quinta-feira, 17 de abril de 2025

POEMAS DE ALCY ARAÚJO (1924-1989)

 CHORANDO MAR

 

 Estava estacionado

 na tarde sem mar.

 

 Viste o meu silêncio

 meus olhos

 minha dor

 mas não percebeste

 que eu era marinheiro.

 

 Não era a ti

 que eu esperava

 de relógio em público.

 Era o meu cais

 de reencontros itinerantes.

 

 Sou feito de ondas

 de algas de salsugem

 de barcos voltando

 para a renovação de partidas.

 

 Sou adeus.

 

 Não percebeste

 que eu chorava mar

 na tarde despida de esperanças. p. 19

 

 

 POETA VENDO O RIO

 

 Pela janela

 olho o rio.

 Rio largo barrento

 indo para o mar.

 Rio de todo dia

 em minha paisagem exterior.

 Só que hoje

 a ilha defronte quase não aparece.

 

 Não é verde.

 Tem cor azulada.

 Talvez cinzenta

 para os meus olhos míopes.

 Eis a única diferença

 no meu cotidiano.

 

 Mais tarde

 chegará a noite.

 A paisagem ficará

 mais escura.

 Não tenho outro

 quadro Amada.

 

 Daí este cansaço.

 

 Na tarde agora

 a moça da folhinha sorri

 pra mim ao lado do organograma.

 Um espelho reflete meus gestos inúteis.

 

Debruço meu esgotamento

 e espero o nascimento

 do verso proletário.

 

 Só então compreendo

 as razões vazias

 do meu retorno repetido. p. 37-38

 

 

 CANTO FIM

 

 Há milênios

 estavas em minha autogeografia

 demarcando fronteiras geométricas

 impedindo a passagem do azul.

 

 Todavia

 quando chegaste

 eras saudade

 e amores grisalhos

 falavam de ausências.

 

 No cais inconsútil

 eu não chorava.

 Apenas aguardava

 esperanças suicidas

 que o mar devolve

 a cada esquecimento.

 

 Não estava só.

 Eu era multidão

 de equívocos numerados

 e tu não percebeste

 um anjo órfão

 portando bússolas afogadas

 estendendo os braços

 para o mar.

 

 Na ânsia

 de salvar o sonho

 ainda acenei

 com o meu amar morrendo

 mas a noite

 apagou o gesto de sofrer. p. 40

 

 

 ONDE O MEU DOIDO?

 

 Onde o meu louco

 que nunca mais?

 Há tanto tempo ausente

 como quem desencontrou

 o caminho do retorno.

 

 Onde o doido

 que habita em mim

 e perdeu tanto?

 Mãe e madrasta

 amigo e amada

 pai e irmão

 escola e calçada

 papagaio e pião.

 

 Já não faz mais seresta

 não briga nas festas

 não reza canções

 não canta poemas

 não tem namorada

 não joga porrinha

 não perdeu a razão.

 

 Onde o meu louco

 que não se importa

 que não porta nada?

 

 Não porta aviões

 não porta malas

não porta bandeira

 não porta bagagem

 não porta cartas

 não porta estandarte

 não porta cigarros

 não porta chaves

 não porta retratos

 não porta seios

 não porta luvas

 não porta joias

 não porta saudades.

 

 Um doido sem bicicleta

 sem cais bonito

 sem anjo

 sem mar

 sem cavaquinho

 sem passarinho

 sozinho

 órfão

 cargueado de infâncias

 inchado de lucidez

 e de louro luar

 nas ruas do seu mundo.

 

 Onde o meu louco?

 Há quanto tempo

 que nunca mais. p. 57-58

 

 

 INSÔNIA

 

 Não tenho nenhuma lâmpada

 e há muito a aurora é saudade.

 Ainda nem adormeci a alcova

 e o meu tédio chove silêncios.

 

 Mais: só tenho este cigarro

 para ninar meu sono

 enquanto o relógio cria imensos monstros

 de insônia

 e da janela acordada

 adentram lembranças esquecidas.

 

 Visto o meu disfarce de Deus

 me oculto atrás do armário

 me escondo do mar interior

 e a noite não passa nunca.

 

 Nenhuma lâmpada

 para acender o poema. p. 63

 

 

 O PEQUENO JARDIM DO POETA POBRE

 

 Meu jardim é um jardim de poeta pobre.

 É um jardim pobre.

 

 Tem apenas uma roseira solitária

 e um pouco de verde onde

 descanso a vista ousada e míope.

 

 As rosas

 às vezes

 me comovem e acendem lágrimas

 em meus olhos. Mormente

 quando recordo momentos vividos

 da infância perdida ou nunca existente.

