quarta-feira, 30 de maio de 2018

DO RIO A CRUZEIRO DO SUL, EM DEZOITO ANOS

Jorge Carlos Amaral de Oliveira


Le véritable lieu de naissance est celui où l'on a porté pour
 la première fois un coup d'œil intelligent sur soi-même (...)

Margueritte Yourcenar

Em 1971, saí, a pé, do Rio de Janeiro com destino a Cruzeiro do Sul, no Acre. Mas para contar porque subi caminhando a Serra de Petrópolis, no que foi a maior aventura da minha vida e que me fez vir um dia a assumir essa acreanidade a ponto de brincar que “Acreanos, mesmo, só o Bab Franca, eu e Galvez”, precisamos andar dois anos para trás e contar como o meu caminho se cruzou com o de um suboficial que foi a pedra de toque que fez a minha estrada tomar um rumo completamente alheio à minha vontade.

Ao me alistar para o serviço militar obrigatório fui designado para o Regimento Escola de Infantaria, na minha cidade natal, Rio de Janeiro, porém, quando chegou o dia de me apresentar, estava ausente, nas estradas, como fazia desde os dezesseis anos, quando fugi de casa e da escola. Apresentei-me no primeiro quartel que vi pela frente. Tratava-se do 13º Regimento de Infantaria, em Ponta Grossa, no Estado do Paraná. Lá fiquei sendo o “Carioquinha”, quando tratado com carinho ou, o “Catarina” (alusivo ao Estado fronteiriço), quando com desafeto. Sempre alguém de fora, mas que não era estranho à vida da caserna. As agruras porque tanto reclamavam os colegas, eu as tirava de letra. Casa, comida, roupa e remédio quando precisava e ainda uns trocos no fim do mês para cigarro e outras besteiras, sem precisar meter um prego numa barra de sabão! Só pra ficar de prontidão! Uma prontidão que em dez meses só foi chamada à atividade uma única vez quando de um cerco ao guerrilheiro Lamarca que passaria pela Estrada do Café, mesmo assim coube à primeira companhia a tarefa gorada e não à minha que era a segunda companhia que, se fosse a convocada para a tarefa, eu não saberia o que fazer com aquele que os superiores nomeavam bandido, terrorista, traidor, comunista perigoso... Uns tremiam, outros diziam que mandaria bala, um disse que olhava pro lado, que nem era com ele e que estava ali obrigado mesmo. Mas o ex-capitão Lamarca mudou o rumo e a vida da caserna continuou sossegada. Uma vida assim, sem tropeços, para mim era sopa no mel! Tratei logo de fazer o curso de cabo e de recusar as divisas para poder engajar, seguir carreira e afastar de vez o fantasma da fome, do desemprego e do trabalho quase escravo que via na lida do pai, um gênio que fazia de tudo. Mecânico e eletricista de mão cheia, conhecidíssimo na praça e que passava mil apertos com o patronato e o salário minguado. Também fiz o curso de torneiro mecânico, mas não queria trocar o certo pelo duvidoso (Não sabia que com essa profissão poderia chegar a presidente do Brasil). Desfiz-me de tudo que era civil, nem com as cuecas fiquei. 

O Sub Estácio 

Em uma companhia, geralmente a pessoa mais velha e mais tarimbada na lida militar é o subtenente. Os oficiais são jovens vindos da academia ou de cursos de formação de oficiais da reserva.

Quando ouvi meu nome na relação dos que dariam baixa na primeira leva, tomei a posição de sentido e disse que devia haver algum engano, pois até as divisas de cabo recusei para poder engajar. O sub Estácio caminhou lentamente por entre as fileiras do pelotão e aproximou-se de mim. Falou que tinha sido ele quem pedira a minha baixa. Eu, chorando, disse-lhe que não podia ter feito isso. Lembro-me bem de todas as palavras do nosso diálogo.

- Hoje, você ficará com ódio de mim. Mas, amanhã, você me agradecerá. Hoje, você está empolgado com a vida militar, mas, amanhã, quando for um sargento ou mais, vai querer sair e será pior.

- O senhor não pode saber do amanhã.

- Eu conheço os homens. E sei...

- Mas não é bom para o senhor a vida militar? Porque não pode ser...

- Desde criança, eu brinco de soldadinho.

- Desculpa, Sub, mas eu também brincava de soldadinho quando era criança. Acho que toda criança brinca.

O subtenente Estácio chegou-se ao meu ouvido e, discretamente, falou baixinho:

- Mas eu continuo brincando até hoje.

Tempos depois, em visita ao quartel, que passou a ter outro nome, procurei pelo Sub Estácio. Não o encontrei, mas soube que ele, depois de se retirar, passou a ser o responsável pela Guarda Mirim.

O Sub Estácio continuava a brincar de soldadinho. 

De a pé! 

Hoje, depois de tantas voltas que a vida deu, tenho quase certeza de que se cruzasse o meu caminho com o do Capitão Lamarca, teria entrado para o seu grupo. Mas, na altura, não podia nem imaginar que um dia daria razão ao superior que praticamente salvou a minha vida. Saí do quartel com uma camiseta daquelas manchadas, da moda, que um colega me ofertou, com os coturnos que foram encomendados às minhas custas, pois, devido a um dedão quebrado e mal tratado, necessitava uma biqueira especial e com o calção de educação física que me foi autorizado, posto que nu, não teria cabimento. Todo o resto era pertença do Exército Brasileiro.

A mil e alguns quilômetros do Rio, no frio vento do Planalto dos Campos Gerais, sem dinheiro no bolso ou, melhor explicado, sem bolsos, com o documento de reservista no cós do calção, passei pela última vez pelo corpo da guarda.

Uma calça aqui, uma blusa ali, uns trocados acolá... De volta às ruas da bela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, cidade que maltratava muito os seus filhos mais desafortunados, mas que sabia tratar muito bem os forasteiros. A hospitalidade com que ricos e pobres dispensavam aos visitantes era o que dava o ar de provinciana àquela metrópole que era a capital federal quando nela deitei as minhas primeiras lágrimas e senti fome pela primeira vez. De cabelos claros e acento do Sul na fala, logo fiquei sendo o Paraná e era chamado para as peladas no aterro, para “tomar um café lá em casa”, às vezes para dormir e, também para almoçar ou jantar. De quando em vez ia fazer uma visita ao pai, na oficina e filava a boia. O velho, preocupado ainda me dava alguns possíveis trocados. À casa da mãe, aparecia vez por outra, quando o estômago pedia e quando faltavam os expedientes. E esses escasseavam. Não dava mais para ficar batendo perna pela noite da Zona Sul enquanto o delegado Padilha espalhava o terror entre os vagabundos, prostitutas e cabeludos, para os quais ele sempre tinha uma tesoura à mão. Frequentar a galeria Alaska, nem pensar! Agora, era maior de idade. Ser pego sem carteira assinada era cadeia na certa, três meses por vadiagem. O padrasto me jogava na cara, “Bem que eu dizia pra você ficar no Exército, eles que mandam, agora no país!”  “Quando você fugiu da casa do teu pai eu disse que podia ficar aqui desde que estudasse e trabalhasse. Você não queria saber de nenhuma das duas coisas. Agora... Porque não ficou no Exército?” Bem que eu quis, mas acharam que eu não servia nem pro quartel. Se eu pudesse reengajava. Alguém me falou que se tivesse tido bom comportamento durante o serviço e achasse algum quartel com carência de contingente seria fácil reengajar. Disseram que os quartéis de fronteira, principalmente os de selva sempre precisavam de gente. Quando soube que um quartel de Cruzeiro do Sul poderia me aceitar, não conversei, peguei a mochila com os poucos panos de bunda e marchei para a BR 3 fugindo da vida desregrada, da fome, das incertezas e do Padilha. Mal sabia que esses males iriam para onde fosse, mesmo o Padilha se faria presente em outros. Na subida da Serra fui apanhado pela noite sem estrelas. Os faróis encandeavam na antiga mão dupla. De repente, senti o vazio sob os pés. Sabia o que estava por baixo e, pior, o que podia não estar por baixo. Conhecia bem a altura daquela serra que tanto subi ainda nos tempos da Maria Fumaça cremalheira. A queda na vala de escoamento deve ter durado menos de meio segundo, mas foi o que bastou para ver tudo que tinha vivido até ao momento e me lamentar por não chegar a Cruzeiro do Sul, onde todos os males se acabariam. É impressionante a capacidade de condensação do pensamento involuntário, instintivo. Com os pés bem apoiados no cimento e a mochila acomodada na parede da vala, pensei em ficar ali até o dia clarear, mas se desse uma tromba d’água, muito comum na região, eu seria arrastado para o precipício. Com cuidadinho, saí da vala e continuei a caminhada até pegar a primeira carona, que foi a mais marcante, não só por ter sido a primeira de uma longa e inominável lista, mas também pelas aulas de condução que o vaidoso playboy ia dando para me tranquilizar. Dizia para não ter medo com as aceleradas, pois para entrar na curva é mais seguro entrar acelerando. E o que tem de curvas na BR3! O fusquinha arrastava o traseiro para se encaixar em cada uma delas que por tão mortíferas, a estrada virou canção da MPB, com Toni Tornado. Não me recordo até onde me levou aquela carona, nem quando peguei a outra. Sei que foram muitas paragens. Nem entrava nas cidades, pois porto mais seguro encontrava nos bordéis à beira da estrada. Ainda com a carinha de menino, despertava o carinho maternal das mulheres, para as quais eu sempre fazia alguma tarefa para retribuir os bons tratos. Em Paracatu, cheguei a trabalhar como garçom na casa da Tia Irene. Quando a dona se mudou para o Km 7, na entrada de Brasília, fui também, para trabalhar na nova casa, mas na verdade estava atrás de uma de suas pupilas, por quem me apaixonara. Coisas da vida! Também na má vida! E assim, de puteiro em puteiro, cheguei à Brasília.  Lá, procurei um tio emprestado, marido de uma amiga e colega de minha mãe. Ele era militar e estava a serviço na Capital junto com os filhos, meus primos e amigos de infância e de sempre. Foi uma festa para o rapaz e a mocinha que andavam tristes por estarem a contragosto longe do Rio e da mãe. Fiz inscrição para o voo da FAB para Cruzeiro do Sul e fiquei à espera. Depois de um mês fui atender a um anúncio num jornal à procura de vigilante para a empresa Wackenhut do Brasil. Perguntaram se eu sabia atirar e me deram um revólver deste tamanho e uma farda também enorme e que eu assumiria o posto naquela mesma noite e depois arranjariam uma farda menor. Foi muita risada quando cheguei na 102 Norte (Quadra residencial dos oficiais do Exército). Parecia um num sei o que!  No mesmo dia recebi o telefonema da Força Aérea Brasileira confirmando o voo para Cruzeiro do Sul. Desisti alegando que tinha arranjado um emprego. Na verdade estava emocionado com o fato de poder ter o meu próprio dinheiro para os cigarros e para o cinema. E para comida! Meu primeiro emprego oficial, com carteira assinada. Ah, que vontade de esfregar na cara do Padilha! E mais que isso, atendia ao apelo dos primos que pediam que ficasse e voltasse a estudar. Voltei a estudar. Matriculei-me no GISNO (Ginásio do Setor Noroeste) e retomei a terceira série, na qual havia largado a escola. Porém não servi de estímulo para os primos por muito tempo. Logo, fugiram do pai, com quem fiquei vivendo numa relação amor-ódio.

Ao mesmo tempo em que era a sua única companhia para o jogo de buraco e para os passeios na zona do meretrício do Km 7, tão minha conhecida, era o vagabundo que “vive sem emprego e não trás nenhum dinheiro para a casa”. Entre uma briga e outra, um emprego e outro, ia vivendo, ora na rua, ora dormindo bem. Por azar, coincidia com o frio, as dormidas na rua. Na quarta e última série, quando a diretora soube que eu dormia na árvore do pátio do colégio, tratou de transformar a sala onde estava para ser instalado o gabinete odontológico em um quartinho para mim. Claro que as boas línguas aventavam um romance entre eu e a diretora, o que nunca houve. Dormi bem até ao fim do ano, quando voltei para o deus dará. Sem o Padilha e com a carteira várias vezes assinada, tinha menos medo da noite. Comecei com as aulas num cursinho para fazer as provas do Supletivo. Fiz das tripas coração para pagar as mensalidades do primeiro e do segundo mês. O terceiro, os colegas pegaram do meu bolso o carnê sem que eu visse e pagaram. Estava trabalhando de “empregada doméstica” para um casal de bacanas que tinha um chalé no Lago Norte, mas ainda não tinha recebido o salário. E quando recebi foi o único, pois pedi demissão. O patrão que se dizia meu amigo veio reclamar por eu ter tomado banho na piscina junto com uma colega do cursinho, de quem eu gostava muito. Se eu não podia me servir da piscina de um amigo, também não poderia cozinhar para ele. A amiga, talvez um pouco se sentindo culpada, tratou de me levar para a casa dela. Falou com a mãe, que sempre precisava de uns braços a mais na plantação de café e na construção da casa da chácara que tinha nas cercanias de Brasília. A mãe concordou. Fui trabalhar como escravo na plantação de café. Acordava às seis da manhã, ia para a lida até às seis da tarde. Não podia mais continuar no cursinho, do qual acompanhava as matérias através das apostilhas dos filhos da casa. Para o cigarro e o cinema, fazia uns desenhos em camisetas e uns quadros com linha e, de vez em quando, dava uma escapada na noite. Afinal, eu era escravo por vontade própria já que estava apaixonado pela filha da dona. A Ângela! 

