sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A MALDIÇÃO DA SERINGUEIRA

Aldisio Filgueiras

 


Ser impermeável foi a primeira qualidade que chamou a atenção do mundo para a borracha da Amazônia. Usar sapatos que impediam os pés de gripar e acumular frieira, capas de chuva, luvas cirúrgicas, sutiãs, espartilhos e cintas, e elásticos de múltiplos usos (transar sem

engravidar, que maravilha!), fazer as armas de guerra atirar sem dor nas juntas, era fashion ter pelo menos uma parte do corpo impermeável às chuvas, trovoadas e bactérias e filhos e se moldar à estética de cada momento. Nada mais seria como antes da borracha, nem durante, nem depois. Manaus, que se proclamou Estado do Amazonas e Capital da Borracha e Paris dos Trópicos, que o diga.

Na esteira desses sucessos, no atacado e no varejo, vieram os pneus a minimizar o atrito com o solo (gente, parece uma viagem de barco, de tão macio esse caminho das pedras!) e a vertigem da velocidade, o ataque de nervos provocado pela necessidade (não preciso, mas quero) de ser e estar em vários lugares a um só tempo. A cidade de Manaus, no epicentro desse banzeiro universal, embriagou-se até o delírio. Bebeu tanto desse látex, que também se impermeabilizou ao bom senso: criou para si uma eternidade que não resistiria 30 anos, mas deixou de herança uma sociedade com sintomas que o freudismo vulgar pôde diagnosticar como trauma de infância "sim, eu fui abduzida na infância e quero vingança" etc. - quer dizer, uma sociedade filha de uma sociedade que não tinha amanhã, porque eterna, e insiste em não acreditar que o amanhã existe, pois não tem mais a menor dúvida de que tudo que é sólido, inclusive as crenças, se desmancha no ar. A ressaca é sempre amanhã.

Conta uma lenda oficial que um aventureiro inglês, crente no amanhã, contrabandeou umas tantas e quantas sementes de seringueira, mas se sabe também, nos bastidores dessa novela, que seringalistas e seringueiros venderam as tais sementes sem a menor consciência do que faziam, pois o lucro anula qualquer ética ou procedimento sensato.

Como alguém pode ser tolo o bastante para comprar sementes que dão no mato, sem precisar plantar? Um inglês que acredita no amanhã pode.

Em Belém, houve um banquete de despedida, em homenagem a esse inglês que viajou em direção ao futuro. O inglês levou a borracha do Amazonas e deu ao Brasil a bola de futebol como troco e a taça Jules Rimet. Ninguém, até hoje, teve a coragem de acusar os índios dessa lavagem de dinheiro: eles (os índios) tinham mais de uma razão para querer se livrar dessa árvore do bem e do mal.

Na outra margem do Atlântico, isto é, no futuro, os ingleses trataram as sementes a pão de ló e elas se deram muito bem no clima tropical da Ásia, protegidas pela razão iluminista que os brasileiros, portugueses, árabes e judeus, brancos e negros e índios e outros empreendedores da democracia racial, confusos com o mormaço das matas, não tiveram tempo de absorver, pois estavam vivendo seu momento de fome zero e riqueza infinita.

A eternidade terminou com um adeus no porto inglês de Manaus, mas a cidade continuou impermeável ao bom senso: como diria, mais tarde, a vanguarda bovina de Parintins, Manaus continuou imersa em pavulagem, aquele estágio transcendental em que as pessoas acreditam ser o que não são. E não é só: continua impermeável às chuvas que não podem voltar para o céu, depois que despencam, e não têm para onde correr, quando tocam o solo de asfalto barato e os igarapés entupidos de lixo e barracos. Lembra aquela brincadeira de adivinhação - o que é que cai em pé e corre deitado? É a chuva. Não, não é mais a chuva. A chuva cai e (quando o calor não a transforma em nuvem de novo, no meio do caminho) ao tocar o chão começa a inchar de raiva até explodir e virar manchete de jornal. Aí, até quem não tem nada perde tudo.

Manaus só não está impermeável às bactérias e aos vírus que as chuvas ajudam a desentocar e o setor imobiliário e sua ética de lucro fazem tombar sobre pobres e ricos, ao derrubar e lotear o que resta da floresta, com o apoio de legisladores, juízes e cartórios, pois quem não registra o abandono não é dono.

Em Manaus, não existe ignorância nem ingenuidade: existe má-fé, desde sempre. Uma ideologia, permanente e irracional, contra a natureza e tudo o que seja saudável, permeia os vários estratos sociais da cidade. Esse trauma de infância, esse pavor de que o mundo se acabe ontem, é a maldição da seringueira, que não tem a menor inveja de suas primas anglo-asiáticas. Manaus não apenas se tornou impermeável ao bom senso, mas também imperdoável. Por isso, vive como se não houvesse amanhã: o orgasmo é bom, porque dura pouco... 30 anos, no máximo; mas, a borracha apaga.

Para modernizar-se sem sair do passado, o Amazonas criou um seringal eletrônico: o Polo Industrial de Manaus (PIM), o último seringal de que se terá notícia. A seringueira perde, mas não perdoa. A pobreza que entulha Manaus é o pó da riqueza que a borracha apagou. A Paris dos Trópicos, que era um armazém, bem-arrumado, de secos e molhados, agora é um depósito de resíduos sólidos, a céu aberto. Como não pode perdoar, a natureza também não pode esquecer.

 

FILGUEIRAS, Aldisio. A maldição da seringueira. 2ª ed. Manaus: Gráfica e Editora Ziló / Academia Amazonense de Letras, 2024. p. 19-21

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