. Afinal, há quem não tenha tido isso de vida. Pois, como escreveu Nietzsche que vi citado num blog outro dia: “Temos a arte para não morrer da verdade”.

Continuo escrevendo.” Rogel Samuel

Visite aqui a página do autor
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com.br/

DA COMPLACÊCNCIA DA NATUREZA

Bertolt Brecht (1898-1956)


Ah, a jarra de leite espumante inda busca
A boca babosa e sem dentes do velho senhor.
Ah, na perna do assassino que foge
Esfrega-se o cão à procura de amor.

Ah, o homem que fora da aldeia abusa da criança
Ainda recebe dos olmos a sombra gentil.
E suas pegadas sangrentas, bandidos, graças
À poeira cega e risonha ninguém viu.

E também o vento, aos gritos náufragos no mar
Mistura o sussurro da folhagem na orla
E levanta cortês o avental pobre da moça
Para que o forasteiro com sífilis a aprecie melhor.

E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.

Ah, como brilha o olho claro da criança
Vendo o pai deitar à terra o boi e sacar o punhal!
E como arfam as mulheres o peito onde mamaram seus filhos
Vendo as tropas cruzarem a vila ao som da banda marcial.

Ah, nossas mães têm seu preço, nossos filhos se aviltam
Pois os marujos do barco que afunda anseiam qualquer pedaço de chão
E o moribundo só implora do mundo poder ainda lutar e
Alcançar o canto do galo e enxergar da aurora o primeiro clarão.


BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 44

sábado, 4 de julho de 2015

AI DE VÓS, DOUTORES DA LEI E FARISEUS HIPÓCRITAS!

José de Anchieta Batista
Página 20


Faço questão de iniciar esta crônica dizendo que nada aqui é direcionado a dirigentes ou a Igrejas que trilham os caminhos de Deus, na verdadeira prática do bem e do amor ao próximo, agindo com seriedade, decência e responsabilidade. Sejam cristãs ou não.

Dito isto, passo a afirmar que sou um homem que acredita piamente na existência de um Poder Superior, consciente e inteligente, que rege, minuciosamente, a dinâmica de tudo o que existe. Um Ser Supremo que rege realmente tudo, desde o micro até o macro. Esta certeza não é uma herança de minha longa passagem por um seminário católico. Vem do mais profundo de minha alma.

Lembro-me de que, uns cinco anos após abandonar a vida eclesial, comecei a duvidar de tudo. Até mesmo de Deus. As novas leituras a que me dediquei, um novo mundo de atrações mundanas e as novas amizades antideístas, puxavam-me para isso. Mesmo assim, enquanto os lábios blasfemavam, com força, “Deus não existe!”, a mente bradava intimamente “perdão, meu Deus!”. Era aquela coisa de jovem, metido a intelectual, querendo aparecer, principalmente diante dos outros.

Passadas algumas estações da vida, veio-me novamente uma vontade enorme de me encontrar com Deus. Fui ao seio das religiões. Mais uma vez, conflito total! Talvez isto só tenha acontecido comigo, mas me convenci, sob todos os aspectos, de que ali dentro das igrejas, dificilmente as orações e os cânticos conseguiam ultrapassar a cumeeira dos templos. Basta! – gritei eu para mim mesmo. E, novamente, me afastei de tudo, sem, todavia, abominar a existência de um Poder Universal, com domínio total sobre tudo o que existe. Continuei alheio a qualquer culto religioso, mas sempre com profundo respeito à fé daqueles que professam esta ou aquela doutrina. Nesta caminhada, desisti de procurar um Deus fora de mim, para buscá-lo no mais íntimo de meu ser. E ali estava Ele! Infinito, divino, paterno, cheio de amor! E eu, uma poderosa fagulha Dele!

Como disse acima, respeito todas as religiões. Vejam bem: eu as respeito! Quando simplesmente as toleramos, muitas vezes o fazemos altamente incomodados. Quando, porém, as respeitamos, há um sentimento de fraternidade.