Quem muito dá, acaba comendo 

A carinha bonita que despertava o instinto maternal nas mulheres da “má vida”, agradava bem mais aos homens de “boa vida”. Eu até me lamentava que, se a sorte que tinha com viados e fanchonas fosse com mulheres, seria bem melhor. Mesmo fora da zona, quando calhava uma mulher, geralmente, coroa, também acabava por me apaixonar e, claro, punha tudo a perder.  Ângela não era uma mãezinha, nem uma coroa que me ativasse o Édipo. Por isso, talvez, tenha me agarrado a ela com tanto empenho a ponto de me sujeitar a um trabalho tão árduo só pela casa e comida. E como comia!

Os namoricos apesar de escondidos eram corriqueiros, pois estávamos sempre juntos no trabalho da roça. Ela era o esteio da família. Os dois irmãos não criavam calos. Dois rapazes que eram empregados só faziam o que o salário minguado e as leis trabalhistas aturavam.  Ela, filha adotiva, vivia com medo de contrair a doença que matou a mãe natural, que tinha uma doença mental com cinquenta por cento de possibilidade hereditária, também suportava as mãos calejadas, que não combinavam nada com o seu porte atlético e seus vinte e um anos de idade. Atrelado a essa paixão, vieram outras intermediárias, mas que nunca a abalaram, até que um dia ela me pediu para ir embora já que eu a estava colocando entre mim e a sua mãe, o resguardo para uma possível doença. Um amor que se manteve como uma ameaça para as mulheres com que vim a viver maritalmente até que soube de sua morte acometida pela coreia hereditária, mas muito tempo depois. No momento em que ela me pediu que não a procurasse mais, perdi o pé e só não o coloquei novamente na estrada porque já estava fazendo o curso de Geografia na UnB. A vida saudável no campo fez bem para o físico e para a mente que assimilava bem as lições furtivas. Para alguma coisa boa valeu o tempo de escravidão! Claro que para a dona da chácara também valeu. E muito! Era o pioneirismo das plantações do hoje tão famoso Café do Cerrado. Até hoje desconfio se a mãe não sabia do nosso namorico ou se fazia vista grossa. 

Na UnB 

Entrar para a universidade nunca passara por minha cabeça depois de ter ficado seis anos sem estudar e de ter voltado em tão precária situação, mas o fato é que lá estava eu tentando aproveitar o máximo do que a universidade me dava: comia no Bandejão e dormia no CO (Centro Olímpico), em um apartamento para cinco, mas que ocupava sozinho, à beira do lago. Nunca tinha comido e morado tão bem sem ter que pagar com nada. Não era para concluir nunca o curso! E, sinceramente, seria difícil concluí-lo. Lá fiquei por um ano e meio e nunca saí do básico. Já estava para ser jubilado quando tive que fugir. 

O amigo acreano 

Tinha muitas amizades em Brasília, mas uma era bem diferente, pois a gente só se encontrava em lugares públicos, principalmente na W3. O misticismo que envolve a Capital da Esperança faz com que a gente leve os acontecimentos para outros níveis da existência. Chegava a ser intrigante, depois nos acostumamos, bastava um pensar no outro e lá a gente se esbarrava e sempre saíam boas conversas. Era o Bab Franca, artista plástico acreano e me contava muitas histórias e causos de sua terra. Uma delas, a que mais chamou a minha atenção foi a do menino Shalom que sua irmã tinha apanhado para criar depois de um sonho premonitório. Toda vez que a gente se encontrava falávamos do Shalom e do universo místico que rodeava a criança. A coisa que mais o Bab queria que acontecesse era que eu conhecesse o Shalom. E era o mesmo que eu queria. Um dia, não precisamos ativar a chave do pensamento visto que ambos saímos de casa diretamente para o encontro na Avenida W3. “O Shalom está aqui!” “Vamos!” Quando a porta da casa se abriu e o olhar do menino sentado no chão da sala cruzou com o meu, eu pensei alto e todos ouviram: É meu filho!

