Quando o conheci já
se aposentara em seu Estado e fixara residência no Rio de Janeiro. Ali assinava
o rodapé de um jornal e, junto ao Parlamento, se credenciara como jornalista
político. Consta que, perante o último, também auferia bom dinheiro, escrevendo
discursos para Deputados e Senadores.
Seus
artigos, além da correção da forma e da elegância do estilo, se caracterizavam
pelo ímpeto demolidor. Dele, por certo, não se poderia dizer que, incendiário,
se tornara bombeiro. Natural do Amazonas, seus trabalhos literários (era autor
de alguns livros sobre a região) ou puramente jornalísticos, segundo um
contemporâneo, tinham a força do Rio-Mar.
Era
na oratória, contudo, que alcançava os píncaros mais ousados, fosse qual fosse
o assunto ou ocasião. Bastava dar-lhe a palavra. Só o ouvi uma vez, confesso.
Foi o suficiente, no entanto, para verificar que excedia a lenda. Casava-se a
cabocla Nazaré, agregada à família de amigo comum. Não sei se, em cerimônias
nupciais, já se disseram coisas tão bonitas.
Li
dois de seus livros. A crítica atual os acharia enfáticos e ricos de adjetivos.
Mas a verdade é que neles, em linguagem sublime da melhor categoria, encontrei
as páginas talvez mais arrebatadoras que já se escreveram sobre a Amazônia.
Conseguiu pôr efetivamente nelas toda a complexidade e estranha beleza do
Grande Vale.
Em
certa fase da vida foi também, segundo seus conterrâneos, um tremendo boêmio,
tomando pileques históricos, tais as que aprontou e disse, em discursos
memoráveis, sob o efeito da bebida. Terá sido por esse tempo que andou em Rio
Branco, deparando-se-lhe, no exílio acreano que se impôs, outro expoente da
intelectualidade e da oratória.
Os
torneios então travados entre os dois, contaram-me algumas testemunhas, foram o
que de mais expressivo já produziu o humano engenho. Se um representava a
culminância das montanhas, natural de Minas, o outro era a própria grande
planiciária da Hileia. Nas solenidades respeitavam-se: só um dos dois falava,
revezando-se. No dia a dia, contudo, e sob o efeito das libações, o confronto
era inevitável.
O
que mais o singularizava, por ocasião de seus discursos, era a
imprevisibilidade, ninguém tendo condições de lhes adivinhar o desdobramento,
improvisados ao sabor das circunstâncias. Nunca ia, contudo, além das palavras.
Capaz de conduzir multidões aonde quisesse, só as levava ao arrebatamento
estético.
Mas
o que pretendo narrar, os informes acima não passando de introdução, foi o que
aprontou, certa feita, em um congresso contra o álcool, promovido por luminares
da Ciência Médica. Deu-se o episódio numa época em que se achava em perfeita e
total comunhão com Baco. Nem terá sido por outro motivo que não representava
seu Estado no conclave.
Acontece
que lá compareceu por conta própria e, antes do encerramento das reuniões, até
então revestidas de pleno êxito, pediu a palavra. Queria, com a aquiescência
dos congressistas, tecer considerações em defesa do grande réu: o Álcool.
Aqueles o desconheciam e a pretensão lhe foi negada, sob o fundamento de
tratar-se de um encontro de técnicos.
Insistiu,
argumentando que, perante um certame daquela magnitude, havia necessidade de
uma discordância, pelo menos simbólica, ao coro de condenações. Afinal de
contas, até o mais reles dos bandidos era reconhecido o direito de defesa.
Porque o Álcool era o mais reles dos bandidos, decidiu a presidência que o
deixaria falar, mas se fosse médico. Provou que era e pôde pronunciar-se.
Foi
aí que algo assim como um furacão na floresta ou o fenômeno da pororoca nos
grandes rios aconteceu. Subiu à tribuna e, para uma assembleia estupefata,
produziu a mais erudita e empolgante conferência em defesa do Álcool que já se
pôde conceber, ao término aplaudido de pé e em delírio por todos, inclusive
pela mesa diretora dos trabalhos.
É
evidente que o congresso não teve condições de prosseguir. Em contrapartida, o
orador foi carregado em triunfo e o réu grandemente festejado e servido, sob a
forma de drinques, pelos bares da redondeza.
JOBIM, Romeu. Boa
tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.111-112
ROMEU BARBOSA JOBIM nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de
1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o
primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro,
fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos
Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal
desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e
Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de
2015. Publicou: Justiça: Humor Forense; Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos
do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário