Aldisio Filgueiras
Ser impermeável foi a primeira qualidade que chamou a atenção do mundo para a borracha da Amazônia. Usar sapatos que impediam os pés de gripar e acumular frieira, capas de chuva, luvas cirúrgicas, sutiãs, espartilhos e cintas, e elásticos de múltiplos usos (transar sem
engravidar, que maravilha!), fazer as armas de
guerra atirar sem dor nas juntas, era fashion ter pelo menos uma parte do corpo
impermeável às chuvas, trovoadas e bactérias e filhos e se moldar à estética de
cada momento. Nada mais seria como antes da borracha, nem durante, nem depois.
Manaus, que se proclamou Estado do Amazonas e Capital da Borracha e Paris dos
Trópicos, que o diga.
Na esteira desses sucessos, no atacado e no
varejo, vieram os pneus a minimizar o atrito com o solo (gente, parece uma
viagem de barco, de tão macio esse caminho das pedras!) e a vertigem da
velocidade, o ataque de nervos provocado pela necessidade (não preciso, mas
quero) de ser e estar em vários lugares a um só tempo. A cidade de Manaus, no
epicentro desse banzeiro universal, embriagou-se até o delírio. Bebeu tanto
desse látex, que também se impermeabilizou ao bom senso: criou para si uma
eternidade que não resistiria 30 anos, mas deixou de herança uma sociedade com
sintomas que o freudismo vulgar pôde diagnosticar como trauma de infância
"sim, eu fui abduzida na infância e quero vingança" etc. - quer
dizer, uma sociedade filha de uma sociedade que não tinha amanhã, porque
eterna, e insiste em não acreditar que o amanhã existe, pois não tem mais a
menor dúvida de que tudo que é sólido, inclusive as crenças, se desmancha no
ar. A ressaca é sempre amanhã.
Conta uma lenda oficial que um aventureiro
inglês, crente no amanhã, contrabandeou umas tantas e quantas sementes de
seringueira, mas se sabe também, nos bastidores dessa novela, que seringalistas
e seringueiros venderam as tais sementes sem a menor consciência do que faziam,
pois o lucro anula qualquer ética ou procedimento sensato.
Como alguém pode ser tolo o bastante para
comprar sementes que dão no mato, sem precisar plantar? Um inglês que acredita
no amanhã pode.
Em Belém, houve um banquete de despedida, em
homenagem a esse inglês que viajou em direção ao futuro. O inglês levou a
borracha do Amazonas e deu ao Brasil a bola de futebol como troco e a taça
Jules Rimet. Ninguém, até hoje, teve a coragem de acusar os índios dessa
lavagem de dinheiro: eles (os índios) tinham mais de uma razão para querer se
livrar dessa árvore do bem e do mal.
Na outra margem do Atlântico, isto é, no
futuro, os ingleses trataram as sementes a pão de ló e elas se deram muito bem
no clima tropical da Ásia, protegidas pela razão iluminista que os brasileiros,
portugueses, árabes e judeus, brancos e negros e índios e outros empreendedores
da democracia racial, confusos com o mormaço das matas, não tiveram tempo de
absorver, pois estavam vivendo seu momento de fome zero e riqueza infinita.
A eternidade terminou com um adeus no porto
inglês de Manaus, mas a cidade continuou impermeável ao bom senso: como diria,
mais tarde, a vanguarda bovina de Parintins, Manaus continuou imersa em
pavulagem, aquele estágio transcendental em que as pessoas acreditam ser o que
não são. E não é só: continua impermeável às chuvas que não podem voltar para o
céu, depois que despencam, e não têm para onde correr, quando tocam o solo de
asfalto barato e os igarapés entupidos de lixo e barracos. Lembra aquela brincadeira
de adivinhação - o que é que cai em pé e corre deitado? É a chuva. Não, não é
mais a chuva. A chuva cai e (quando o calor não a transforma em nuvem de novo,
no meio do caminho) ao tocar o chão começa a inchar de raiva até explodir e
virar manchete de jornal. Aí, até quem não tem nada perde tudo.
Manaus só não está impermeável às bactérias e
aos vírus que as chuvas ajudam a desentocar e o setor imobiliário e sua ética
de lucro fazem tombar sobre pobres e ricos, ao derrubar e lotear o que resta da
floresta, com o apoio de legisladores, juízes e cartórios, pois quem não
registra o abandono não é dono.
Em Manaus, não existe ignorância nem
ingenuidade: existe má-fé, desde sempre. Uma ideologia, permanente e
irracional, contra a natureza e tudo o que seja saudável, permeia os vários
estratos sociais da cidade. Esse trauma de infância, esse pavor de que o mundo
se acabe ontem, é a maldição da seringueira, que não tem a menor inveja de suas
primas anglo-asiáticas. Manaus não apenas se tornou impermeável ao bom senso,
mas também imperdoável. Por isso, vive como se não houvesse amanhã: o orgasmo é
bom, porque dura pouco... 30 anos, no máximo; mas, a borracha apaga.
Para modernizar-se sem sair do passado, o
Amazonas criou um seringal eletrônico: o Polo Industrial de Manaus (PIM), o
último seringal de que se terá notícia. A seringueira perde, mas não perdoa. A
pobreza que entulha Manaus é o pó da riqueza que a borracha apagou. A Paris dos
Trópicos, que era um armazém, bem-arrumado, de secos e molhados, agora é um
depósito de resíduos sólidos, a céu aberto. Como não pode perdoar, a natureza
também não pode esquecer.
FILGUEIRAS, Aldisio. A maldição da seringueira.
2ª ed. Manaus: Gráfica e Editora Ziló / Academia Amazonense de Letras, 2024. p.
19-21
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