O primeiro trabalho
que li do professor Gerson Albuquerque foi o “Trabalhadores do Muru, o rio das
cigarras” (EDUFAC, 2005). Esse trabalho foi muito importante para que eu
pudesse ir amadurecendo o meu olhar sobre a Amazônia, pois, na contramão da “historiografia
barroca”, que eu estava acostumado a ler, me deparei com outra abordagem, despretensiosa,
ao passo que, perspicaz e profunda, que se insurgia pr’além das abordagens deterministas
e maniqueístas: “O Rio Muru não é o mais importante afluente do Juruá, não
determina a economia de lugarejo algum, não é o mais longo, muito menos o mais navegável.
Não creio, também, que comande a vida de quem quer que seja, indispondo-me
aqui, com os determinismos geográficos tão insistentemente cunhados por um
certo tipo de historiografia que se pressupõe a interpretar a vida amazônica. Mas,
às suas margens, igarapés e centros distantes, centenas de famílias vivem um
cotidiano e constroem, a partir de inúmeros e complexos laços de identidade,
uma cultura que, sem querer cair na vala comum do unitarismo, criando uma
homogeneidade artificial, pode ser qualificada de “cultura seringueira”.” (2005,
p.36).
Em 2017, Gerson
publica o seu primeiro livro de poemas, a saber, “Palavras perdidas em meios
silêncios” (Nepan, 2017). Apesar de estarmos habituados ao Gerson dos textos
acadêmicos, a poesia, todavia, não é algo estranho ao seu trabalho, como sintetizou
a grande Ana Pizarro: “Conocíamos al Gerson analista severo de los conflictos amazónicos,
conocíamos su palabra sobre el trabajo en los seringales del rio Muru en ese
texto bellísimo en donde ya percebíamos al poeta. Conocíamos al Gerson
cotidiano que con ojos dolidos nos enseñaba los castañales em su tránsito trágico
hacia la extinción, los territorios vaciados de florestas por el avance de la
ganadería. Pero también la belleza de los “buriti” que sólo conocíamos en la palabra
de Guimarães Rosa. Por todo esto no nos sorprendió la existencia de este perfil
paralelo, el de su poesia. Era evidente que afloraba en todos sus gestos. Entonces
llegamos a estas Palabras perdidas...”
Aliás, “Palavras
perdidas em meios silêncios”, juntamente com “O berro”, de Quilrio Farias, a
meu ver, constituem os dois grandes e originais trabalhos poéticos surgidos em
2017, no Acre, marcado por tantos poetas sem poesia, que se empanturram de
palavras na construção de uma literatura esvaziada de e da vida, “entupidas de
farofa de nada”. O livro reúne poemas escritos ao longo dos últimos 25 anos do
poeta: “Tecidas no orvalho de muitas madrugadas não dormidas, umas e outras
foram faladas. (...) São palavras pós-escritas porque brotadas feito o voo da
coruja, após toda uma multiplicidade de vivências vividas na instável condição humana,
entranhadas em comprometimentos de seus espaços/tempos próprios”.
Agora, dois anos
depois de “Palavras perdidas em meios silêncios”, Gerson Albuquerque apresenta
ao público o seu “Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem
outra” (Nepan, 2019), um livro híbrido que reúne poemas, resenhas, crônicas e
contos. Um “não-livro” de um “não-poeta em alucinantes cotidianos magros”.
“Limiares” é um
livro com gosto e cheiro de gente, das Amazônias, tecido com as dores e as utopias, “inundado
de vontades ávidas”, apesar desse tempo do “amor desempregado”.
Em seus poemas,
por exemplo, perpassa um silêncio. Que silêncio é esse? É, talvez, um silêncio
destituído de significados, signos, todavia, grávido de sentidos.
O olhar de Gerson é
original porque tem aquela agudeza capaz de perscrutar o mais íntimo da gente e
da realidade social. Seus escritos revelam sua preocupação e seu compromisso político-sócio-cultural,
ao mesmo tempo em que aprofunda/interroga/alarga o próprio sentido da existência. Sua
poesia descortina esse “vazio que sangra no interior da gente”, esse “protocolo
carente de sentido” em que temos nos transformado. É, antes de tudo, uma
escrita de resistência.
Esse livro nos permite adentrar ainda mais aos limiares da morada de Gerson Albuquerque, partilhar da agudeza e da generosidade do olhar do poeta, do contista, do cronista e do resenhista, amalgamados na multiplicidade de um mesmo ser humano que, tecendo palavras, é capaz de renovar as utopias.
