CHORANDO MAR
Estava
estacionado
na tarde
sem mar.
Viste o
meu silêncio
meus
olhos
minha
dor
mas não
percebeste
que eu
era marinheiro.
Não era
a ti
que eu
esperava
de
relógio em público.
Era o
meu cais
de
reencontros itinerantes.
Sou
feito de ondas
de algas
de salsugem
de
barcos voltando
para a
renovação de partidas.
Sou
adeus.
Não
percebeste
que eu
chorava mar
na tarde
despida de esperanças. p. 19
POETA
VENDO O RIO
Pela
janela
olho o
rio.
Rio
largo barrento
indo
para o mar.
Rio de
todo dia
em minha
paisagem exterior.
Só que
hoje
a ilha
defronte quase não aparece.
Não é
verde.
Tem cor
azulada.
Talvez
cinzenta
para os
meus olhos míopes.
Eis a
única diferença
no meu
cotidiano.
Mais
tarde
chegará
a noite.
A
paisagem ficará
mais
escura.
Não
tenho outro
quadro
Amada.
Daí este
cansaço.
Na tarde
agora
a moça
da folhinha sorri
pra mim
ao lado do organograma.
Um
espelho reflete meus gestos inúteis.
Debruço meu esgotamento
e espero
o nascimento
do verso
proletário.
Só então
compreendo
as
razões vazias
do meu
retorno repetido. p. 37-38
CANTO
FIM
Há
milênios
estavas
em minha autogeografia
demarcando fronteiras geométricas
impedindo a passagem do azul.
Todavia
quando
chegaste
eras
saudade
e amores
grisalhos
falavam
de ausências.
No cais
inconsútil
eu não
chorava.
Apenas
aguardava
esperanças suicidas
que o
mar devolve
a cada
esquecimento.
Não
estava só.
Eu era
multidão
de
equívocos numerados
e tu não
percebeste
um anjo
órfão
portando
bússolas afogadas
estendendo os braços
para o
mar.
Na ânsia
de
salvar o sonho
ainda
acenei
com o
meu amar morrendo
mas a
noite
apagou o
gesto de sofrer. p. 40
ONDE O
MEU DOIDO?
Onde o
meu louco
que
nunca mais?
Há tanto
tempo ausente
como
quem desencontrou
o
caminho do retorno.
Onde o
doido
que
habita em mim
e perdeu
tanto?
Mãe e
madrasta
amigo e
amada
pai e
irmão
escola e
calçada
papagaio
e pião.
Já não
faz mais seresta
não
briga nas festas
não reza
canções
não
canta poemas
não tem
namorada
não joga
porrinha
não
perdeu a razão.
Onde o
meu louco
que não
se importa
que não
porta nada?
Não
porta aviões
não
porta malas
não porta bandeira
não
porta bagagem
não
porta cartas
não
porta estandarte
não
porta cigarros
não
porta chaves
não
porta retratos
não
porta seios
não
porta luvas
não
porta joias
não
porta saudades.
Um doido
sem bicicleta
sem cais
bonito
sem anjo
sem mar
sem
cavaquinho
sem
passarinho
sozinho
órfão
cargueado de infâncias
inchado
de lucidez
e de
louro luar
nas ruas
do seu mundo.
Onde o
meu louco?
Há
quanto tempo
que
nunca mais. p. 57-58
INSÔNIA
Não
tenho nenhuma lâmpada
e há
muito a aurora é saudade.
Ainda
nem adormeci a alcova
e o meu
tédio chove silêncios.
Mais: só
tenho este cigarro
para
ninar meu sono
enquanto
o relógio cria imensos monstros
de
insônia
e da
janela acordada
adentram
lembranças esquecidas.
Visto o
meu disfarce de Deus
me
oculto atrás do armário
me
escondo do mar interior
e a
noite não passa nunca.
Nenhuma
lâmpada
para
acender o poema. p. 63
O
PEQUENO JARDIM DO POETA POBRE
Meu
jardim é um jardim de poeta pobre.
É um
jardim pobre.
Tem
apenas uma roseira solitária
e um
pouco de verde onde
descanso
a vista ousada e míope.
As rosas
às vezes
me
comovem e acendem lágrimas
em meus
olhos. Mormente
quando
recordo momentos vividos
da
infância perdida ou nunca existente.
Também a
juventude sofrida
marcada
pela vida
abriu
feridas
criou
impedimentos
que
jamais também foram transpostos.
