domingo, 31 de outubro de 2010

O QUE A FILOSOFIA PERMITE REALIZAR?

Profª.  Inês Lacerda Araújo
FILOSOFIA DE TODO DIA


Quando se fala em filosofia, logo vem à mente algo complexo, abstrato e inútil. Coisa da cabeça, dizem. Nada prática.

Na última postagem publiquei a estátua do Semeador para ilustrar a filosofia como ação, como atividade, semear ideias, conceitos, novas visões, modos de nos compreendermos, de avaliar situações e lidar com elas de forma mais investigadora e instigadora.

A filosofia se volta para ela mesma, para a sua história, e repensa seu papel, leva-nos a aprender com a realidade e a apreendê-la, isto é, pensar o real e transformar algo nas pessoas, a semente da pergunta, da indagação.

Ela proporciona conceitos para uma melhor compreensão de três áreas:

1. A ética e a política. O filósofo emblemático é Aristóteles para entender porque ética e política estão relacionadas. A sociedade política é um bem de e para todos, o homem como animal social, tem o senso do bem e do mal, do justo e do injusto. A sociedade política é uma reunião de pessoas para promover o bem viver; é preciso que o Estado proporcione uma vida feliz e virtuosa, que seja conduzido por um piloto que entenda de navegação. Diz Aristóteles em A Política:

Quando o monarca, a minoria ou a maioria, não buscam senão a felicidade geral, o governo é justo. Mas se visa ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio (p. 93). É impossível um Estado feliz se dele a honestidade for banida (p. 49).

2. A cultura. Vejamos o que diz Nietzsche: é preciso coragem para romper com valores gastos e estabelecidos. Reinventar valores cabe ao poeta solitário, capaz de dispensar a moeda gasta, de associar conceitos às necessidades e atribulações. A cultura sofre, foi banalizada, tudo está a serviço da barbárie, até mesmo a arte e a ciência (cf Considerações Contemporâneas, p. 74). Há que fugir do conformismo, do é assim mesmo, e penetrar nos difíceis caminhos do "eu assim o quis" (moral do forte).

3. As práticas humanas. Nasceram na história, e têm uma história, muita vezes cruel. Foucault mostra que o modo como o sujeito humano moderno se constitui, depende de práticas como as da prisão, hospitais, invenção da psiquiatria, das ciências humanas, que servem para conhecer o homem, e, ao mesmo tempo domesticá-lo. Em Vigiar e Punir Foucault analisa como o saber produz poder instalado em práticas como o castigo para o escolar, a prisão como forma generalizada para punir, o surgimento de instituições que dependem de vigilância. Esse é tema para próxima postagem.

Pensar não é pouca coisa...
 
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* INÊS LACERDA ARAÚJO - doutora em Estudos Linguísticos, filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sábado, 30 de outubro de 2010

MINEIROS DOS BONS!


O Skank nasceu em 1991, em Belo Horizonte, capital das Minas Gerais, que deu orgulho ao Brasil de ter alçado ao mundo nomes como Milton Nascimento, Sepultura e tantos outros. Samuel Rosa (guitarra e voz), Henrique Portugal (teclados), Lelo Zaneti (baixo) e Haroldo Ferreti (bateria) reuniram-se em torno do mesmo interesse: transportar o clima do dancehall jamaicano para a tradição pop brasileira. O primeiro álbum , “Skank”, foi lançado de forma independente, em 1993, mas rapidamente o sucesso da banda na cena underground despertou o interesse da poderosa Sony Music. Junto ao Skank, a multinacional inaugurou no Brasil o selo Chaos.
Site oficial do Skank.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), poeta, contista e ensaísta escreveu algumas das mais importantes obras literárias do século XX, entre as quais: Ficções, O Aleph, O informe de Brodie e O livro dos seres imaginários. A publicação de História Universal da Infâmia, em 1935, seu primeiro texto de narrativas de ficção, o consagrou como um dos maiores nomes da literatura na América Latina. O livro, por um lado, revela a preocupação social de Borges, voltado à denúncia de uma sociedade para ele incorregível; por outro, a descoberta de um novo caminho aliado à concepção que ele tem de seu fazer literário. O conto abaixo integra o referido livro.

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HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM
- Jorge Luis Borges -

O historiador árabe El Ixaqui conta este fato:

“Dizem os homens dignos de fé (mas só Alá é o onisciente, poderoso, misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem muito rico, mas tão magnânimo e liberal que perdeu todas as riquezas, menos a casa de seu pai, e se viu forçado a trabalhar para ter o que comer. Trabalhou tanto que o sono, certa noite, o venceu debaixo duma figueira de seu jardim, e no sonho viu um homem gordo que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: ‘Tua fortuna está na Pérsia, em Isfajan; vai buscá-la’. Na madrugada seguinte ele acordou e empreendeu uma longa viagem e enfrentou os perigos do deserto, dos navios, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfajan, mas no centro dessa cidade foi surpreendido pela noite e se estendeu para dormir no pátio duma mesquita. Junto da mesquita, havia uma casa e, por vontade de Deus Onipotente, um bando de ladrões atravessou a mesquita e se meteu na casa, e as pessoas que dormiam despertaram com o barulho dos ladrões pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão da guarda-noturna daquele distrito acudiu com seus homens e os bandoleiros fugiram pelo terraço. O capitão mandou investigar a mesquita e nela deram com o homem do Cairo e lhe aplicaram tantos golpes com varas de bambu que ele andou perto da morte. Dois dias depois recobrou os sentidos na prisão. O capitão mandou buscá-lo e lhe disse: ‘Quem és e qual é a tua pátria?’ O outro declarou: ‘Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi’. O capitão perguntou: ‘Que te trouxe à Pérsia?’ O outro decidiu-se pela verdade e falou: ‘Um homem me ordenou, num sonho, que eu viesse a Isfajan, porque aqui estava a minha fortuna. Já estou em Isfan e vejo que essa fortuna que me prometeu deve ser os açoites que tão generosamente me deste.