I.M.
____________
“A poesia ainda é
mais combate, porque é uma postura ética. Isso incomoda. Aposto que o Gerson
Albuquerque não é muito querido por suas palavras perdidas em meios silêncios. Com
certeza prefeririam que não houvesse nem palavras nem silêncios. Mas que fazer?
Tem gente (sim, tem gente) que ainda sente dor e, se der tempo, consegue sorrir
e amar. Cada palavra perdida salva uma vida do silêncio.”
Aldisio
Filgueiras
da
Apresentação de Palavras perdidas em
meios silêncios
____________
“O universo poético
gersoniano alça voos intangíveis, pois os planos de uma concretude
incontestável tornam-se imagens singulares e plurais, que cindem as fronteiras
da compreensão limitada e rotineira dos cotidianos para pôr em reflexão
enlevada as fendas possíveis, incrustadas nos homens e mulheres – transeuntes que,
nas tranças e transas poéticas, erotizam formas e amargam solidões. Assim, não
há estrelas mortais ou Nêmesis a incendiar as sobras de uma indigência, que
clama por justiça, que, angustiadamente, reclama das injustiças, e que, final e
poeticamente, ascendem para os planaltos dos seres, que grafam e grifam na
eternidade a dor, a saudade, a lágrima e o esquecimento do Outro. E o que é a
poesia senão esta corda que, esgarçada para o Alto, arrebenta,
espetacularmente, abrindo leitos de sangue, feridas dolorosas e cicatrizes
sempre abertas?”
João
Carlos de Souza Ribeiro
do
Prefácio de Palavras perdidas em meios
silêncios
Do livro PALAVRAS
PERDIDAS EM MEIOS SILÊNCIOS (Nepan, 2017)
Minha fratria
Carrego comigo um
rosto insepulto de mulher
um gosto amargo de
casca de amarelão
Uma cidade que
finge cintilando mentiras coloridas
luzes artificiais
praças
monumentos a
ladrões de terras
e assassinos de
índios
Nasci em Manaus
e nem sei o gosto
das águas sujas do rio Negro
Sei que o mar passa
longe
e que essa Paris de
puta sem dentes
é minha fratria
Carrego comigo um
par de pernas finas
um bucho de
lombriga e farofa de nada
A eterna tristeza
de um olhar cindido
entre o campo de
pelada do Baré
o Bairro de Flores
o tabaco mascado de
minha avó
e as ladeiras
descarnadas da Volta Seca p.19
Não dormidas
Um corpo estático
silêncio de tuas
longas noites
Pés descalços meus
olhos em chamas p.49
Ode a um prefeito
Todo dia é assim
Prefeito
feche os portões
o portal do céu
a boca do inferno
Chame os seguranças
mortos
faça a autópsia
recolha suas armas
enferrujadas
suas balas de
borracha
espoletas
Oculte suas
mentiras
as sobras de seus
pratos feitos
Acione a polícia
chegaram os bêbados
os maconheiros
as crias do demônio
Essas crianças mal
paridas
cagadas de medo
de tuas bíblias
gratuitas
tuas infâmias
teus doutores
orando ciência p.77
Retóricas
Meu manifesto é uma
dor
oposto ao desamor
p.95
Corpo de baile
Desejei naquele vão
de teatro
teus olhos ocultos
entre pernas e
saias do corpo do baile
Vermelhos
teu batom
tua boca
teu vestido
Pervertidas
minha alma
meus delírios
minha inquieta
solidão
Versos brotando aos
teus ouvidos
mãos despertando
sentidos
Sonhei teu corpo se
abrindo
tuas entranhas
tuas pupilas
tuas pernas
intranquilas
Verbos penetrando
tua alma
encravando-se
na profundidade de
tua pele p.129
Do livro LIMIARES:
MANUSCRITO PARA UM NÃO-LIVRO – NEM UMA COISA, NEM OUTRA (Nepan, 2019).
Agradecemos ao autor por nos ceder gentilmente, e em primeira mão, excertos do
livro para, aqui, serem publicados.
Recusa
Ando enojado de
agentes públicos,
assembleias servis,
verdades técnicas,
simulacros
instituídos.
Ando manco,
o corpo moído,
mas armado pra
estupidez cínica de meus ímpares.
Ando engasgado com
tudo isso
e mais aquilo das
nuvens
e vaidades
espalhadas em grupos e redes sociais.
E como não tenho
alma,
digo não com o
corpo em riste,
sangue nos olhos e
as mãos em chamas.