Amigos, nos dias atuais, sinto que estamos diante de uma realidade perversa. Por mais fraternidade que pratiquemos, por mais que sejamos respeitosos e tolerantes, está bem difícil conviver com algumas religiões que não possuem um mínimo de respeito para com seus semelhantes. São aglomerações, ditas religiosas, sob o comando de verdadeiros estelionatários, com fins meramente comerciais, e que se contrapõem aos mais rudimentares princípios das divinas mensagens cristãs. A visão que hoje tenho dessas denominações, que vêm surgindo aos montes ultimamente, é a de que alguns “vivaldinos”, autênticos criminosos, subjugam a mente de pessoas desesperadas, incautas e ignorantes, a fim de fazerem proliferar suntuosos shopping centers da fé, cuja preciosa mercadoria é um falso Jesus de Nazaré. E não ficaram somente nesta prática. Passaram a incentivar atos de violência contra aqueles que se abrigam em outros credos, sob o argumento de que somos todos demônios e que, por isso, devemos ser eliminados da face da Terra. Que é isso, ó Deus? Onde chegamos? Diante desses falsários, de pregações espúrias, lembro-me de que os religiosos da época de Cristo o acusaram, o condenaram e o mataram. Dois mil anos depois, temos que conviver com os mesmos mercadores do templo, os mesmos fariseus, os mesmos escribas, os mesmos doutores da lei!

Expostos a essa alcateia, parece que estamos diante de um beco sem saída. As leis brasileiras são absolutamente lenientes e permissivas para com esse bando de criminosos e contraventores, que além de se locupletarem com o suor alheio, vendem a utopia da prosperidade fácil, teatralizam prodígios, zombam de nossa sociedade, sem darem bolas para a decência e para os bons costumes. Esses falsários cobram o “imposto” do dízimo com muito mais rigor do que são cobrados os tributos administrados pela Receita Federal. Amparados por uma abusiva imunidade tributária para “templos de qualquer culto”, criam um igarapé que deságua em seu patrimônio pessoal. Dessa forma, alcançam vultosas fortunas, como se o milagre dos cinco pães e dois peixes acontecesse todos os dias. Na tela da TV, meio de comunicação em que investem fortunas e mais fortunas, o mais importante não é a mensagem bíblica, mas as contas correntes onde deverão ser depositados os recursos implorados pateticamente. São ricos, podres de ricos, e vivem nababescamente, custeados por suas pobres ovelhinhas, sem se lembrarem de que o Cristo viveu na Terra “sem ter onde reclinar a cabeça” (Mateus, 8:20). Não há um só local em que eles não plantem seus tentáculos, principalmente em busca de parcela dos míseros salários das pessoas. Há exemplos de humildes criaturas que repassaram para os tais salvadores de almas, veículos, televisores, terrenos, casas e outros bens, a fim de satisfazerem a ganância dessas aves de rapina. São os “sepulcros caiados”, a “raça de víboras”, que não conseguem escutar as muitas advertências do Cristo:

“Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas, com o pretexto de prolongadas orações! Por isso, sereis mais rigorosamente julgados.” (Mt. 23).

Amigos, esses meliantes resolveram agora acender as chamas do ódio, do desrespeito, da intolerância, contra os que são praticantes de outros cultos. Li uma notícia de que na Paraíba, alguns psicopatas de um “reduto religioso”, além de já terem promovido um quebra-quebra de imagens, comparecem às escolas e, durante o recreio, aterrorizam crianças, alertando-as de que frequentar a Igreja Católica significa virar churrasco no inferno. Nesta semana, assisti a um vídeo em que um maluco incita alguns jovens a promoverem desordens em templo afro-brasileiro, alertando-os para fugirem com a chegada da polícia. Outro, manda atacar os homossexuais. Em outra parte de nosso País, sob a influência de sermões demoníacos, apedrejaram uma criança de 11 anos, que retornava de um Centro de Candomblé, acompanhada de sua avó. Outras e outras insanidades têm sido incentivadas por esses imbecis que se autointitulam “profetas de Deus”. Disseram-me que aqui no Acre, já se iniciaram as insinuações e até incursões contra algumas comunidades religiosas, sobremodo o Santo Daime e os cultos que tiveram origem na cultura negra. Um absurdo!

Enquanto tudo isso acontece, temos o bom exemplo do Padre Massimo Lombardi, que busca incentivar uma convivência pacífica e fraterna entre os Cristãos de Rio Branco, procedendo reuniões ecumênicas e até editando uma Cartilha com o expressivo título “Muitos São os Caminhos de Deus”. Parabéns, padre!

