Crônicas Indigenistas
A vida na colocação
Currimboque
Ali era louco, era
inóspito, como se dizia lá: "Tudo no bruto há 18 anos".
A colocação
Currimboque, onde estávamos morando e trabalhando, fazia já dezoito anos que
não era habitada por ninguém. Por isso, tudo ali já havia regenerado, mas foi
preciso trabalharmos muito para edificar casa de morada, defumadores,
galinheiros, cercado para jabutis, roçados e reabertura das estradas de
seringa.
Nossa colocação
distava cerca de seis horas da sede do Barracão Colombo localizado na margem
direita do Rio Muru. As colocações que se avizinhavam eram: Cius, com seis
horas de viagem a pé já nas águas do igarapé Ciús, pertencente às águas do Rio
Envira; Cocal com quatro horas de viagem a pé; Campos da Cruz, com duas horas
de viagem a pé e; Paiol da Lama, com três horas de caminhada pela floresta.
Em alguns finais de
semana aparecia lá na nossa casa o seu Antônio Bento, da colocação Campo da
Cruz e o Chico Mano, da colocação Paiol da Lama. Estas visitas eram uma boa
maneira de sair da rotina e do isolamento, que eles viviam em suas moradias,
para vir conversar com meu pai, mesmo tendo sido um homem que enquanto criança
'veio de fora'. Meu pai era um cidadão bem informado, sabia ler e escrever e,
por sinal, escrevia muito bem. O mais importante é que ele era possuidor de uma
caligrafia muito bonita, que ficava mais bonita ainda quando ele utilizava uma
pena e um tinteiro.
Além das vantagens
de ser ali um lugar novo e farto, muitas eram as 'desvantagens' contidas nas
conversas de finais de semana, entre a minha família e os seringueiros
vizinhos. Aqueles senhores e senhoras não escolarizados contavam histórias de
onças, de Mapinguarí, da Mãe da Seringueira, da Mãe D’água. Tinham também
histórias das pautas que seringueiros tiravam com o capeta, para tirar mais
látex e produzir mais borracha. Alguns contavam histórias sobre cangaço. Falavam
das histórias do Honorato Cobra Grande, do boto que saia das águas e ia para as
festas para namorar as moças.
Falavam de almas e
de mistérios da mata como, por exemplo, da Caipora, que eu acho que também se
confunde com o Caboquinho da Mata. Tinha muita história sobre o 'tempo dos
coronéis de barranco' e de alguns homens valentes. Falava-se sobre panemas
colocadas por outros seringueiros que invejavam os caçadores mais felizardos.
Os seringueiros
costumavam pedir ajuda de outros seringueiros, sobre como o que fazer para se
livrar das panemas e, também, para devolver o mal aos invejosos que fizeram
maldades. Eu sei que existem várias maneiras de resolver este tipo de situação.
Como se trata de segredos da cultura da floresta eu prefiro manter oculta, mas,
afirmo que existe e funciona.
Falava-se muito das
correrias praticadas contra os índios, ditos 'brabos' e da tara das balanças
utilizadas pelos Barracões da região, e de como alguns seringueiros colocavam
barro, cocão, machado, pedra ou farinha de mandioca na borracha para pesar
mais.
Uma conversa bem
presente era a cobrança de renda das estradas de seringa, os altos custos das
mercadorias (que naquela época já era consumido nos seringais), a falta de
assistência médica, as visitas dos mateiros florestais e, também, da briga que
porventura houvesse acontecido na festa da casa de alguém. Claro que apareciam
conversas sobre algum rapaz ter roubado a filha de alguém conhecido.
Quando os assuntos
dos adultos se esgotavam, meu pai tinha um enorme prazer de me colocar para
falar para os adultos e crianças presentes sobre a história da descoberta do
Brasil, que naquela época eu sabia decorada e hoje já nem me lembro tanto, até
porque confundem invasão com descoberta.
Fui uma criança que
não teve adolescência...