A criança já tinha três anos de idade e precisaria pagar multa no cartório para se fazer o registro. Fiz uma vaquinha entre os colegas da universidade e logo arranjamos o dinheiro que deu para a coima, o registro, um garrafão de vinho e uma chupeta, com a qual o menino também provou do vinho. 

1977 

Um ano duro para os estudantes brasileiros, principalmente na Universidade de Brasília, que viu seu campus invadido por dois mil soldados da Polícia Militar com duas metralhadoras ponto trinta apontadas para cada uma das entradas do Minhocão. Eu não entendia nada daquilo e tinha até umas ideias atrapalhadas. Não percebia porque deixavam o King Kong agir tão facilmente a ponto de ser condecorado como o soldado que mais prendeu estudantes naquele ano. Uma fotografia na manchete de um jornal mostrava aquele negão enorme conduzindo duas mocinhas pelos cangotes para jogar no camburão. Por que aqueles filhinhos de papai, muitos deles caratecas e judocas, não davam um chegapralá no soldado que, à paisana, se misturava com os alunos? E por que os alunos invés de ficarem desfilando pra lá e pra cá em frente das metralhadoras, cantando o Hino Nacional, não pegavam na enxada e iam plantar batatas, milho, feijão... Imaginava o campus universitário transformado num batatal. Isso sim seria um protesto, pensava a minha ingenuidade. 

No Acre, mas nada de Cruzeiro... 

Quando tive a primeira oportunidade para conhecer o Acre foi que me veio à lembrança que havia cinco/seis anos que eu deixara a terra natal com destino a uma cidade que ficava nesse Estado. A Silene, a mãe do Shalom estava convalescente do tratamento que fora fazer em Brasília e temia viajar sozinha para Rio Branco, que tinha mais de dois mil quilômetros de estrada de terra, precária, entre Cuiabá e Rio Branco. Fui convidado e aceitei. A greve dos estudantes se estendia indefinidamente. E de mais a mais, eu não me encaixava no movimento, mesmo!

Em Campo Grande pusemos o Shalom num avião e encaramos a BR 364 com todos os seus percalços. Lembro que Silene desmaiou durante a travessia na balsa do Abunã. Estávamos junto à grade, vendo as estrelas refletidas no Madeira, quando ela deu o sinal, agarrei-a como pude e, também muito enfraquecido, quase caímos dentro do rio. 

Mosquitos 

Muito comum quem anda pela Amazônia contrair malária, que é transmitida por um mosquito. A febre amarela, também transmitida por mosquito, era brutalmente combatida, pois as vacinas eram aplicadas obrigatoriamente naquelas pessoas que viajavam de ônibus. Nos aeroportos, os passageiros eram aconselhados e convidados a se vacinar.  Na estrada, se não apresentasse o papel com o atestado com menos de dez anos, levava com a pistola, às vezes, com requinte de maldade. Levei não sei quantas dessas vacinas. Da febre amarela fiquei livre. Da malária, nunca a sorte me calhou. Mas de um outro mosquito não me livrei.

Enquanto descansava da viagem me reabastecendo fisicamente para a volta, quedava-me grande parte do dia, na sala da casa da Deusa Farias, a Mãezinha, a acompanhar o andamento das greves pela televisão ou a ler alguma coisa. Matava o tempo e o calor enquanto levava com a zoada dos ensaios do musical Os Saltimbancos, que o Cícero, um dos filhos da Deusa, dirigia e era composto com gente do Bairro e de casa para apresentar na festa do Dia dos Professores, na Escola Maria Angélica de Castro. O Cícero desde criancinha era fã da história “Os Quatro Heróis”, uma adaptação de “Os Músicos de Bremen”, dos Irmãos Grimm para a Coleção Disquinho. Quando ouviu o LP que Silene e eu levamos para ele, ficou encantado. E assim, a peça teatral de Sergio Bardotti e Luis Enriquez, com tradução e adaptação de Chico Buarque, que, àquela época era a coqueluche no Brasil e fazia furor em Brasília sob a direção de Hugo Rodas, marcava presença também no Acre.