Um grupo, contudo, nos traz pavor. Lamentavelmente, instalou-se entre nós um fundamentalismo que cresce mais e mais, sob o manto de uma hipócrita e satânica religiosidade, sem que a sociedade brasileira saiba o que fazer para frear a maldade desses “lobos em pele de cordeiro”. Em algum local de nossos códigos, com certeza, devem estar catalogados os crimes e as contravenções que esses meliantes praticam. O pior de tudo é que ninguém em nosso País tem a coragem de colocar inseticida neste vespeiro. Ninguém se mexe para coibir o avanço desses caras. E eles, ao se intitularem pastores, bispos, apóstolos, missionários, ou sei lá o quê, julgam-se impunes e seguem em frente, saqueando nossa gente. Que me perdoe o verdadeiro Cristo, mas passei a vê-los como mensageiros do capeta. Será que ninguém percebe que eles estão ocupando “a cátedra de Moisés”, citada por Jesus? Será que não se percebe que, com suas maquinações, estão conseguindo dominar considerável parcela das instituições de nossa sociedade? Hoje, por perspicazes que são, já têm influência, às vezes majoritária, em todos os poderes constituídos, o que pode gerar mudanças que nos proporcionem um País que, em nome de Deus, seja obrigado a adotar o apedrejamento, o lançamento de homossexuais e prostitutas do topo dos edifícios, a decapitação, a submissão primitiva das mulheres e muitos outros males terríveis, tudo sob o comando desses malucos. Ou acham que isto é impossível e que o maluco sou eu?

Está na hora de se fazer alguma coisa! Não, com os métodos de violência por eles sugeridos, mas por meio de ações judiciais, contra a incitação à intolerância, ao desrespeito, ao ódio, absurdos estes que têm acontecido de maneira crescente nos últimos dias.

É preciso a imediata união dos verdadeiros evangélicos, católicos, kardecistas, daimistas, seguidores do Candomblé, praticantes da Umbanda, budistas, etc., para que esta praga dos últimos tempos encolha suas garras malditas.

Vamos concluir com uma citação bíblica:

– “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores …” (Mateus 7:15-20).


(*) Escritor, Poeta, Viajor do tempo e do espaço

sexta-feira, 3 de julho de 2015

MEMORIAL DO SEGUNDO DISTRITO (autobiográfico)

Fátima Almeida

Parte 1


Amanhecia. Olhei em direção ao Sol que parecia uma gema de ovo, de ovo como antigamente, vermelha e em sua volta a serração tão branca que parecia claras em neve. Passei a infância ouvindo aquele batedor manual feito de fios grossos de aço em espiral com cabo de madeira, na minha casa e na casa de Tia Palmira, a segunda casa onde passava a maior parte do tempo.

Raramente acordava tão cedo, só para acompanhar meu pai que, muito cedo, ressoando o chiado da sola do seu sapato no chão de tábuas lisas, dava sinais de que iria ao mercado antes de sair para o trabalho. Todos os dias era preciso ir ao mercado comprar a carne e as verduras.

Nesta manhã eu tinha um encontro com a Ivanilde, amiga de colégio, e sua mãe que iriam para o Catuaba. Eu nunca tinha ido a um seringal, e só ouvia histórias contadas pelas filhas do Aprígio Barros, que pareciam ter seus pensamentos sempre voltados para o Piratini e para o Bagaço, seringais da família.

A viagem, descendo junto com a correnteza num barco com motor de popa, não demorou muito, talvez uma hora e meia, duas horas. Então adentramos a casa que deveria ter sido do gerente, pois o barracão e a sede, conforme ouvia falar que existiam nos seringais, não existiam mais. E ali passamos alguns dias. Aprendi a manejar um remo e foi a atividade que eu mais gostei, passava o tempo atravessando o rio, pois era verão. Gostava de manejar o remo como um freio, fazendo a montaria, como todos chamavam aquelas canoas esculpidas em troncos de árvores, revolutear e girar em qualquer direção que quisesse. Mas não adentrei nas matas, nem mesmo conheci as estradas de seringa, porque elas não existiam ainda, para mim, como informação. Isso só passou a fazer parte do meu conhecimento muito depois. Particularmente gostei de dormir em rede, as noites eram frescas. Não lembro mais o que comemos, pois naquele tempo não tinha essa coisa de reportar tudo e, por isso, anotar tudo, na mente. Devemos ter comido galinhas, pacas, carne de porco talvez.

Estive num seringal, já nesse período em que estavam inertes, ou seja, sem mais a movimentação da empresa extrativista, apenas duas vezes. Acredito que muitas, entre as pessoas que residiam em Rio Branco, nunca estiveram num seringal sequer uma vez.