As rosas
quase
sempre trazem recordações
fazendo
doer sofrimentos passados
e a
roseira é um espelho da minha solidão.
Talvez
por isso fico horas e horas
olhando
o jardim
até que
o verde enxugue minhas dores.
Certas
ocasiões converso
com o
meu jardim modesto e feio
mas
incrivelmente meu
como
minhas têm sido
as
mágoas que plantei.
Quando
há luar
as
sombras do meu jardim
tornam-se mais sombras
ficam
mais nítidas
e
desenham pelo chão
arabescos – mensagem indecifrável
das
minhas desesperanças coletivas.
Quando é
dia
o meu
jardim de poeta pobre
fica nu.
Nuinho
de carinho.
Não
merece um olhar de quem passa.
Não
acorda nenhuma atenção.
Mas eu
sei que ele tem vida
está ali
à espera de mim
para
receber meu silêncio.
Somos
tristes. Temos sentimentos comuns.
Guardamos segredos só nossos.
Muitas
vezes ficamos imóveis
olhando
a rua
os
carros os casais os homens solitários
povoando
de buzinas e de passos
de
palavras e de ruídos o espaço adjacente.
Certa
manhã minha ternura estava débil.
Então a
roseira me ofertou uma rosa vermelha.
Acolhida
com emoção de amante
depositei-a nas mãos
daquela
que haveria de vir.
Meu
jardim também serve
para
penitências.
Debruço
sobre ele os meus singularíssimos pecados
e
transponho perdoado
o verde
e a roseira.
Encontro
sempre Deus no meu jardim à noite
principalmente se há luar.
Talvez
para nutrir a lição de humildade
que ele
e eu oferecemos
inutilmente aos homens.
Talvez
para acender melhor
o claro
amor
que
exibimos aos olhos indiferentes
dos que
passam sem perceber o pequeno jardim
vivendo
no mundo.
E que eu
sou terno
bom
e sei
rezar um verso. p. 65-67
PARTICIPAÇÃO
Estou
convosco.
Participo dos vossos anseios coletivos.
Vim unir
meu grito de protesto
ao suor
dos que suaram
nos
campos e nas fábricas.
Aqui
estou
para
juntar minha boca
às
vossas bocas no clamor pelo pão
sancionar com este rumor que vai crescendo
a
petição de liberdade.
Estou
convosco.
Para
unir meu sangue ao sangue
dos que
tombaram
na luta
contra a fome e a injustiça
foram
vilipendiados em sua glória
de
mártires
de
heróis.
Vim de
longe
percorrendo desesperos.
Das
docas agitadas de Hamburgo
das
plantações de banana da Guatemala
dos
seringais quentes do Haiti.
Vim do
cais angustiado de Belém
dos
poços de petróleo do Kuwait
das
minas de salitre do Chile.
Passei
fome nos arrozais da China
nos
canaviais de Cuba
entre as
vacas sagradas da Índia
ouvindo
música de jazz no Harlem.
Afundei
nas geladas estepes russas.
Morri
ontem no Canal da Mancha
e hoje
no de Suez.
Tombei
nas margens do Reno
e nas
areias do Saara
lutando
pela vossa liberdade
pelo
vosso direito de dizer
e de
amar.
Estou
convosco.
Voluntariamente aumento o efetivo
dos que
não se conformam
em viver
de joelhos
morrendo
sufocando lágrimas
nas
frentes de batalha
nas
prisões
para dar
à criança recém-parida
o riso
negado aos vossos pais
o pão
que falta em vossas mesas.
Meu
filho
e o
filho do meu filho
saberão
que o meu poema não se omitiu
quando
vossas vozes fenderam o silêncio
e
ecoaram inutilmente nos ouvidos de Deus. p. 83-85
ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. 2ª ed. Brasília:
Senado Federal, 2024.
________________
Alcy Araújo nasceu no distrito de Peixe Boi-PA,
no dia 7 de janeiro de 1924. Residiu em Belém, e diversas outras cidades da
Amazônia, até se estabelecer na década de 1950 no Amapá, onde faleceu no dia 22
de abril de 1989. Foi jornalista e poeta. Publicou Autogeografia (1965), Poemas
do homem do cais (1983), Jardim Clonal (1997), Ave Ternura (2021).
Um comentário:
Um primor! É de encher a alma com tanta poesia nesses versos
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