Aconteceu que o Lildo, o único adulto do grupo, quando viu o pátio cheio de moças, deu cagaço. Arrancou a cangalha da personagem e fugiu. Silene correu para mim e me sacudiu pelos ombros dizendo em desespero: Salva o meu irmão! Só você pode ajudá-lo. Faça o Jumento. Tenho medo que ele faça alguma besteira... Olhei o pátio lotado. Gente em cima do muro e nos galhos das árvores. “Não! Vocês são malucos!” O Cícero se chegou com a canga do Jumento nas mãos dizendo que era fácil fácil mole mole, não precisa nem falar é só mexer a boca. Recusei alegando que para a dublagem ser bem feita eu tinha que saber o texto. “Claro que sabe! Você escuta todo dia!” Tive a minha primeira lição de teatro. Mais do que com a experiência que tive com o Santo Daime, que me fez sair da Cinco Mil sem olhar para trás para não ficar por lá, aprendi que o inconsciente guarda muitos segredos e sabe muito. Não quis ser responsável pela besteira que alguém desesperado pudesse cometer. Aceitei. Com a ajuda do Cícero/Cão, que atuava e dirigia ao mesmo tempo e um pouco instintivamente lá ia eu balbuciando as palavras acertadamente. Não é que o Cícero estava certo. Eu, ou melhor, o meu inconsciente sabia de cor e salteado. Mas, quando chegou no momento em que todos os quatro heróis davam o braço e cantavam “Todos juntos/Somos fortes...” me deu um frenesi, uma coisa mais estranha do que o que senti com o Ayauasca. E eu não me contive, cantei alto. Os outros foram contagiados e cantaram. Professores, alunos, funcionários da escola e moradores da Seis de Agosto foram à loucura. Que festa! Sou agradecido de coração ao Cícero e à Silene. Fui picado pelo mosquitinho do teatro. E esse, é como o da malária, não tem vacina! 

A volta 

Como a aventura é a aventura e dureza por dureza, melhor geografar outras plagas, em Porto Velho resolvi tomar o rumo de Manaus. Que estrada! Se hoje, que até asfalto tem é assim, imagina naquela altura. Não sabia eu que essa volta aventuresca fazia parte da minha ida. Esta e outras aventuras que se seguiriam eram meandros da mesma estrada que me levava para o Acre. O pouco dinheiro que tinha ficou pelos atoleiros. Quando cheguei a Manaus fui direto para o porto e comecei a carregar a bagagem dos passageiros que embarcavam para Belém. Na última mala que levei, fiquei. Armei a rede, deitei e só saí dela muito tempo depois do apito do navio, a tempo de ver o encontro das águas do Solimões com as do Rio Negro, que só conhecia no desenho das calçadas de Copacabana, sem no entanto, saber que representava o Encontro das Águas manauaras. A clandestinidade foi revelada na hora de se servir o almoço. Fui levado como se fosse um bandido para o comandante. Na cabine de comando deparei com um emblema da maçonaria. Um conhecido uma vez ensinou-me uns sinais de identificação entre maçons. Tentei aplicar algum, mas não deu certo. Ou pagava a passagem ou... no mesmo instante que falava, o comandante já acionava o rádio para comunicar à polícia de Belém a presença de um clandestino. Garanti que pagaria a passagem, não até ao final da linha, mas até a cidade mais próxima. O capitão aceitou e me deram a cuia para o almoço. Até hoje não consegui descobrir que maçaroca era aquela que grudava na cuité. Conheci uma senhora que muito navegou no Lobo d’Almada e também ela, boa conhecedora da culinária, nunca identificou pelo menos a base daquele grude. O dinheiro que arrecadara como estafeta, não dava para cobrir a passagem até Oriximiná, a primeira parada a vinte e quatro horas de viagem. Tinha menos de vinte horas para arranjar o restante. O Lobo d’Almada era um navio com três conveses e era um perfeito gráfico da pirâmide social. A terceira classe era um mundo de gente, que apesar de desprovida de quase tudo, se interajudava. Se eu fizesse um peditório ali, podia demorar, mas  conseguiria o montante, só que eu não tinha a cara de pau para achacar gente em tão precária situação com quatro dias de viagem pela frente. Encontrei um rapaz, que tocava sua flauta doce, sozinho a um canto. Puxei conversa. Um andarilho com pouco tempo no trecho. Falei-lhe do meu problema e ele não sabia como ajudar. Quando disse que podíamos passear pela segunda classe, onde estavam jornalistas, escritores e turistas e na primeira, onde ficavam os mais afortunados... você bonito como é, moreno, simpático... Ele deu um pulo. “Tá doido! Faço isso, não!” Eu ajudo, disse eu. Todo mundo vai contribuir, você vai ver. Você toca a flauta e eu faço umas gracinhas e rodo o chapéu. “Ah, é isso? Pensei que era outra coisa! Eu nunca fiz isso, mas não custa experimentar.” Em pouco tempo levantamos um dinheiro que dividido pelos dois completava a passagem que, imediatamente, entreguei na mão do capitão. A boia do almoço ainda rebolava no estômago quando soou o apito para a janta. O mesmo cardápio do almoço. À noite, um emaranhado de redes, não me permitia andar até ao banheiro. Rastejando, não consegui ir muito longe. Ao sentir as fezes que estavam em meu caminho, urinei ali mesmo. Como é que se maltrata assim um povo! Pela manhã, correu a notícia que o ancião de uma família tinha se suicidado. Um velhinho simpático com quem conversamos e para quem o flautista dispensou umas canções a seu pedido. Não o vi depois de morto, nem cheguei a prestar condolências à família. Pouco antes de aportarmos, a atenção voltou-se para uma cena mesmo inusitada. Tem um fenômeno no rio Amazonas chamado Terras Caídas. Blocos de terra se desprendem das margens que às vezes formam ilhas flutuantes. Numa dessas estava um arbusto e, junto a ele, com a cara mais triste do mundo, um carneirinho. Foi uma gritaria geral para que se parasse o navio, mas o insensível do comandante nem ligou. Fico imaginando no que se transformaria aquele cordeiro: se um símbolo do povo espezinhado, que espera novos tempos ou se um banquete para vingar a gororoba. 