De modo que vivi em meio ao movimento comercial. Desde cedo era forçada a ler nomes em árabe, conforme as tabuletas que ficavam penduradas no meio das marquises das lojas, por pequenas correntes, que balançavam quando ventava muito, fosse por causa de uma chuva eminente ou de uma friagem que aportava. Algumas lojas, porém não tinham tabuletas, porque não tinham marquise, claro.  A do Seu Omar Sakur, do Abdon Abud e outras.

Mas o odor da borracha era inconfundível reaparecendo, todos os anos, nos meses de dezembro e janeiro quando as chuvas eram torrenciais e o nível do rio atingia vários metros, parecendo um bicho muito gordo que ficava lambendo os beirais dos barrancos, muito altos no verão, por onde subíamos e descíamos, fosse para ir pescar sardinhas, fosse para tomarmos banho de rio. Nesse período também chegavam os navios oriundos de Belém com mercadorias de todo tipo, tais como sal, açúcar, camarões, manteiga e banha em latas bem grandes, biscoitos e bolachas em latas também enormes, como ainda, o querosene, muito utilizado, lampiões, candeeiros, cuias para se tomar tacacá, refrigerantes, cebolas, batatas, bebidas em geral, e, sobretudo, comidas enlatadas, os petit pois. Das bebidas, Quinado, Uísque, cerveja Antártica, Cinzano, cachaça Cocal. E também chegavam as latas grandes e redondas com os filmes que ficavam em cartaz, nos dois cinemas, por um a dois meses.

Sempre que víamos um homem encurvado e pobre, com roupas que não podíamos discernir, de tão usadas, sapatos rústicos feitos em casa, de látex, nem precisávamos falar, era um seringueiro. Mas não tínhamos comunicação com esses tipos que, em geral, eram vistos como seres inferiorizados. Mesmo porque eles andavam nos beirais daquela agitação proto-urbana, esgueirando-se, ocultando sob seus sacos que seguravam com uma das mãos rente às costas. Quanto aos demais trabalhadores, não, tínhamos comunicação, até afetiva, pela convivência, como era o caso dos estivadores, carregadores, barbeiros, alfaiates, costureiras, sapateiros, tratados com o mesmo respeito com o qual se tratava os turcos donos das lojas comerciais, os homens mais poderosos do lugar.

Mas o principal foco para onde todos se concentravam, era a escola, porque nela nos projetávamos. As nossas notas eram nosso passaporte para o futuro, e isso era muito claro em nossas consciências. No nosso caso, moradores do Segundo distrito, da capital Rio Branco, aquela escola que ainda existe, aquela da Rua 24 de janeiro. Aliás, esse lado do rio foi o mais proeminente durante todo esse tempo em que não existiam rodovias que ligassem o nosso Estado ao resto do país. Nesse lado, foi onde tudo teve seu início, prefeitura, delegacia, receita federal. E por isso, as sua três ruas principais eram alusões as datas históricas do processo de tomada desse território que pertencia à Bolívia, desde quando ela mesma fazia parte do império colonial espanhol. A Rua 6 de agosto, em cuja primeira casa, elegante, morava Mário de Oliveira, logo em frente a do farmacêutico Seu Lopes, português, em seguida, o velho  Mamed, que possuía um prédio de madeira onde várias famílias moravam de aluguel em seus apartamentos, o Centro Espírita do Seu Chiquinho, a casa da professora Marieta, mulher do Arigó, Dona Alzira Jansen, seu Jorge Fecury, a família Zeque que possuía uma loja de móveis muito chiques, e vendia as novidades, como os primeiros brinquedos movidos a pilha, Seu Borges, e outros que não lembro agora.  A Rua 17 de Novembro, data da assinatura do Tratado de Petrópolis, era a rua do comércio e a 24 de Janeiro, término da batalha contra o exército boliviano, já citada, onde residiam as famílias do Seu Edson Martins e do Vavá, empresário nesse ramos de exportações, da Dona Ida, do Tufic Assmar, da Dona Estelita Pimentel, enfermeira de mão cheia, além da escola, sendo que na maior parte dessa rua ficavam os fundos das lojas das rua da frente, a do comércio, já citada.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

PRESIDENTE DA ACADEMIA ACREANA DE LETRAS CONVIDA O POVO DO ACRE AO USO DO GENTÍLICO ACREANO

Luisa Galvão Lessa
Presidente da Academia Acreana de Letras


Por que o povo do Acre escreve com /i/ o seu gentílico? A resposta a essa pergunta não encontra eco na história, na tradição, nos tratados linguísticos. Assim, não há lei capaz de mudar o gentílico de um povo. Nós somos ACREANOS. Vamos respeitar um gentílico que faz parte dos costumes, história, tradição do Acre há quase dois séculos.