“Diante de tais palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por dizer-lhe: ‘Homem desatinado e ingênuo, três vezes sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo existe um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio uma figueira e depois da figueira uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, entretanto, filho duma mula com um demônio, erraste de cidade em cidade, guiado apenas pela fé do teu sonho. Que eu não te volte a ver em Isfajan. Toma estas moedas e vai-te!’

“O homem tomou as moedas e regressou à pátria. Debaixo da fonte de seu jardim (que era o sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus o abençou e o recompensou e exaltou. Deus é o generoso, o Oculto”.

(Do Livro das 1001 noitesm noite 351.)

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BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Globo, 1989.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O FEITICEIRO DESPREZADO - Jorge Luis Borges

Havia em Santiago um deão que desejava ardentemente aprender a arte da magia. Ouviu dizer que Dom Illán de Toledo a sabia mais do que ninguém e foi a Toledo procurá-lo.

No dia em que chegou, dirigiu-se à casa de Dom Illán com bondade e falou que adiava o motivo de sua visita até depois de comer. Mostrou-lhe um alojamento muito fresco e disse que a sua vinda o deixava muito alegre. Depois de comer, o deão contou a razão daquela visita e pediu que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse que adivinhava que ele era deão, homem de boa posição e bom futuro, e que temia ser logo esquecido por ele. O deão prometeu e assegurou que jamais esqueceria aquela mercê e que ficaria sempre às suas ordens. Já acertado esse assunto, explicou Dom Illán que as artes mágicas não podiam ser aprendidas senão em lugar afastado e, tomando-o pela mão, levou-o a uma peça contígua, em cujo assoalho havia uma grande argola de ferro. Antes avisou à criada que tivesse perdizes para a ceia, mas que não as pusesse para assar até que ordenasse. Levantaram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que ao deão pareceu que tinham descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia uma cela e depois uma biblioteca e mais adiante uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinaram os livros e estavam nisso quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo, seu tio, na qual lhe fazia saber que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. Essas notícias contrariaram muito o deão, tanto pela doença do tio como por ter de interromper os estudos. Resolveu escrever uma desculpa e a mandou ao bispo. Três dias depois chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia que o bispo tinha falecido, que estavam escolhendo sucessor e que esperavam pela graça de Deus que fosse ele o eleito. Diziam também que não incomodasse em vir, pois parecia muito melhor que o escolhessem em sua ausência.

Passaram-se dez dias e vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se atiraram a seus pés, beijaram suas mãos e o saudaram como bispo. Quando Dom Illán viu essas coisas, dirigiu-se com muita alegria ao novo prelado e disse que agradecia ao Senhor que tão boas novas chegassem à sua casa. Em seguida lhe pediu o decanado vacante para um de seus filhos. O bispo informou que tinha reservado o decanado para seu próprio irmão, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Santiago.

Foram os três para Santiago e os receberam com honras. Seis meses depois recebeu o bispo mensageiros do Papa que lhe oferecia o arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Dom Illán soube disso, lembrou a antiga promessa e pediu o título para o filho. O arcebispo informu que tinha reservado o bispado para seu próprio tio, irmão de seu pai, mas estava resolvido a favorecê-lo e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve outro remédio senão aceitar.

Foram os três para Tolosa, onde os receberam com honras e missas. Dois anos depois, recebeu o arcebispo mensageiros do Papa que lhe oferecia o chapéu de Cardeal, deixando em suas mãos nomear um sucessor. Quando Dom Illán soube disso, lembrou a antiga promessa e pediu o título para seu filho. O Cardeal informou que tinha reservado o arcebispado para o próprio tio, irmão de sua mãe, mas que determinara favorecê-lo e que partissem juntos para Roma. Dom Illán não teve outro remédio senão aceitar. Foram os três para Roma, onde os receberam com honras, missas e procissões. Quatro anos depois morreu o Papa e nosso Cardeal foi eleito para o papado por todos os demais. Quando Dom Illán soube disso, beijou os pés de sua Santidade, lembrou-lhe a antiga promessa e pediu o cardinalato para o filho. O Papa o ameaçou com a prisão, dizendo-lhe que bem sabia que ele não era mais que um feiticeiro e que em Toledo tinha cido professor de artes mágicas. O mísero Dom Illán disse que ia voltar à Espanha e pediu alguma coisa para comer na viagem. O Papa não o atendeu. Então Dom Illán (cujo rosto estava estranhamente mais jovem) falou com uma voz sem tremor:

– Pois terei que comer as perdizes que encomendei para esta noite.

A criada apresentou-se e Dom Illán mandou que assasse. A essas palavras, o Papa se encontrou na cela subterrânea em Toledo, não mais que deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que nem atinava em desculpar-se. Dom Illán disse que bastava essa prova, negou-lhe a parte que teria das perdizes e o acompanhou até a rua, onde lhe desejou feliz viagem e dele se despediu com grande cortesia.

(Do Livro de Patrono do infante Dom Juan Manuel, que o extraiu dum livro árabe – As Quarentas Manhãs e as Quaresmas Noites.)

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BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Globo, 1989.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

RIOS E BARRANCOS DO ACRE

Isaac Melo


Os barrancos não moldam apenas a paisagem, mas estão, intimamente, ligados à história social dos acreanos. Sobre os barrancos assentou-se a tapera, o barracão e a cidade. De modo que, metaforicamente, se pode afirmar que o barranco foi, assim como o rio, o primeiro agente agregador do Acre antigo, anfiteatro em que se encenaram as primeiras relações, e que, ainda hoje, continuam a ser representadas.

Nas letras acreanas, uma das obras que descrevem, com maestria, as “relações de barranco” é “Rios e Barrancos do Acre”, de Mário Maia, que é ainda autor de “Sombras siderais e outras sombras” (1990). O livro, escrito por volta de 1964, passou alguns anos engavetados, até vir a lume em 1968. Nascido em Rio Branco, em 1925, Mário Maia teve uma trajetória de vida que muito engrandeceu o Acre, como médico, formado pela Universidade Federal Fluminense, deputado federal, secretário de governo e senador da República. Um enfarto o levou em julho de 2000.

Rios e Barrancos do Acre é memorialístico. Descreve memórias de médicos registrando dramas e tragédias do extrativismo da borracha no Acre, como sentencia a quarta-capa. E mais do que isso, é um livro, nas palavras de Iderval Garcia, carregado de humanismo e de história. É, enfim, literatura, das melhores que o Acre registra em sua bibliografia.

Em Rios e Barrancos do Acre Maia une o primor literário, expresso num bom enredo, ao saber histórico, ao fazer memória de fatos e personagens da história acreana que não figura na historiografia oficial. A cada página, lê-se o Acre sem maquiagem, em toda a sua pujança, de vida e de sofrimento. Da vida para as páginas vão surgindo personagens como o médico dr. Melinho (Ary Damasceno Barral do Monte Mello), figura real de nossa história a quem o autor presta homenagem; o coronel Fermiro, dono de quase todo o Rio Macuã; o drama das mulheres como Helena, que, com a morte do pai, tornara-se seringueira para sustentar sua mãe e seus irmãos; Maria das Mercês, irmã mais nova de Helena, deflorada desde cedo pelo coronel Fermiro, que ao deixar o seringal para morar em Rio Branco “foi aos poucos deixando de ser o anjo da selva, para na selva dos homens tornar-se uma rapariga do Papouco”; a sina do nordestino Heitor, encerrado numa colônia de leprosos, etc.

O autor, ao longo do livro, vai encerrando, na fala de cada personagem, excertos da história do Acre, e o resultado se nota na descrição detalhada acerca dos seringais, o seu funcionamento, o período de prosperidade, as festas, os “causos” contados pelos seringueiros, a solidão, as picadas de animais peçonhentos, a situação das mulheres. O livro é uma pequena rapsódia acreana, em que se desfilam acontecimentos e gentes, história e fantasia, dramas e glórias. Como não se encantar com a maestria das páginas em que o autor descreve cenas dos partos feitos sem quase nenhum recurso, a luta para salvar a vida de crianças e mulheres, ou quando descreve acerca das queimadas, das brincadeiras infantis, das casas de farinha, das chatas, das cachaças da época, dos primeiros aviões a pousarem em solo acreano e da construção, em mutirão, dos primeiros aeroportos.

Por fim, é justo reafirmar aquilo que, o então senador, Adalberto Sena dizia no prefácio de Rios e Barrancos do Acre, “o livro é uma sequência de quadros onde peculiaridades da terra e do homem se exibem; e a alma da gente simples do interior e das cidades do Acre se exterioriza com a autenticidade dos seus modos de ser, de sentir e de reagir”. Rios e Barrancos do Acre vai além de uma boa ficção mesclada com fatos e acontecimentos históricos, é o testamento de amor ao povo acreano de um abnegado filho, Mário Maia.

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MAIA, Mário. Rios e Barrancos do Acre. Niterói: Gráfica do Senado, 1978.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

HISTÓRIA DE UM BRÂMANE

Voltaire (1694-1778)


Durante as minhas viagens encontrei um velho brâmane – homem muito sábio, cheio de espírito e erudição; além do mais, era rico, e portanto mais sábio ainda, já que, como não lhe faltava nada, não precisava enganar ninguém. Sua casa era otimamente governada por três lindas mulheres que faziam de tudo para agradá-lo; e quando não se divertia com elas, sua ocupação era filosofar.

Perto de sua moradia, que era bonita, bem decorada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, muito devota, imbecil e extremamente pobre.

