quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

UM RIO E SUAS ESTÓRIAS: Oyama César Ituassú

Oyama César Ituassú (1916-2009)

 

Bacia hidrográfica que já alimentou faustos, viveu durante década exclusivamente da indústria extrativa da goma elástica e, derrotada pela incúria, fracassou lamentavelmente, caindo no marasmo que sempre sucede às grandes explosões econômicas. Tudo até então era riqueza desmedida, sem o menor cuidado com o futuro, estimulada a vida esbanjada com o sistema importador de víveres e licores estrangeiros. Nada se consumia do país e tudo vinha do exterior, até mulheres.

Esse período de deslumbramento faraônico, permitiu extravagâncias dignas de referência. Houve um seringalista do rio Madeira, nobre boliviano emigrado da Espanha, cuja propriedade recebia duas vezes por ano um navio vindo diretamente de Liverpool, para transportar com exclusividade a produção de borracha e a cada viagem, feita de seis em seis meses, trazia a bordo uma francesa jovem, de não mais de vinte anos, para substituir a que viera anteriormente, para deleite do epicurista. A casa residencial, construída de pinho de Riga, tinha ademanes luxuosos, com espelhos de cristal de Veneza, móveis portugueses, atapetada da entrada até à sala de jantar. Uma vida de nababo. Morreu pobre.

O Juruá não teve desses requintes. Terra bruta, gente, mais bruta ainda que ali se plantou com garra nordestina, abocanhando territórios imensos sem nenhuma titulação e deles fazendo propriedades particulares, depois legalizadas por compra ao Estado. A exploração gomífera permitiu o dilargamento das áreas tituladas, avançando para o interior, baseados na regra possessória de quem tem a frente tem os fundos. Aliás, a reprodução do que sucedeu nos Estados Unidos da América nos séculos 17 e 18. E esse desenfreamento de riqueza propiciou a debacle econômica, semelhante ao da Grā-Bretanha após o ponto agudo de seu desenvolvimento industrial e com aquele país em 1929.

Nas décadas de 1890 a 1930, a região do Juruá seguiu o exemplo dos demais rios e abasteceu o mundo com a sua atividade. Alí, há um divisor de qualidade do produto: o látex extraído na terra firme, apresenta diferença sensível do que é colhido das seringueiras de várzea, pois nesta a produtividade reduz em razão de maior percentual de água que contém. Quando a borracha é dos altos rios, a hidrose atinge até 20%, o que é chamado de "quebra", ou seja a desidratação entre a feitura da péla, que é a bola de borracha, até a entrega final ao comprador. Nas terras baixas, a percentagem aumenta até cerca de 40% e a goma tem menos elasticidade. Se há derrame do leite da tigela, é aproveitado como sernambi.

No baixo Juruá, os seringais são dessa última espécie e o peso, quando o seringueiro entrega ao patrão o resultado de seu trabalho, já calculado com o desconto percentual e quem sofre é o espoliado, que se vê reduzido pecuniariamente de seu labor pela hidratação excessiva. Ao mesmo passo, é respaldo para o proprietário, que assim evita pagar mais o produto, recebendo menos do comprador de Manaus ou Belém.

Já no Médio Juruá, há terras firmes e várzeas altas e o seringueiro trabalha em melhores condições. No verão, extrai o leite nas terras baixas e no inverno desloca-se para as partes altas, onde a densidade da goma é maior. Firma-se um pacto entre o seringalista e o seringueiro, variando de seringal para seringal. Em princípio, há a dedução de 20% sobre o peso entregue, ressalvada a hipótese de um abono sobre o resultado final. Em outros lugares, o pagamento é fixo.

Nas propriedades do Alto Juruá, o sistema funciona de modo idêntico, embora haja exemplos de extorsão, tanto por parte do dono como do extrator direto: aquele usa dois tipos de balança: uma para comprar e outra para vender as mercadorias para o trabalhador, que não tem outra opção senão adquiri-las pelo cobrado. Explorado de toda forma, também este se defende como pode e usa de artifícios para compensar o esbulho que sofre.

Para assim agir, quando fabrica a "péla", denominação usada para designar as bolas de borracha produzidas, inicia o processo de defumação do látex colhido, colocando um pedaço de madeira roliça e sobre ele vai derramando lentamente o líquido viscoso e aos poucos vai crescendo o volume até atingir o final da colheita diária. Dessa maneira, com o aumento do peso graças à artimanha, equilibra a perda.

Também usa de outro meio para sanar a espoliação que o patrão lhe aplica e, para isso, no local onde está colocado prepara duas bolas de borracha: uma para levar ao barracão e outra para vender ao regatão, contrabandista dos rios e fator mercantil importante para o desenvolvimento da região. Conta-se que um deles, comerciante ambulante que percorre os cursos d'água vendendo artigos essenciais por preços inferiores aos do barracão e comprando ao mesmo tempo os produtos, sempre às caladas da noite, atracou seu batelão no porto de um seringueiro e comprou uma péla de oitenta quilos, mediante o sistema de escambo, básico no interior. Acontece que o barco ficou com a beirada presa no barranco e, concluída a transação, embarcado o produto, o barco cedeu e o balanço conseqüente da embarcação fez com que a bola de borracha caísse n'água e foi para o fundo: é que dentro o vendedor colocara um pedaço de massaranduba...

E assim viviam seringalista e seringueiro, cada um procurando vencer na dura vida que levavam, sem nenhuma contemplação com as recíprocas condições. Vida ingrata, trabalhada e trabalhosa e a vingança da floresta violada, era provocar entrechoques com os atores de sua tragédia.

Nos demais rios, o comportamento era semelhante, diferindo pouco de seringal para seringal, tudo na dependência do caráter dos integrantes do sistema. Purús, Madeira, Solimões, Negro, Tarauacá, Envira, tratos fluviais que abrigavam a grande produção gomífera, foram as áreas favorecidas para a implantação do processo econômico até então existente, e que gerou fortunas mal aproveitadas. O triste é que, delas, pouco restou e os grandes seringalistas, ou castanheiros, não tiveram continuadores nos descendentes, que preferiram viver nas cidades e capitais de outros Estados.

Aliás, o mesmo sucedeu com os precursores industriais no Amazonas. Criaram fábricas, instalaram empresas, fomentaram um surto admirável de progresso e, no entanto, ao falecerem, não tiveram seguidores familiares que continuassem a obra. Dos grandes visionários e que concretizaram suas ideias, nada restou.

 

ITUASSÚ, Oyama César. Um rio e suas estórias. Manaus: Grafima, 1996. p. 17-20

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