No primeiro ano
vivendo nesta colocação, eu acompanhava meu pai nas atividades das estradas de
seringa. Atividade essa que veio a ser minha profissão inicial, na qual eu era
chamado de 'seringueiro toqueiro', ou 'seringueiro mirim'. Nesse tempo eu já
contava com meus oito anos de idade.
Do segundo ano em
diante já passei a assumir cortar*, vindo a colher em duas estradas de seringa
onde eu ficava acompanhado só por Deus mesmo. Estas estradas eram conhecidas
pelos nomes de São José 'de Cima' e São José 'de Baixo', pois as mesmas ficavam
ao longo de um igarapé chamado São José. Então, pensando bem, eu realmente nunca
estava só com Deus, pois, estava sempre junto a São José.
Aos oito anos de
idade eu já tinha: faca de bainha; terçado 127; raspadeira; poronga; cabrita;
faca de seringa; estopa; balde feito de frande de lata de banha de porco; saco
encauchado; capanga de cartuchos e; minha mucal (espingarda) calibre 20. Eu
assumi cortar e colher essas duas estradas de seringa para substituir o meeiro
Chicó, que trabalhava de meia com meu pai**.
A borracha
produzida pelo Chicó tinha muita água, na balança ela quebrava muitos quilos,
entre uma pesada e outra. Por isso, meu pai passou a desconfiar do trabalho
dele, passando a prestar mais atenção o que estivesse acontecendo. Assim,
descobriu-se que Chicó varava as estradas e colocava água no látex, para que
meu pai pudesse achar que ele tirou a mesma quantidade de do leite de seringa,
que meu pai conseguia tirar de cada estrada em cada dia de corte.
Eu Vivi a
verdadeira aventura de um seringueiro mirim, que por sua vez já havia lido e
decorado grande parte do livro Páginas Brasileiras.
Em muitas ocasiões,
trilhando a minha estrada de seringa, ou nos varadouros por onde andava, me
recordava temerosamente daquelas histórias contadas pelos adultos sobre o
Mapinguari, a Mãe da Seringueira, os índios brabos e, especialmente, quando me
dava conta de que uma onça acabara de passar por cima de meus rastros na
estrada de seringa, e que isso tinha acontecido ali, naquele mesmo dia ou há
poucos minutos. Era pavoroso quando eu via uma cobra na floresta, eu tomei
muitos sustos apavorantes, e quando ouvia o grito de algum animal que ainda não
era de meu conhecimento, confesso que eu ficava com os nervos à flor da pele.
Meu maior temor era
que a qualquer momento eu viesse encontrar um animal furioso, ou mesmo uma
desumana assombração. Eu ficava na espreita, com medo de topar com um índio
brabo. Nossa! Índio brabo! Isso tudo era demais para mim naquela época.
Mas nesse trabalho
tinham coisas lindas também.
Eu ficava
maravilhado quando encontrava bandos e bandos de macacos-prego, cairara,
guariba, barrigudo, macaco-preto, macaco-da-noite, macaco-de-cheiro, zog-zog,
parauacu, bigodeiros e soin. Os Soins são tão bonitinhos.
Eu ficava muito
tempo só olhando os animais: bandos de araras; papagaios; jacus; mutuns;
inambus; nambu galinha; nambu azul; nambu macucal; nambu relógio; nambu preta;
surulinda e; Tucanos. Pasmava quando conseguia ver um Gavião Real.
Nossa colocação
ficava num local de muita fartura, porque, além de outros abundantes recursos
naturais, tinha muita caça, e até por isso mesmo tinha muita onça: onça pintada
da malha grande; onça pintada da malha pequena; onça preta; onça vermelha e
falavam até de onça branca.
Tinha tanto Jabuti
naquela floresta que em três meses nós juntamos cento e sessenta jabutis, e a
gente criava alguns num cercado feito de ripas de paxiúba ao lado de nossa
casa. Alguns jabutis dependendo da quantidade de malhas que ele possui no casco
podem ser, ou não, mandingueiros (representantes de ciências ocultas especiais
para o caçador). Neste caso específico, tal jabuti é colocado num chiqueiro
feito na sapopemba e passa ser alimentado com comidas especiais como: fígado de
caça, Jaracatiá, cajarana, cajuzinho, ubaia, jenipapo, dentre outras comidas.
