quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

ACHY OU OS CATHAUICHYS

 Antonio Rodrigues Pereira Labre (1827-1889)

Imagem: Revista Illustrada. Rio de Janeiro. 1888. Ano 13. N.º 506
 


Chegadas as familias que tinhão ido refugiar-se em Mirityhan, commessaram os festejos da commemoração da victoria; mortos Arabhuny e todos os prisioneiros, suas carnes foram talhadas, e divididas por grupos ou familias, que sobdividiam por cada individuo que assava com sofreguidão[1]; a antropophagia foi completa, danou-se e banqueteou-se três semanas, a meza foi servida com o vinho de patauá[2]; Achy não tomou parte do banquete, nem tam pouco Caximaham, seu pretendente, que procurava agradal-a, aceitando as suas reformas, e segindo o seu exemplo em tudo, pelo que foram ambos exprobados de todos. Hiyu, Checah, e Uaranah, filhos do cacique Chimarú, d’Aldea do Sipatiny occuparam-se das exéquias do pai morto em combate, de cujo cadáver separaram as carnes dos ossos, e depois de haver comido aquellas, desecaram convenientemente a cabeça e toda ossada, os lavram, e secos ao sol, os pintaram, e, os condusiram comsigo para serem inhumados na terra natal.

Concluida a festa os chefes das nações visinhas retiraram-se levanda cada um a preza, que lhes coube.

Canayuha ficou em sua maloca (Aldêa) expansivo, cheio d’alegria e d’orgulho pelos louros da victoria, apesar d’ainda doente dos ferimentos recebidos. De prevenção havia mandado extrahir as canellas d’Arabhuny, as quaes foram bem preparadas, polidas, e transformadas em instrumento de musica marcial para rememorar os dias d’annos, em que ferio-se a memoravel batalha d’Upahyhan, comemorando ainda este glorioso feito anualmente para memoria, animações e orgulho da nação, e das novas gerações.

Os filhos do cacique Chimarú, morto na batalha d’Upayhan, chegados á sua aldea no alto Sypatiny, reuniram todo o povo da nação historiarão os factos da batalha, em que teve lugar a morte de seo chefe, cujos restos mortaes apresentaram, houve muito pranto, e antes do enterro foi proclamado chefe (Tuxaua) da nação Hiyú, o filho mais velho de Chimarú, e addiou-se as festas do estylo para a primeira lua depois do funeral de Chimarú; na inhumação de seus ossos fez-se ceremonias com muito acatamento e cantorias tristes acompanhados de lamentações, e chorosas despedidas; foi o enterro feito de baixo de coberta enxuta fazendo-se por esse fim uma chocasinha apropriada e bem feita; os ossos foram dados á sepultura, em uma urna de barro queimado, espécie de pote bem tampada; as veses este vaso representa uma figura symbolica ou mítica.

É singular a este respeito o uso dos Ipurinãs do Sypatiny de comerem o pai ou a mãi, que morrem natural ou accidentalmente, é isto tradicional; e parece ser um costume religioso, ou sagrado, procuram evitar a consumpção directa da terra pela decomposição lenta e natural da putrefacção dos corpos; preferem comel-os, supondo guardal-os em si livres de profanação, dando ao mesmo tempo mostra de respeito, estima, e grande dedicação, e assim compenetradas sam a isso levados por dever filial, que consideram sagrado.

Interram, porem, os ossos, e passados dous anos mais ou menos, fazem a exhumação do craneo, lavam-n’o, sendo caprichosamente bem limpo e preparado pintam-n’o denovo e o perfumam com oleo aromatico, e por espaço duma semana lhe fazem veneração por meio d’adorações, levantando cantorias tristes em signal de manifestações de despedida final, derramando lagrimas, e, no ultimo dia destes exercícios fúnebres, o sepultam de novo com as formalidades do estylo, para não mais revolver o sepulchro, e nem perturbar o jazigo do morto.

 

Jornal Commercio do Amazonas, Manaus-AM, 5 de junho de 1880, ano XI, nº 135, p. 2-3

Nota: o presente texto também encontra-se transcrito no livro “Antonio Rodrigues Pereira Labre: homem do Império, político, pioneiro do progresso” (Premius, 2017), de autoria do Pe. Ricardo Cornwall.


[1] Os selvagens do Purús em geral só comem assado.

[2] O patauá é um coqueiro d’uma palmeira do mesmo nome do qual fazem vinho para beber.

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