(17/6/17)
Violências
cotidianas
Todas as vezes que
como carne de gado
sinto o amargor do
sangue
a escorrer pelos
cantos de minha boca:
sangue de Valdizas,
Odílias,
Wilsons,
Josés,
Chicos.
E me acompanha o
espectro da cumplicidade.
(15/9/17)
Pedaços da
madrugada passada
Sentei no sol da
noite
e um quarto de lua
soluçou
restos de prata em
meus olhos.
O sol da manhã
dormiu no profundo da noite,
incendiando as
margens insólitas de minha cama.
Sem lugar pra
aportar,
meus amores são
partidos.
No amanhecer de
hoje,
a noite dançou em
mim.
Na claridade da
noite,
dança um
beija-flor.
Grudado na beira da
madrugada,
criei raiz de
solidão.
No desencontro da
noite,
uma coruja instalou
sono de grilo
sussurrando meu
desabandono.
(11/8/18)
Sonhos e escritas
Sonhei ser poeta,
inventor de
metáforas suaves pras moças de minha rua,
entupidas de farofa
de nada,
e para seus irmãos,
deserdados pretos, apodrecendo em abarrotadas cadeias públicas.
Sonhei andando
pelos bares,
beijando soleiras,
mijando postes, mordendo assoalhos no fecundo momento em que subempregados
passavam espremidos em paus-de-arara,
para a construção
servil.
Sonhei tecendo
insípidas escritas
aos amores de cada
esquina,
desfalecidos por
minhas promessas torpes
inscritas em seus
corpos,
enquanto minhas
irmãs, engravidadas de fantasias e fantasmas, atravessavam a cidade em
entupidos coletivos sujos, roubadas no troco e na borboleta.
Sonhei palavras
doces
pra uma imagem
herdada da infância,
entre febres de
sarampo e frieiras,
imaginando viagens
nos banzeiros dos
batelões no Porto de Dona Odete
e nas asas dos
aviões no Aeroporto Salgado Filho.
Morri ali,
não-poeta em
alucinantes cotidianos magros,
inundado de
vontades ávidas,
escritas de
palavras silenciosas e outras coisas inúteis.
(3/2/18)
JOANA
Gerson
Albuquerque
“Eu
mato minha filha e me mato”, pensou Joana Maria e Paiva olhando para o
vai-e-vem de hóspedes que entravam e saíam do Hotel Chuí, em meio à umidade e
ao calor do inverno amazônico.
Engravidara
de um fantasma e, revelada por uma aparição na noite anterior, sabia que se
tratava de uma menina.
“Fantasma
de três pernas”. Comentou zombeteira, uma amiga de escola. Mas, Joana não lhe
deu nenhuma atenção. Sempre ouvira que gente como ela somente tinha direito a
não ter direitos e, em contendas com sua índole, passara a assumir essa
sentença envolta em um tom de indignada ironia.
Nem
bem completara dezesseis anos e não poderia voltar pra casa dos pais: jamais
acreditariam na fantástica história de uma virgem engravidada.
No
limiar de seu ocaso, permaneceu na rua durante toda a noite e, nas proximidades
do quartel da polícia, ouviu vozes acompanhando as sombras que movimentavam a
Praça Rodrigues Alves na alta madrugada. Às cinco horas, resoluta e despindo-se
de todo o pudor, desceu a Avenida Getúlio Vargas em direção ao Segundo
Distrito. No cruzamento com a Epaminondas Jácome, evitou olhar para o mercado
municipal, na Praça da Bandeira, e se dirigiu à Juscelino Kubitschek, que unia
os dois distritos da cidade, subindo e equilibrando-se no passeio do lado
esquerdo da ponte metálica.
Com
a intenção de aproveitar a correnteza de um rio que se alimenta de suas
margens, deixou-se cair com os olhos firmes nas águas inquietas, o corpo inerte
no intransitivo daqueles segundos feitos de espaço. Um corpo rasgado de
lembranças, cicatrizes da vida inteira.
Nem
bem os raios da luz solar alcançavam as cumeeiras das velhas casas da Rua
África, flutuou em suave performance, desaparecendo entre as espumas, balseiros
e terras caídas.
Referências
ALBUQUERQUE,
Gerson. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio Branco: EDUFAC, 2005.
ALBUQUERQUE,
Gerson. Palavras perdidas em meios silêncios. Rio Branco: Nepan, 2017.
ALBUQUERQUE,
Gerson. Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra. Rio
Branco: Nepan, 2019. (no prelo)
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