 

 Também a juventude sofrida

 marcada pela vida

 abriu feridas

 criou impedimentos

 que jamais também foram transpostos.

 

 As rosas

 quase sempre trazem recordações

 fazendo doer sofrimentos passados

 e a roseira é um espelho da minha solidão.

 Talvez por isso fico horas e horas

 olhando o jardim

 até que o verde enxugue minhas dores.

 

 Certas ocasiões converso

 com o meu jardim modesto e feio

 mas incrivelmente meu

 como minhas têm sido

 as mágoas que plantei.

 

 Quando há luar

 as sombras do meu jardim

 tornam-se mais sombras

 ficam mais nítidas

 e desenham pelo chão

 arabescos – mensagem indecifrável

 das minhas desesperanças coletivas.

 

 Quando é dia

 o meu jardim de poeta pobre

 fica nu.

 Nuinho de carinho.

 Não merece um olhar de quem passa.

 Não acorda nenhuma atenção.

 Mas eu sei que ele tem vida

 está ali à espera de mim

 para receber meu silêncio.

 

 Somos tristes. Temos sentimentos comuns.

 Guardamos segredos só nossos.

 Muitas vezes ficamos imóveis

 olhando a rua

 os carros os casais os homens solitários

 povoando de buzinas e de passos

 de palavras e de ruídos o espaço adjacente.

 

 Certa manhã minha ternura estava débil.

 Então a roseira me ofertou uma rosa vermelha.

 Acolhida com emoção de amante

 depositei-a nas mãos

 daquela que haveria de vir.

 

 Meu jardim também serve

 para penitências.

 Debruço sobre ele os meus singularíssimos pecados

 e transponho perdoado

 o verde e a roseira.

 

 Encontro sempre Deus no meu jardim à noite

 principalmente se há luar.

 Talvez para nutrir a lição de humildade

 que ele e eu oferecemos

 inutilmente aos homens.

 Talvez para acender melhor

 o claro amor

 que exibimos aos olhos indiferentes

 dos que passam sem perceber o pequeno jardim

 vivendo no mundo.

 

 E que eu sou terno

 bom

 e sei rezar um verso. p. 65-67

 

 

 PARTICIPAÇÃO

 

 Estou convosco.

 Participo dos vossos anseios coletivos.

 Vim unir meu grito de protesto

 ao suor dos que suaram

 nos campos e nas fábricas.

 

 Aqui estou

 para juntar minha boca

 às vossas bocas no clamor pelo pão

 sancionar com este rumor que vai crescendo

 a petição de liberdade.

 

 Estou convosco.

 Para unir meu sangue ao sangue

 dos que tombaram

 na luta contra a fome e a injustiça

 foram vilipendiados em sua glória

 de mártires

 de heróis.

 

 Vim de longe

 percorrendo desesperos.

 Das docas agitadas de Hamburgo

 das plantações de banana da Guatemala

 dos seringais quentes do Haiti.

 

 Vim do cais angustiado de Belém

 dos poços de petróleo do Kuwait

 das minas de salitre do Chile.

 

 Passei fome nos arrozais da China

 nos canaviais de Cuba

 entre as vacas sagradas da Índia

 ouvindo música de jazz no Harlem.

 

 Afundei nas geladas estepes russas.

 Morri ontem no Canal da Mancha

 e hoje no de Suez.

 Tombei nas margens do Reno

 e nas areias do Saara

 lutando pela vossa liberdade

 pelo vosso direito de dizer

 e de amar.

 

 Estou convosco.

 Voluntariamente aumento o efetivo

 dos que não se conformam

 em viver de joelhos

 morrendo sufocando lágrimas

 nas frentes de batalha

 nas prisões

 para dar à criança recém-parida

 o riso negado aos vossos pais

 o pão que falta em vossas mesas.

 

 Meu filho

 e o filho do meu filho

 saberão que o meu poema não se omitiu

 quando vossas vozes fenderam o silêncio

 e ecoaram inutilmente nos ouvidos de Deus. p. 83-85

 

 

ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 2024.

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Alcy Araújo nasceu no distrito de Peixe Boi-PA, no dia 7 de janeiro de 1924. Residiu em Belém, e diversas outras cidades da Amazônia, até se estabelecer na década de 1950 no Amapá, onde faleceu no dia 22 de abril de 1989. Foi jornalista e poeta. Publicou Autogeografia (1965), Poemas do homem do cais (1983), Jardim Clonal (1997), Ave Ternura (2021).

Um comentário:

eliana castela disse...

Um primor! É de encher a alma com tanta poesia nesses versos