– Quem me dera não ter nascido! – disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. – Faz quarenta anos que eu estudo – respondeu-me –, e foram quarenta anos perdidos: ensino os outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tanta humilhação e desgosto que faz com que minha vida seja insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; encontro-me num ponto no meio das duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima ideia do que seja a eternidade. Sou feito de matéria, penso, e nunca pude saber o que é que produz o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de caminhar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não apenas o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio dos meus movimentos: não sei por que existo. Não obstante, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo depois de haver falado. O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! Meu reverendo”, implorou-me, “dizei-me como é que o mal inunda toda a Terra.” Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que foram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco; retiro-me abatido pela curiosidade e pela minha ignorância. Vou consultar meus companheiros: respondem-me alguns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros acreditam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo contribui para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Às vezes me sinto à beira do desespero, não sei nem de onde venho nem para onde vou nem no que me transformarei.

O estado desse excelente homem me causou verdadeira compaixão: ninguém tinha mais senso e boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.

Vi no mesmo dia a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez havia ficado aflita por querer saber como era a sua alma. Ela nem entendeu a minha pergunta: jamais em sua vida refletira um instante sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, considerava-se a mais feliz das mulheres.

Impressionado com a felicidade daquela criatura, voltei ao meu filósofo e lhe disse:

– Não te envergonhes de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autômato que não pensa em nada e vive feliz?

– Tens razão – respondeu-me ele. – Mil vezes eu disse a mim mesmo que seria feliz se não fosse tão tolo como a minha vizinha, contudo não desejaria tal felicidade.

Essa resposta me impressionou mais que todo o resto; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil.

Apresentei a questão a filósofos, e eles concordaram com a minha opinião. “Contudo”, dizia eu, “existe uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, então, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo mesmos estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não têm tanta certeza de raciocinar bem. “É claro”, dizia eu, “que se deveria preferir não ter senso comum, desde que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.” Todos concordaram comigo, porém não encontrei ninguém que aceitasse se tornar imbecil para se sentir contente. Daí concluí que, se damos muito valor à felicidade, damos mais ainda à razão.

Contudo, pensando bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como explicar, então, tal contradição? E também todas as outras. Há muito a discutir a respeito disso.


VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002. p. 235-239

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A FILOSOFIA E SEU PAPEL NA CULTURA OCIDENTAL

Profª. Inês Lacerda Araújo


Diógenes de Laércio relata a seguinte passagem: "Conta-se ter dito Heráclito a estranhos que o queriam visitar e espantam-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogão: podeis entrar, aqui também moram deuses". Já escrevi sobre esse trecho em outra postagem. Acho-o muito significativo, pois traz o filósofo e a filosofia para o cotidiano. Na modesta cozinha, junto ao fogo, preparando comida, também há deuses, há o ideal, o nobre, o que de mais sublime os homens podem almejar.

Essa união entre real e ideal tem alimentado a filosofia e nos conduz à reflexão sobre nossa essência humana, o que pensamos sobre nosso modo humano de ser.

Em tempos antigos, os filósofos projetavam como ideal a sabedoria da alma, do logos, do pensamento: "O logos, que pertence à alma, diz Heráclito, aumenta a si próprio". Quer dizer, o logos retira de si a capacidade de conhecer, de chegar à sabedoria. Sabedoria pode ser interpretada como o encontro consigo, como uma espécie de revelação, de iluminação.

Guerra e Paz é um formidável romance de Tolstói sobre a nobreza russa e a guerra contra Napoleão. O príncipe André, um dos personagens principais, defendera, antes de ir para a guerra, os ideais de força e expansão de Napoleão. Mas na batalha, ferido pelo exército francês, e em meio a cadáveres e à dor, contempla o céu. Como poderia este céu estar ali e ele tê-lo ignorado? É o logos que o leva essa revelação:

"Não há nada, nada decerto, senão o pouco de valor de tudo quanto posso compreender e a grandeza desse não sei quê que me é incompreensível, mas que nem por isso deixa de ser a única coisa importante".

Napoleão passa por ele, pede que o socorram. Mas para o príncipe André, Napolão já perdera a grandeza...

O que mudou na filosofia? Da alma platônica imortal, sede da sabedoria, cuja prisão é o corpo, até o corpo vigiado e punido, cuja prisão é a alma, como analisa Foucault na atual sociedade disciplinar -, o foco da filosofia mudou, há outros objetos de análise (a linguagem, a sociedade, a história, entre outros).

O que não mudou foi o uso do logos para chegar aos limites do poder reflexionante. Sobre o que pensar, e o que analisar, é possível expandir com o passar do tempo histórico e com as dificuldades e problemas novos. Mas há limites intransponíveis, a lógica do pensar, o que é possível pensar, as fronteiras da significação e das formas de significar.

Mistério. O incompreensível, como diz Tolstói.

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - doutora em Estudos Linguísticos, filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

DESMONTE DE UMA FALÁCIA - Dom Demétrio Valentini *

 (Leitura importante a todos os eleitores, sobretudo, católicos)


A questão do aborto está sendo instrumentalizada para fins eleitorais. Esta situação precisa ser esclarecida e denunciada.

Está sendo usada uma questão que merece toda a atenção e isenção de ânimo para ser bem situada e assumida com responsabilidade, e que não pode ficar exposta a manobras eleitorais, amparadas em sofismas enganadores.

Nesta campanha eleitoral está havendo uma dupla falácia, que precisa ser desmontada.

