segunda-feira, 5 de maio de 2025

O RIO COMANDA A VIDA

 

Leandro Tocantins

 

... e o meio põe no homem a sua marca

ALEXIS CARREL,

O homem, esse desconhecido

 

NÃO HÁ NO MUNDO uma região onde melhor se ajuste a imagem dos "caminhos em marcha e que levam aonde queremos ir", do que a Amazónia. As suas baías, os seus golfos, rios, paranás, lagos, furos e igarapés, consagram esta frase de Pascal, sob o aspecto da geografia dinâmica e o das manifestações de vida do homem, cujo destino está entregue aos caminhos que andam.

Na planície, filha das águas, corre pelas águas, como o sangue nas veias, o impulso da civilização, o protoplasma sedimentário que vitaliza o solo, a força geradora que tece com mil aluviões a terra alteada dia a dia do nível baixo dos igapós, das várzeas, em firmes e colinas, que volve ilhas em penínsulas, que também traga, na sua função de desagregar aqui para construir acolá, a terra frouxa solapada pela corrente.

Os cursos fluviais que retalham o vale, à semelhança de filamentos numa folha descomunal, guardam, em seu dorso, além do líquido brotado nos frígidos picos andinos, fluindo das fontes nas serranias, descendo das estâncias do planalto, o caráter eminentemente social do sistema hidrográfico do Amazonas, a vocação de governo sobre a existência humana, ampla e imperiosa.

A carta geográfica apresenta no espaço amazônico os tortuosos riscos azuis dos afluentes, confluentes e defluentes do Rio-Mar, infundindo, a quem lhes relanceie a vista, compenetrado da índole social dos rios, a grande verdade da natureza, cuja contemplação, repetindo Goethe, deve a parte sempre ser considerada como um todo, porque nada é interior, nada é exterior, e o que está dentro está fora, para se chegar a entender de modo mais claro certos segredos aparentemente invioláveis.

Talvez, por falta dessa acuidade é que o viajante, ao ver a Amazônia pela primeira vez, tenha uma decepção, vendo-a "inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada", segundo confessa a pena mais brilhante e emotiva que se molhou nas águas do Amazonas. Mas, é o próprio Euclides da Cunha quem retifica as primeiras manifestações de espírito desavisado em seu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras. Depois de ler uma pequena monografia científica, na qual a luz do Equador parece ter refletido os raios da verdade da terra e da água em sua inteligência, o viajante de ontem, surdo aos clamores da natureza, volveu-se, de comoção em comoção, no impressionista e expressionista que sentiu o drama da vida, que pressentiu os segredos da terra, antes vista nos "horizontes vazios e indefinidos como o dos mares", e como um "bracejo angustioso". E no seu ímpeto verbal viu "a gestação de um mundo, um arranco do triunfo".

O primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais.

Eis o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos Faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva sua.

Mas, quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível que o rio acabasse por vencer.

Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando o desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.

Nos seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul, descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d'água no álveo empobrecido, a água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os gaiolas mais imprudentes que se aventuraram a subir o caminho fluvial no fim da estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparado pelas escoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíde cabos de aço retesos das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os mantimentos, as coisas essenciais da vida.

O seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore do leite, o madeireiro abate os enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os no leito desnudo dos igarapés. Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.

A safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles breves dias de repiquetes, seguindo o mesmo ritmo de fuga das águas barrentas, à procura da foz libertadora.

As comunidades, as barracas, os barracões se desenvolvem à beira dos rios, junto aos barrancos, equilibrados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.

Nas paragens do baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas, imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de montaria a canarana alimentar.

O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.

A noção do jus soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento do rio. Quando alguém se refere à terra natal só costuma dizer: eu nasci no Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.

O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico. 

 

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: uma interpretação da Amazônia. 7ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Manaus: SUFRAMA, 1983. p. 231-234

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