quinta-feira, 14 de outubro de 2010

RIOS E BARRANCOS DO ACRE

Isaac Melo


Os barrancos não moldam apenas a paisagem, mas estão, intimamente, ligados à história social dos acreanos. Sobre os barrancos assentou-se a tapera, o barracão e a cidade. De modo que, metaforicamente, se pode afirmar que o barranco foi, assim como o rio, o primeiro agente agregador do Acre antigo, anfiteatro em que se encenaram as primeiras relações, e que, ainda hoje, continuam a ser representadas.

Nas letras acreanas, uma das obras que descrevem, com maestria, as “relações de barranco” é “Rios e Barrancos do Acre”, de Mário Maia, que é ainda autor de “Sombras siderais e outras sombras” (1990). O livro, escrito por volta de 1964, passou alguns anos engavetados, até vir a lume em 1968. Nascido em Rio Branco, em 1925, Mário Maia teve uma trajetória de vida que muito engrandeceu o Acre, como médico, formado pela Universidade Federal Fluminense, deputado federal, secretário de governo e senador da República. Um enfarto o levou em julho de 2000.

Rios e Barrancos do Acre é memorialístico. Descreve memórias de médicos registrando dramas e tragédias do extrativismo da borracha no Acre, como sentencia a quarta-capa. E mais do que isso, é um livro, nas palavras de Iderval Garcia, carregado de humanismo e de história. É, enfim, literatura, das melhores que o Acre registra em sua bibliografia.

Em Rios e Barrancos do Acre Maia une o primor literário, expresso num bom enredo, ao saber histórico, ao fazer memória de fatos e personagens da história acreana que não figura na historiografia oficial. A cada página, lê-se o Acre sem maquiagem, em toda a sua pujança, de vida e de sofrimento. Da vida para as páginas vão surgindo personagens como o médico dr. Melinho (Ary Damasceno Barral do Monte Mello), figura real de nossa história a quem o autor presta homenagem; o coronel Fermiro, dono de quase todo o Rio Macuã; o drama das mulheres como Helena, que, com a morte do pai, tornara-se seringueira para sustentar sua mãe e seus irmãos; Maria das Mercês, irmã mais nova de Helena, deflorada desde cedo pelo coronel Fermiro, que ao deixar o seringal para morar em Rio Branco “foi aos poucos deixando de ser o anjo da selva, para na selva dos homens tornar-se uma rapariga do Papouco”; a sina do nordestino Heitor, encerrado numa colônia de leprosos, etc.

O autor, ao longo do livro, vai encerrando, na fala de cada personagem, excertos da história do Acre, e o resultado se nota na descrição detalhada acerca dos seringais, o seu funcionamento, o período de prosperidade, as festas, os “causos” contados pelos seringueiros, a solidão, as picadas de animais peçonhentos, a situação das mulheres. O livro é uma pequena rapsódia acreana, em que se desfilam acontecimentos e gentes, história e fantasia, dramas e glórias. Como não se encantar com a maestria das páginas em que o autor descreve cenas dos partos feitos sem quase nenhum recurso, a luta para salvar a vida de crianças e mulheres, ou quando descreve acerca das queimadas, das brincadeiras infantis, das casas de farinha, das chatas, das cachaças da época, dos primeiros aviões a pousarem em solo acreano e da construção, em mutirão, dos primeiros aeroportos.

Por fim, é justo reafirmar aquilo que, o então senador, Adalberto Sena dizia no prefácio de Rios e Barrancos do Acre, “o livro é uma sequência de quadros onde peculiaridades da terra e do homem se exibem; e a alma da gente simples do interior e das cidades do Acre se exterioriza com a autenticidade dos seus modos de ser, de sentir e de reagir”. Rios e Barrancos do Acre vai além de uma boa ficção mesclada com fatos e acontecimentos históricos, é o testamento de amor ao povo acreano de um abnegado filho, Mário Maia.

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MAIA, Mário. Rios e Barrancos do Acre. Niterói: Gráfica do Senado, 1978.

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