Em primeiro lugar, se invoca a autoridade da CNBB para posições que não são da entidade, nem contam com o apoio dela, mas se apresentam como se fossem manifestações oficiais da CNBB.

Em segundo lugar, se invoca uma causa de valor indiscutível e fundamental, como é a questão da vida, e se faz desta causa um instrumento para acusar de abortistas os adversários políticos, que assim passam a ser condenados como se estivessem contra a vida e a favor do aborto.

Concretamente, para deixar mais clara a falácia, e para urgir o seu desmonte:

A Presidência do Regional Sul 1 da CNBB incorreu, no mínimo, em sério equívoco quando apoiou a manifestação de comissões diocesanas, que sinalizavam claramente que não era para votar nos candidatos do PT, em especial na candidata Dilma.

Ora, os Bispos do Regional já tinham manifestado oficialmente sua posição diante do processo eleitoral. Por que a Presidência do Regional precisava dar apoio a um documento cujo teor evidentemente não correspondia à tradição de imparcialidade da CNBB? Esta atitude da Presidência do Regional Sul 1 compromete a credibilidade da CNBB, se não contar com urgente esclarecimento, que não foi feito ainda, alertando sobre o uso eleitoral que está sendo feito deste documento assinado pelos três bispos da presidência do Regional.

Esta falácia ainda está produzindo conseqüências. Pois no próprio dia das eleições foram distribuídos nas igrejas, ao arrepio da Lei Eleitoral, milhares de folhetos com a nota do Regional Sul 1, como se fosse um texto patrocinado pela CNBB Nacional. E enquanto este equívoco não for desfeito, infelizmente a declaração da Presidência do Regional Sul 1 da CNBB continua à disposição da volúpia desonesta de quem a está explorando eleitoralmente. Prova deste fato lamentável é a fartura como está sendo impressa e distribuída.

Diante da gravidade deste fato, é bem vindo um esclarecedor pronunciamento da Presidência Nacional da CNBB, que honrará a tradição de prudência e de imparcialidade da instituição.

A outra falácia é mais sutil, e mais perversa. Consiste em arvorar-se em defensores da vida, para acusar de abortistas os adversários políticos, para assim impugná-los como candidatos, alegando que não podem receber o voto dos católicos.

Usam de artifício, para fazerem de uma causa justa o pretexto de propaganda política contra seus adversários, e o que é pior, invocando para isto a fé cristã e a Igreja Católica.

Mas esta falácia não pára aí. Existe nela uma clara posição ideológica, traduzida em opção política reacionária. Nunca relacionam o aborto com as políticas sociais que precisam ser empreendidas em favor da vida.

Votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte, e se declaram em favor da vida.

Em nome da fé, julgam-se no direito de condenar todos os que discordam de suas opções políticas. Pretendem revestir de honestidade, uma manobra que não consegue esconder seu intento eleitoral.

Diante desta situação, são importantes, e necessários, os esclarecimentos. Mais importante ainda é a vigilância do eleitor, que tem todo o direito de saber das coisas, também aquelas tramadas com astúcia e malícia.



* Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira

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Fonte: ADITAL

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O QUE É ESTRUTURA? O QUE É SIGNO?

Profª. Inês Lacerda Araújo

Toda construção precisa de estrutura. Estruturas são artificiais, são criadas por meio de signos, de símbolos, de traçados, de sinais. Todos eles comunicam algo, levam à constituição de algo, visualizam algo, estabelecem padrões para significar algo para alguém. Assim, uma árvore não é uma estrutura, seu desenvolvimento é natural. Já um prédio, uma obra de arte, um texto, uma mensagem de propaganda - em todos eles há símbolos, signos, materiais que carregam uma significação, precisam que alguém os decifre, leia, possa compreender e dê um destino, faça uso apropriado.

Um sinal de trânsito se estrutura com traços, desenhos gravados em um material que é físico (a placa de madeira, de plástico, de metal), recortado em tamanho padrão, com cor determinada e codificada, resultado de convenção internacional. Sinaliza proibido com traçado transversal, estacionar com letra, há uso de figuras, de símbolos.

A linguagem humana é mais complexa. Além de sons, produção vocal e sinais sonoros, imediatamente colados a esses sons, há o significado deles.

O primeiro estruturalista foi F. de Saussure (1857-1913). Ele definiu signo como dois lados da mesma moeda: de um lado os significantes audíveis, o que se ouve quando alguém fala; de outro lado os significados: aquilo que se compreende.

A fala é uma sequência de signos estruturados conforme regras. Não língua sem regras. A criança assimila a língua paterna como um todo, com regras para formular frases, associando a mensagem ouvida com a situação, o objeto, a história que ela ouve, enfim, todas as mensagens são lidas. E tudo quer dizer algo, tudo "fala": o tom da voz, a expressão da face, gestos, e a impressionante capacidade que a linguagem tem de criar, apenas pelos signos, desde a presença do que não está aí ("papai vai chegar amanhã!"), até um pedido, uma história, um alerta para se cuidar, uma palavra para consolar, a criação literária, narração, poesia, texto jornalístico, mensagem, e-mail.

Somos invadidos pela estrutura de signos, de símbolos (a face de um ícone do esporte, do rock, da política), de sinais. Ignore um sinal de trânsito e lá vem multa, acidente, e mesmo a morte.

