Leandro Tocantins
...
e o meio põe no homem a sua marca
ALEXIS
CARREL,
O
homem, esse desconhecido
NÃO
HÁ NO MUNDO uma região onde melhor se ajuste a imagem dos "caminhos em
marcha e que levam aonde queremos ir", do que a Amazónia. As suas baías,
os seus golfos, rios, paranás, lagos, furos e igarapés, consagram esta frase de
Pascal, sob o aspecto da geografia dinâmica e o das manifestações de vida do
homem, cujo destino está entregue aos caminhos que andam.
Na
planície, filha das águas, corre pelas águas, como o sangue nas veias, o
impulso da civilização, o protoplasma sedimentário que vitaliza o solo, a força
geradora que tece com mil aluviões a terra alteada dia a dia do nível baixo dos
igapós, das várzeas, em firmes e colinas, que volve ilhas em penínsulas, que
também traga, na sua função de desagregar aqui para construir acolá, a terra
frouxa solapada pela corrente.
Os
cursos fluviais que retalham o vale, à semelhança de filamentos numa folha
descomunal, guardam, em seu dorso, além do líquido brotado nos frígidos picos
andinos, fluindo das fontes nas serranias, descendo das estâncias do planalto,
o caráter eminentemente social do sistema hidrográfico do Amazonas, a vocação
de governo sobre a existência humana, ampla e imperiosa.
A
carta geográfica apresenta no espaço amazônico os tortuosos riscos azuis dos
afluentes, confluentes e defluentes do Rio-Mar, infundindo, a quem lhes
relanceie a vista, compenetrado da índole social dos rios, a grande verdade da
natureza, cuja contemplação, repetindo Goethe, deve a parte sempre ser
considerada como um todo, porque nada é interior, nada é exterior, e o que está
dentro está fora, para se chegar a entender de modo mais claro certos segredos
aparentemente invioláveis.
Talvez,
por falta dessa acuidade é que o viajante, ao ver a Amazônia pela primeira vez,
tenha uma decepção, vendo-a "inferior à imagem subjetiva há longo tempo
prefigurada", segundo confessa a pena mais brilhante e emotiva que se
molhou nas águas do Amazonas. Mas, é o próprio Euclides da Cunha quem retifica
as primeiras manifestações de espírito desavisado em seu discurso de recepção
na Academia Brasileira de Letras. Depois de ler uma pequena monografia
científica, na qual a luz do Equador parece ter refletido os raios da verdade
da terra e da água em sua inteligência, o viajante de ontem, surdo aos clamores
da natureza, volveu-se, de comoção em comoção, no impressionista e
expressionista que sentiu o drama da vida, que pressentiu os segredos da terra,
antes vista nos "horizontes vazios e indefinidos como o dos mares", e
como um "bracejo angustioso". E no seu ímpeto verbal viu "a
gestação de um mundo, um arranco do triunfo".
O
primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos
múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em
capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo,
quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e
Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua
pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no
meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias
tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna
rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos
sociais.
Eis
o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos
Faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua
fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela
técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva
sua.
Mas,
quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume
colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo
invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua
selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de
sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível
que o rio acabasse por vencer.
Os
caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a
navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz
acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas
agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas,
levando o desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.
Nos
seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul,
descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d'água no álveo empobrecido, a
água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os
gaiolas mais imprudentes que se aventuraram a subir o caminho fluvial no fim da
estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparado
pelas escoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíde cabos de aço retesos
das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus
perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os
mantimentos, as coisas essenciais da vida.
O
seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore do leite, o madeireiro abate os
enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os no leito desnudo dos igarapés.
Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá
vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no
segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no
repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.
A
safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles
breves dias de repiquetes, seguindo o mesmo ritmo de fuga das águas barrentas,
à procura da foz libertadora.
As
comunidades, as barracas, os barracões se desenvolvem à beira dos rios, junto
aos barrancos, equilibrados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as
terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração
máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.
Nas
paragens do baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais
poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua
implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes
enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas,
imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas
pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de
montaria a canarana alimentar.
O
homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia.
O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à
sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.
A
noção do jus soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento
do rio. Quando alguém se refere à terra natal só costuma dizer: eu nasci no
Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de
produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando
há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o
Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências
da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no
Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.
O
rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode
comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos,
onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma
espécie de fiador dos destinos humanos.
Veias
do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do
rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados,
odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois
sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis
fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguram a presença humana,
embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro
amazônico.
TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: uma interpretação da Amazônia. 7ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Manaus: SUFRAMA, 1983. p. 231-234
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