sexta-feira, 18 de maio de 2018

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO: alguns poemas

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO, prosador, ensaísta, um dos principais poetas da Amazônia. Nasceu em Abaetetuba, no Estado do Pará. Professor de Estética e Arte, doutorou-se em Sociologia da Cultura na Sorbonne, em Paris, com a tese Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Sua obra poética tem sua universalidade construída a partir de signos do mundo amazônico – cultura, história, imaginário – propiciando uma cosmovisão e particular leitura do mundo contemporâneo. Dialogando com as principais fontes e correntes literárias da atualidade, Paes Loureiro realiza uma obra original, quase uma suma poética de compreensão sensível do mundo por meio das fontes amazônicas, em que o mito se revela como metáfora do real.
Foto: Rodolfo Oliveira/Agência Pará

CÂNTICO VI

Quem comanda o rio ?
O mito ?
            A lei ?
                        A lenda ?
Onde perdeu-se o mapa,
o portulano ?
Em que meridiano, norte ou sul,
ou em que polo?
                        Amazônia
                        Amazônia
                                               Quem te ama ?
Quantas vezes, no tempo, o rio encheu-se,
e, quantas outras, vazou ?

O rio não tem consciência
de si mesmo,
no ermo de existir
                                   que é ser corrente.
O rio-em-si não é nem bom, nem mau.
É rio.
E sendo rio
                        inunda e seca,
pois inundar e secar
é o ser do rio
e sua incons/ciência de si mesmo.
A notícia ovula-se poema,
e nem se quer
ou canto
                        ou melopéia.
Quer olhar e dar voz ao que se mostra,
mais que real aqui, agora e sempre...
Mas Tirésias atônito pergunta
aos pálidos pajés sobreviventes:
– “Se o rio nada sabe de si mesmo,
     quem saberá do rio e de seus homens ?” p.37-38


CÂNTICO XI

“ Na jusante
levo-me.
                        Elevo-me ao mar
e
no entanto
            Mar
            sou Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
                            consciente . . .

Certo não sou quem sou,
pois não me penso
e o existir
é minha forma de passar além . . .

Riomar.
Sou rio e mais o Mar
e
além de
              Mar e Rio
                              sou Riomar.
Cavaleiro e campo de batalha.
Arma, defesa e luta.
Sou isto e não aquilo
e sou também aquilo.
O istoaquilo de seres
erros
            res e ser
                              jusante . . .

E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas . . .” p.49-50


LOUREIRO, João de Jesus Paes. Porantim (poemas amazônicos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.


DESLENDA RURAL V

A tarde
            – inversa chama –
medo sobre medo.
O sol cai em placas de metal
e níquel.
            Não há viagens.
                                               Há um rio ruindo.
                                               Giboiando rumos.
A cobiça acorda a pontaria.
A morte circundante é respirada, pisada, olhada.
Há vinte e sete de outubro,
topógrafos do Incra
e tropas da Polícia Militar
                                               foram emboscados.
Dois soldados morreram
e dois vão-de feridos.
Florentino Maboni foi detido,
como padre instigador da rebelião.
Foram vinte e sete dias de detenção,
injúrias e maus tratos.
Posseiros não contavam
com títulos de posse, documentos.
Em cada olhar carimbado de incertezas,
certidões de isolamento e solidão.
escrituras morais, pequenas propriedades,
a rocinha, a criação, a choça casa,
coisas nascidas do sangue,
                                               coisas como filhos.
Esses nadas que retém a mão suicida,
quando o inhambu põe a tarde em nossa alma.
Os grandes proprietários
                                   contrataram
advogados de ouro
e, precavido, alugaram a sanha
disponível de jagunços.
Pistoleiros que, na hora decidida,
mataram botos, uiaras, curupiras
pois, ao matar-se o homem, morre a lenda.
Depois, este silêncio em si.
                                               Cio de silêncio...
Águas, andores, coroas de espumas mortuárias.
O gesto de remar varando as eras
entre besouros ardendo sobre o ouro.
E o sempre violino do crepúsculo,
anoitecendo semibreves no barranco.
E a morte resgatando para o eterno,
igarités de fogo
                        barco alado... p.135-137


DESLENDA RURAL XI

Héveas, evas
            vulvas
abertas, gozo,
                        leite sangrado
sêmen recolhido
                        entre conchas e suor
e ervas de medo.

O seringueiro sangra-se
Sanguelátex.
                        Sanguessugas
                        espreitam o aviamento.
Humos e hímens
                        Deflorações pela várzea.
o empresário
                        o boto
            o capital
                        a lenda
Naufragadas ubás
                        fetos, naus tão frágeis
no placentário ventre das marés. p.155


POEMA

As palavras arfando entre virilhas
entre lábios
            cópulas de consoantes e vogais
Saboreadas palavras
                        defloradas palavras
túmidas palavras
                        ávidas
                                   oh! palavras
arfando umidamente entre pentelhos.
Suor. Calor. Odor. Linguagem. Gozo. p.190


Qual o poder do verbo que se ergue
em arma, em elmo, em alma?
                                               Eu penso, eu sinto, eu olho
e peço à garça voando na memória,
que escreva lentamente os meus versos alados
                                                           nas entrelinhas do mar... p.222


RECEITA MARGINAL

Deixem-no nascer.
O leito da indigência
                        é boa medida...
Sem leite vai crescer
e sem verduras.
A lama há de lhe dar
                        por sob as palafitas
a herança verminosa das marés.
É bom que tenha jeito de sambista.
Escolas não terá
                        e nem infância.
E a juventude, melhor que não floresça
pois seu caule de amor
                                   já foi castrado.
No dia em que sair
                                   de parceria com a lua
( revólver na cintura
                                   e decisão no olhar )
o presunto está pronto, temperado.
Embrulhem-no em manchetes policiais
para servi-lo quente
                                   no café da manhã p.233-234


AMAR

O sexocolibri
                        pousa
em tua corola
                        que se abre
                                               e
sus !
fecha-se.
            Oh ! flor carnívora. p.294


LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cantares amazônicos. São Paulo: Roswitha Kempf, 1985.

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