Ofenda com uma palavra, e você pode ganhar um inimigo.
Elogie com uma palavra, e você pode ganhar um amigo.

As estruturas imitam as coisas ao reconstruí-las ou contruí-las seguindo um modelo, algo produzido pela cultura, pelo intelecto.

As palavras não estão no lugar das coisas, elas significam, estruturam a realidade. Os produtos humanos "falam", como você sabe diferir entre casebre, casa, mansão, palácio? Pela relação entre significar e criar artefatos. Como alguém pode dizer: "Você mora num palácio!" com ironia para significar que a casa é de fato precária? A compreensão depende do dito, da situação e do contexto, da intenção do falante.

O que se pensa, depende de signos, como se pensa, depende das regras para combinar signos.

Para dizer a ausência, o não, é preciso dizer "não". Para dizer que nada é para sempre, é preciso dizer "nada". "Sempre" não designa nada na realidade. Porém, sem advérvios, pronomes, preposições, ficaríamos sem tempo, sem cronologia, sem hoje, sem amanhã...

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - doutora em Estudos Linguísticos, filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FOLCLORE ACREANO: MITOS E LENDAS

Isaac Melo


Um dos primeiros trabalhos a tratar do folclore acreano surgiu por volta de 1938. Trata-se do livro de Francisco Peres de Lima, “Folk-lore Acreano”, um esborço geral acerca da cultura material e espiritual da população acreana, com enfoque em descrições física e geográfica do estado. Outra obra relevante que vem complementar a de Peres de Lima é “Fatos, Cultos e Lendas do Acre” de José Inácio Filho, publicada no Rio de Janeiro, em 1964. Nesse sentido, é necessário também ressaltar duas outras publicações: “Estórias Amazônicas” de Epaminondas C. Baharuna, de 1974, e a do Pe. José Carneiro de Lima intitulada “Folclore Acreano: histórias e costumes”, cujo ano de publicação é 1987. Merece ainda uma menção especial o artista plástico acreano Hélio Melo que escreveu alguns livros acerca das histórias que povoavam o imaginário do homem seringueiro, dentre estes, “O Caucho, a Seringueira e Seus Mistérios e História da Amazônia”.

A palavra folclore, do inglês folk e lore (povo e saber), literalmente, significa saber tradicional de um povo. Grosso modo, pode ser definido como um conjunto de mitos e lendas que as pessoas passam de geração para geração. Muitas dessas lendas e mitos nascem da pura imaginação, outras a partir de fatos históricos. Muitas delas foram criadas para passar mensagens importantes ou apenas para assustar as pessoas. São exemplos de grandes estudiosos do folclore brasileiro Sílvio Romero, Câmara Cascudo, Joaquim Ribeiro, etc.

Passamos a uma breve descrição das principais lendas e mitos que povoam o imaginário do povo acreano. Algumas, sabe-se, de caráter mais geral, outras mais específicas, variando, às vezes, de cidade para cidade. São usados como referenciais os livros de José Inácio Filho e Francisco Peres de Lima. Algumas narrativas foram transcritas ipsis litteris, outras sofreram pequenas adaptações.

MAPINGUARI
De todas as lendas do Acre esta é talvez a mais comum a todos. Conta-se que o Mapinguari deriva-se dos índios que alcançam uma idade avançada, transformando-se em um monstro das imensas florestas. É cabeludo como um macaco, de um só olho na testa, pés e mãos semelhantes à de uma mão de pilão, pele igual ao couro de jacaré, ataca para matar, invulnerável às balas dos caçadores, só morrendo, quando atingido no olho. Exala um odor muito forte. Costuma soltar gritos na floresta, a confundir seringueiro e caçador, que ao responder, pensando ser alguém perdido, torna-se presa do temível Mapinguari.

GOGÓ DE SOLA
O Gogó de Sola, segundo crença, quase geral, dos acreanos, é um macaco, como qualquer outro, que vive nas matas distantes dos tapiris. Diz-se que o nome lhe veio de ele possuir o pescoço castanho-vermelho, pelado, semelhante a uma sola. Destaca-se dos outros seres da sua espécie, por ser muito valente e ofensivo, apesar de seu pequeno tamanho. Ataca qualquer animal, a onça, o burro, e até o homem. É fama que onde ele firma os dentes jamais os retira, só se lhe cortar a cabeça. Os caçadores temem-no, visto que não há bala que lhe acerte, por melhor que seja a pontaria. Sua ligeireza impressiona. Pula que nem diabo, quando se sente atacado. Alguns supõem ser, na verdade, o gogó de sola um cão do mato, atacado de hidrofobia, tanto é assim que só nos meses de fevereiro e março , devido à metamorfose da doença, é que ele é encontrado.