O deputado 

Em Oriximiná encontrei uma amiga de Brasília que trabalhava como enfermeira no posto avançado de uma universidade. Ela ofereceu-me uns trocados que deu para a passagem até Santarém. O barco para cinquenta pessoas, ia superlotado. À noite, uma tempestade nos pegou. As redes batiam umas nas outras. Tomei a posição fetal e nem botei o nariz de fora. Pela manhã, com o corpo todo dolorido, chegamos a Santarém, onde fui logo para o aeroporto tentar melhor sorte. Estava quase anoitecendo quando um passageiro, sem mais nem menos, perguntou-me o que fazia por ali. Ao ouvir minha resposta, disse imperativamente “Venha comigo!” Pegamos um táxi que nos levou ao Tropical Hotel. Não poderia imaginar tanto luxo numa cidade tão jogada fora como eram as cidades ribeirinhas naquela altura. Ficamos no mesmo quarto. Eu, numa cama de solteiro e ele na principal. O cansaço e as dores nas costelas e nas ancas não dava tempo para estudar melhor a situação. De cara, percebia-se que não se tratava de nenhuma “pegação” e eu já estava acostumado com essas ajudas, muitas das vezes, despretensiosas, que surgem no trecho. Depois do café da manhã, que para mim foi um banquete, tomamos o mesmo táxi e o homem a quem os empregados do hotel e o taxista tratavam apenas como Deputado, foi logo perguntando ao taxista, “Conseguiu?” O motorista assentiu e entregou-lhe uma pasta 007 e este rapidamente passou-a para mim, no banco de trás do fusca. Pelo tufo volumoso que demonstrava claramente a forma do tambor e da coronha, percebi que se tratava de um revólver. “Não larga essa pasta de jeito nenhum!”.  O motorista disse que era o que se pode arranjar, que se tratava de um 38 e que o deputado poderia ficar à vontade. O Deputado tranquilizou o chofer que se mostrava um pouco nervoso. “Não vou fazer nada. É só pra dar um susto...”  O meu anjo da guarda que, literalmente veio do céu, era Domingos Scarpelini, deputado estadual do Paraná, pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido de oposição ao governo sustentado pela Ditadura Militar. Ele estava indo a Altamira resolver umas pendengas familiares. Contou que um cunhado tinha roubado umas terras da irmã e ele iria fazer o homem dar para trás no negócio. Pegamos o teco-teco para Altamira, a cidade que, na época, era a que mais crescia no país. Crescia como cresciam as cidades do Velho Oeste Americano durante a Corrida do Ouro, não precisa dizer mais nada! E lá estava eu... “Fique aqui no portão. Qualquer coisa, eu te faço um sinal.” ...encostado no esteio do portão do terreiro, displicentemente observando a conversa dos dois na varanda da casa a uns vinte metros. Não escutava nada. Só via os olhinhos do cunhado revirando-se nos óculos fundo-de-garrafa. Consegui achar graça da cena que parecia de desenho animado, mas não sabia se iria achar graça em muito mais. Ligeiro como ele só, o deputado deu-me um tapinha no ombro e disse enquanto pegávamos um táxi para o aeroporto “Foi fácil, não disse!? Quase se borrou!” O deputado ameaçou o cunhado dizendo que eu era um desses matadores de aluguel do olho amarelo, que cumpria pena, mas que o diretor da penitenciária tinha liberado em troca de uns favores políticos. Ele comprou a passagem no balcão da TABA (Transportes Aéreos da Bacia Amazônica), deu-me uns trocados e se despediu. Quando ia subindo a escada do avião foi que me atinei: “Tá doido, deputado! Depois de tudo que o senhor falou de mim... ficar aqui...” “É mesmo!” Pediu para o piloto esperar um pouco e comprou outra passagem. Assim, cheguei a Belém, cidade da qual só conheci as livrarias, visto que estava com dinheiro e podia cumprir a promessa que fiz à Silene de comprar pra ela um livro, que ela não sabia a autoria e que dizia se chamar Fala, João Ninguém. Não encontrei. Em toda cidade por onde passei, procurei e nada.  O dinheiro deu para chegar de ônibus a Maceió, onde não fui às livrarias nem a nenhum outro lugar, pois fui preso pelo DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) local. 

