O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), poeta, contista e ensaísta escreveu algumas das mais importantes obras literárias do século XX, entre as quais: Ficções, O Aleph, O informe de Brodie e O livro dos seres imaginários. A publicação de História Universal da Infâmia, em 1935, seu primeiro texto de narrativas de ficção, o consagrou como um dos maiores nomes da literatura na América Latina. O livro, por um lado, revela a preocupação social de Borges, voltado à denúncia de uma sociedade para ele incorregível; por outro, a descoberta de um novo caminho aliado à concepção que ele tem de seu fazer literário. O conto abaixo integra o referido livro.
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HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM
- Jorge Luis Borges -
O historiador árabe El Ixaqui conta este fato:
“Dizem os homens dignos de fé (mas só Alá é o onisciente, poderoso, misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem muito rico, mas tão magnânimo e liberal que perdeu todas as riquezas, menos a casa de seu pai, e se viu forçado a trabalhar para ter o que comer. Trabalhou tanto que o sono, certa noite, o venceu debaixo duma figueira de seu jardim, e no sonho viu um homem gordo que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: ‘Tua fortuna está na Pérsia, em Isfajan; vai buscá-la’. Na madrugada seguinte ele acordou e empreendeu uma longa viagem e enfrentou os perigos do deserto, dos navios, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfajan, mas no centro dessa cidade foi surpreendido pela noite e se estendeu para dormir no pátio duma mesquita. Junto da mesquita, havia uma casa e, por vontade de Deus Onipotente, um bando de ladrões atravessou a mesquita e se meteu na casa, e as pessoas que dormiam despertaram com o barulho dos ladrões pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão da guarda-noturna daquele distrito acudiu com seus homens e os bandoleiros fugiram pelo terraço. O capitão mandou investigar a mesquita e nela deram com o homem do Cairo e lhe aplicaram tantos golpes com varas de bambu que ele andou perto da morte. Dois dias depois recobrou os sentidos na prisão. O capitão mandou buscá-lo e lhe disse: ‘Quem és e qual é a tua pátria?’ O outro declarou: ‘Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi’. O capitão perguntou: ‘Que te trouxe à Pérsia?’ O outro decidiu-se pela verdade e falou: ‘Um homem me ordenou, num sonho, que eu viesse a Isfajan, porque aqui estava a minha fortuna. Já estou em Isfan e vejo que essa fortuna que me prometeu deve ser os açoites que tão generosamente me deste.
“Diante de tais palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por dizer-lhe: ‘Homem desatinado e ingênuo, três vezes sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo existe um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio uma figueira e depois da figueira uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, entretanto, filho duma mula com um demônio, erraste de cidade em cidade, guiado apenas pela fé do teu sonho. Que eu não te volte a ver em Isfajan. Toma estas moedas e vai-te!’
“O homem tomou as moedas e regressou à pátria. Debaixo da fonte de seu jardim (que era o sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus o abençou e o recompensou e exaltou. Deus é o generoso, o Oculto”.
(Do Livro das 1001 noitesm noite 351.)
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BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Globo, 1989.
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