A ALMA DE BOM SUCESSO
Num seringal chamado Cumaru, em Assis Brasil, vê erguer-se à veneração dos fiéis, há anos de que a tradição perdeu a conta, a capelinha milagreira da Alma de Bom Sucesso (canonizada pelo povo como Santa Raimunda), numa clareira dentro de espessos e vastíssimos tabocais. É muito grande o número de peregrinos que aflui de toda a região acreana ao local onde a santa de Bom Sucesso (nome da colocação em que vivia) espalha milagres e milagres sem conta. A lenda é demais conhecida desde as cabeceiras à boca do Acre. Há muitos anos, por volta de 1910, uma mulher, em plena selva, sentiu as dores do parto, e, sem ninguém que a assistisse, aliviou-se, dando à luz duas criancinhas. Afastando-se, talvez, grande distância, de seu tapiri, não tinha pensado que o parto ocorresse durante a viagem. Sozinha, no seio da mata, sem cuidados de segundos, por motivos não conhecidos, que podem ter sido diversos, não pode resistir e, assim, nessa situação, entregou a alma a Deus. Mais tarde, foram encontrados os corpos da infeliz mãe e de suas filhinhas sobre um grande formigueiro.

A RASGA-MORTALHA
Entre as aves do Acre a mais temida e respeitada, não obstante o seu pequeno tamanho, é a Rasga-Mortalha. Os acreanos consideram-na ave sobrenatural por trazer consigo estranhos avisos do Céu. O seu canto imita o rasgar de grosso pano. E dizem ser mais agouro, quando passa e canta por cima de uma casa. É que ela está preparando a mortalha para alguém prestes a morrer.

CIPÓ HOASCA
O cipó hoasca ou ayahuasca encontra-se, geralmente, às margens de igarapés, mas dizem que também vive em agrestes matas de terrenos secos. Quando se ergue, na mata, bem pequenino, ainda mal rastejando pelo úmido chão, já procura apoiar-se ao tronco da primeira árvore que encontra. Aí, bem enroscado, de pouquinho a pouquinho, cresce, torna-se grande. Então, já adulto – fato, na verdade impressionante! – começa a soltar, de tempo a tempo, sons semelhantes aos de um bombo, escutando-se, a seguir, zoada de grande falaria que se ouve ao longe, e que chega a assustar até os bichos ferozes. O povo supõe que esses ruídos misteriosos vêm do cipó; mas, a verdade é que, de perto, nunca se ouvem, pois, à medida que alguém se aproxima dele, tudo se vai acalmando, como se não houvesse escutado nada. Difere das outras espécies de cipós pelos seus bonitos cachos de flores, de tons brancos e róseos, que se vão estendendo em ramilhos por todo ele, tornando um todo florescente em que, apenas, se vislumbra o pé. Desse cipó faz-se a bebida conhecida como daime. Depois de cortado, deixa um vestígio igual ao da pisada de um tigre nos caminhos de terra mole, sendo daí levado para a barraca passando por diversos processos, ficando finalmente dentro de uma “bolsa defumada” pelo espaço de trinta dias no mínimo, para que possa surtir os efeitos desejados. Dizem que o cipó depois de cortado em cruz forma uma figura que se assemelha a um tigre. É importante ressaltar que o uso do chá da hoasca é bem anterior à apropriação feita pelos movimentos religiosos hoje conhecidos como Santo Daime e União do Vegetal.

A TIRANABÓIA
Dentre os animais e insetos misteriosos da fauna acreana conta-se a tiranabóia, pequeno inseto que possui um ferrão quase igual ao tamanho do resto de seu corpo. Tem vida curta e é encontrado somente em determinada data, preso nas árvores pelo seu ferrão que aí fica cravado. Dizem que ele é cego e no seu ciclo de existência sai voando às tontas, conservando sua arma sempre voltada para frente, até encontrar o obstáculo onde a crava, terminando aí a sua vida desconhecida. Uma árvore ainda que seja de proporção gigantesca, sendo por ele atingida, não resiste ao veneno do perigoso inseto, secando e morrendo dias depois.

ACOÃ
A acoã ou acauã é uma pequena ave da bacia amazônica que vive em baixas ramadas. Seu triste canto significa aos olhos dos soldados-da-borracha morte e agouro de muita chuva. Tudo de mal que acontece aos seringueiros eles atribuem ao seu cantar.

O BOTO
A lenda do boto é comum a toda região amazônica. No Acre costuma ter duas variações: a tradicional, sobre o moço bonito, trajado de branco e com um chapéu de palha na cabeça que sai dos rios e vem ao encontro das moças dirigindo palavras amorosas, prometendo venturas, e, até, casamento. Seduzidas, adormecem, e assim, tontas, sem saber como foi, em cima dos feijoais das praias despertam com o corpo dorido. A outra variação diz que os botos são pessoas encantadas, isto é, espírito de pessoas que foram habitar nesses animais. Costuma-se nunca deixar as crianças pagãs (sem batismo cristão) ir à beira do rio sozinhas, pois encantam-se em botos.

CAIPORA
O negrito caipora (para alguns pai da mata) seria um ente fabuloso que habita e protege a selva acreana, sempre a procura de tabaco para mascar. Costuma atacar os cachorros dos caçadores. Quem for caçar nas matas do Acre, não se esqueça de sempre oferecer tabaco ao negrito. Se não, nada conseguirá, principalmente, levando cachorros, que apanham do negrito com pedaços de cipós, tirados das árvores.

COBRA GRANDE
São muitos os relatos sobre as enormes cobras que habitam os rios acreanos, sobretudo nos lugares chamados de remansos, estes chegam a algumas dezenas de metros de profundidade. Cobras que chegam à grossura de um tonel de 200 litros. Há também referências acerca da cobra-encantada. Esse animal fabuloso está sempre viajando as águas do imenso Rio Amazonas, entrando no Purus, Juruá, Acre, até onde a profundidade das águas lhes oferece ampla passagem, regressando depois de percorrer os seus tesouros encantados no grandioso reino, nas profundezas do grande rio mar.