Alguém poderia responder o seguinte: o Acordo Ortográfico nos obriga a isso. A resposta: NÃO É VERDADE. Ainda não tivemos o Acordo Ortográfico sancionado por todos os países da lusofonia, embora aprovado em 1990, encontra-se, hoje, em discussão no Senado Federal. Acordo significa que todos concordam. Não é o que acontece.

Esse Acordo Ortográfico foi aprovado em 1990, há dez anos, mas nem todos os países da lusofonia o homologaram. Há grande resistência a ele nos três continentes. Portanto, quando alguém abole o trema, porque o trema é desnecessário, está cometendo uma violência. Igualmente quando alguém escreve ACRIANO está atentando contra a nossa identidade, cometendo uma violência à cidadania acreana. Ademais, essa mudança se configura como uma atitude discriminatória, porque o Acordo Ortográfico ainda não está em vigor.E, mesmo que estivesse, não nos obrigaria a romper com as nossas tradições, que estão acima de todos os acordos.

Ditas essa palavras iniciais, compreende a Academia Acreana de Letras que o gentílico acreano é forma consagrada pelo uso regional desde o século XIX, segundo dados colhidos nas obras: Revista do Instituto do Ceará - ANNO XLIV – 1932; Revista do Instituto do Ceará - ANNO LIII – 1939; Revista do Instituto do Ceará - ANNO LIV – 1940; em Subsídios para a História do Alto Purus e Separata da Revista do Instituto do Ceará, Tomo LIV – Ano LIV -- Editora Fortaleza, de autoria de Soares Bulcão.

Também esta Casa cotejou o Folheto Unitas, publicado na typ. e Enc. de A. Loyola, 8 Pará, 1900, em cuja capa traz os seguintes dizeres: “ A Questão do Acre. Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana  ao venerando Presidente da República Brazileira, ao povo brazileiro e às praças do commercio de Manaos e do Pará”, com a seguinte legenda: “Os brasileiros livres nunca serão bolivianos”. Independência ou Morte! Viva o Estado Independente do Acre!

Esta Corte, parafraseando a patriótica legenda, diz: “Somos acreanos, nunca acrianos! Isso porque no ano de 1900,  em março, no Pará, um grupo de revolucionários formou a “Comissão Acreana”, em defesa deste solo até, então, boliviano. Neste grupo estavam os nobres heróis criadores do gentílico acreano: Antonio de Sousa Braga, Rodrigo de Carvalho e Gastão de Oliveira. Concordaram e secundaram o manifesto: Hypólito Moreira, Pedro da Cunha Braga, Joaquim Alves Maria, Manoel Odorico de Carvalho, Antonio Alencar Araripe, Joaquim Domingues Carneiro, Luís Barroso de Sousa, Francisco Manuel de Ávila Sobrinho e Raimundo Joaquim da Silva Vianna.

Considera a ACADEMIA ACREANA DE LETRAS que um gentílico não se muda por força de Acordo, Decreto, Lei, porque um gentílico pertence à população do lugar, é nome sagrado que se guarda como um tesouro raro, que dá voz ao adjetivar um povo. E nesse particular, consagrou-se no meio linguístico, em todos os tempos, as sábias palavras do grande gramático Fernão de Oliveira (1536) que “os homens fazem a língua, e não a língua os homens”. Assim, segundo o mestre, “cada um fala como quem é”. E, aqui, no extremo oeste do Brasil a população é acreana, desde o nascimento.

Concluindo, o próprio Acordo diz que os nomes registrados e aqueles que guardam tradições e costumes permanecem inalterados. Por tudo isso, as Ciências Humanas, por mais magníficos e atraentes que sejam seus argumentos lógicos e dialéticos, não propiciam arcabouço seguro para tirar dessa terra acreana o seu gentílico consagrado: acreano. Dito isso tudo, conclamo os acreanos à preservação do nosso gentílico em todos os meios de comunicação, com maior força nas redes sociais.