Tinha muito peixe
no Igarapé São José, que era grande cheio de pedras e cachoeiras e de difícil
navegação. Minhas duas estradas de seringa margeavam este Igarapé. Achava
fantástico quando eu me aproximava cautelosamente da beira de um daqueles
lindos poços para ver abaixo das águas cristalinas repletas de peixes curimatã,
pirapitingas e matrinchãs malhadas. Eu ficava encantado de olhar tanta beleza e
riqueza ali à luz dos meus lindos olhos esverdeados, até pela cor das plantas
silvestres ciliares daquele majestoso Igarapé, circundado pela floresta e com o
nome de São José.
Naquele tempo que
fui seringueiro, dos meus oito aos doze anos de idade, ainda pude ver e viver o
'cativeiro' e a coação aplicada pelos seringalistas contra os seringueiros. Uma
situação nunca dá para esquecer.
Pude ver que a
ignorância ali no mundo dos seringais superava o saber, visto que a escola para
quem vivia e trabalhava na floresta não existia. Eu já sabia ler e escrever o
meu nome, mas, é porque aprendi com meu próprio pai, o meu grande professor.
Os patrões eram
cruéis, arrogantes e prepotentes. Mas, haviam homens que não aceitavam tais
crueldades, ficando simplesmente quietos, parados, de braços cruzados. Eu vi,
por exemplo, meu irmão mais velho, Raimundo Batista de Macêdo, fazer um desses
patrões, de nome Francisco Ribeiro, 'tirar' sua 'conta corrente' em cima de uma
barra de sabão zebu.
Os patrões roubavam
nos preços dos bens industrializados, através da tara das balanças, na cobrança
de renda e na hora de extrair a conta corrente de um seringueiro. Pagavam a
borracha produzida sem qualquer tabelamento, e tudo ficava ao bel prazer dos
deles. A desinformação gerava uma bruta ignorância nos seringais deixando as
pessoas um tanto selvagem mesmo.
Certo dia, quando
já era adolescente – palavra que só viemos ouvir muito tempo depois que
conhecemos cidade, até porque você saía de menino para homem, fiquei muito
apavorado com o que ouvi na floresta. No entanto, não se devia voltar para casa
falando de algo que lhe assustara e não explicar aos outros do que na verdade
se tratava, pois, quem se assustasse tinha a obrigação de verificar, olhar de
perto para contar de certo, o que era aquilo que lhe botou tanto medo. Então,
joguei o medo fora e fui olhar para ter certeza do que se tratava.
Olhem leitores,
estes momentos, para uma criança na floresta não é nada fácil. Moral da
história: tratava-se de um casal de jabutis fazendo amor em meio a sombra do
verde pálido, num universo quase inteiramente livre, não fosse pela minha
penetra presença morrendo de medo naquela localidade.
Principalmente, até
descobrir que se tratava de um casal de jabutis fazendo amor selvagem. Quando
meus olhos viram aquilo apesar da tara demonstrada pelo jabuti em cima da
jabota, vi que se tratava de um sério caso de amor e fui me retirando, mas, o
meu coração continuava batendo ligeiramente apressado. Porém, como já faltava
pouco para chegar a casa, fui me acalmando e já cheguei no meu lar pronto para
contar aquela história a meus pais e aos meus irmãos. Engraçado, todos riram
muito, e para mim, aquilo era realmente algo muito estranho.
* Cortar – termo
usado para definir a extração do látex, através dos cortes típicos feitos pelos
coletores seringueiros;
** O Meeiro é um
seringueiro mantido pelo seringueiro titular da colocação, e produz a borracha
sob a responsabilidade do Titular. Este ganha a metade da produção do ano de
safra. Era como um seringueiro agregado, e era mantido com comida, roupa lavada
e dormida na casa que trabalha.
Antônio Batista de
Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para
o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com
Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os
anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões
indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história
merece ser contada e recontada por quem
admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)
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