O CABORÉ
O Caboré é uma ave noturna, vulgaríssima no Acre, de cor parda, e grandes olhos amarelados. Vive dormindo ou cochilando nas ramadas escuras das árvores ou nas palhas dos coqueiros. Raramente se vê com o sol claro. Sai dos seus esconderijos, em geral, à tardinha, quando o sol desce, no fundo da mata. O seu canto é muito triste e, nas frias e longas noites inverno, o Caboré parece pedir com voz lamurienta, de cortar a alma, que venha sol...! sol...! sol....!

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FILHO, José Inácio. Fatos, Cultos e Lendas do Acre. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1964.
LIMA, Francisco Peres de. Folk-lore Acreano. Rio de Janeiro: Brasília Editora-Rio, 1938

sábado, 2 de outubro de 2010

A ORIGEM DO NOVENÁRIO DE SÃO FRANCISCO EM TARAUACÁ

Isaac Melo


As grandes devoções populares são, geralmente, frutos de uma experiência pessoal de fé pelo qual alguém passou. Por volta dos meados da década de 1920, viajando pelos rios amazônicos, um homem estando à beira de um naufrágio, provocado pelos perigosos remansos que se formam nos rios, invoca o auxílio divino, se valendo de São Francisco de Assis (ou das Chagas) para livrá-lo de tal desgraça. Ao barco nada acontece e passa ileso por tal apuro. Esse homem chamava-se Raimundo Eustáquio de Moura, que, sendo escriturário, havia se estabelecido no vale do Tarauacá, onde trabalhava numa firma realizando viagens pelos rios. A partir dessa promessa, tem-se início o tradicional Novenário de São Francisco, que perdura até hoje, na cidade de Tarauacá.

Raimundo Eustáquio de Moura nascera em 06 Outubro de 1879 na cidade de Cametá, no Pará, e falecera em Tarauacá no dia 28 de Julho de 1959. Fora casado com a senhora Liberalina Leite Moura, com quem teve três filhas: Celestina, João e Inês. No início, as nove noites de novena eram realizadas em sua própria casa ao redor de um quadro do santo, provavelmente com seus familiares, vizinhos e amigos mais próximos. Com o passar do tempo, a devoção foi se difundindo e mais e mais pessoas acorriam ao novenário, para pedir ou agradecer bençãos alcançadas.
Em cima: uma das primeiras capelas construída no local.
Embaixo: Igreja atual de São Francisco, no bairro de Copacabana.
A casa já se tornara pequena para acolher tantos devotos. Era necessário uma igreja. Observe que o novenário havia se iniciado, de uma forma mais solene e oficial, no dia 28 de Setembro de 1928, por iniciativa de dona Liberalina Moura. Sendo que cinco anos depois, em 28 de Setembro de 1933, por iniciativa de Raimundo Eustáquio, era construída a Capela de São Francisco das Chagas. A capela despontava no horizonte sob um bonito morro que passou a ser chamado arraial de São Francisco. Anos mais tarde, 1940, com aprovação do Bispo Dom Henrique Ritter, lança-se a pedra fundamental para a construção de uma nova igreja, já que a capela atual tornara-se novamente pequena para atender o grande número de devotos do santo de Assis, ali invocado como Das Chagas, já que a devoção veio com os nordestinos, principalmente cearenses, onde há um enorme Santuário dedicado a São Francisco das Chagas, na cidade de Canindé, que até hoje continua a atrair milhares e milhares de devotos.

Túmulo de Raimundo Eustáquio de Moura.
Em destaque: lápide

A história é mestra, ensina Cícero. Felizes, então, os que aprendem com ela. Fazer memória desses fatos é um preito de gratidão a todos aqueles que nos precederem, impulsionaram e nos legaram esse maravilhoso testemunho de fé. Além de nos possibilitar viver ainda melhor e de modo mais consciente a nossa própria fé. Deus se utiliza, em todos os tempos e de modos variados, de mulheres e homens para comunicar sua Vontade. De modo que também se utilizou para tal missão do honroso e virtuoso “iniciador” do novenário, Raimundo Eustáquio de Moura, que neste ano se completam 131 anos de seu nascimento e 51 de sua morte. Um homem tocado por Deus, cheio de fé e zelo e que legou ao povo católico de Tarauacá uma das maiores demonstrações de fé do povo acreano.

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Obs.: as informações históricas, aqui usadas, têm como base uma pequena biografia sobre Raimundo Eustáquio de Moura feita por sua filha Celestina Mourão, cedido gentilmente pelo Palazzo, bem como a foto antiga da Capela de São Francisco; E também de uma história de literatura de cordel da poetisa Núbia Wanderley (A Origem do Novenário de São Francisco) e do livreto de Anastácio Rodrigues de Farias (Diversos Dados Sobre o Município de Seabra 1905-1943).

LAMENTO SERTANEJO - Gilberto Gil


"Lamento Sertanejo" nasceu de uma parceria maravilhosa e histórica de Gil e Dominguinhos. Mas a composição é de Dominguinhos e Nando Cordel. (Veja letra).