Fátima Belo 

Da prisão que tive na capital de Alagoas falarei só por alto, pois de tão emocionante que foi, conto-a num artigo que chamo de Minhas Nove Cadeias em Tempo de Ditadura, Mas Sem Indenização. Foi no dia em que de uma vez só, foram expulsos trinta estudantes da UnB. Um soldado do exército que ouviu minhas conversas com a professora Fátima Belo, alagoana que trabalhava em Recife. Ela e seu filhinho Fábio viajavam no mesmo ônibus, que ficou mais de uma hora parado frente a um quartel já perto do final da linha, enquanto o soldadinho verde me dedurava para o capitão. Comigo levava um livro com a peça do Millôr Fernandes, Liberdade, Liberdade. A peça era proibida, mas o livro, não. Uma fita cassete com músicas de vanguarda, inclusive, Geraldo Vandré, mas não tinha a Pra Não Dizer que não Falei das Flores, então, proibidíssima. O próprio delegado, homem culto, maçom, com curso nos EUA, disse que não via nada em mim que justificasse a prisão, mas as ordens vinham de cima, que eu tinha que compreender. Até hoje não percebi como escapei. Não acredito que foi por causa dos três pontos em triângulo que fiz na assinatura do depoimento. Eu não sou maçom, nem sei se as coisas funcionam como me disseram que seria nessa irmandade. Pode ser que tenha sido para que eu, quando saísse, me seguissem até à casa da professora. Dei mil e uma volta até tornar à sua casa. Ela saciou a minha fome dos três dias lá dentro e me deu um dinheiro para sair dali o mais rápido possível. Nunca soube mais nada dela. Mesmo hoje, com toda essa tecnologia nas comunicações. 

O teatro 

Contava pra todo mundo o fenômeno que acontecera comigo quando pisei pela primeira vez um palco. Afinal, isto me ajudou a me livrar do trauma infantil quando me preparei tanto para fazer duas esquetes na festa da escola e a professora não me deixou por eu estar sem uniforme. Quando a única camisa do uniforme estava por lavar ou consertar eu ia para a escola com uma blusa de lã. No calor de Capricórnio eu dizia que estava com febre e sentia frio. A bronca com a professora só se apagou de vez quando, muito tempo depois, como diretor, pensei na falta de atenção da professora. Uma cena se passava num dia de chuva. O pulôver cairia bem como figurino. Na outra, eu fazia uma múmia, ora! Bastava enrolar-me com papel higiênico e ninguém ia saber que eu estava sem o uniforme tão obrigatório, mesmo para os pobres.

Certa noite, ia passando pelo Beirute, bar na Asa Sul que era o ponto de encontro da malucada, quando um conhecido me chamou à mesa e apresentou-me a um diretor que estava montando uma peça e precisava urgentemente de um ator para completar o elenco. “Ele já tem experiência. Conta aquilo que você fez lá num sei aonde!” Deu-me medo. Naquela altura tinha aulas pela manhã e pela tarde. Tinha que arranjar alguma coisa. Mas tive medo. Seria coisa de profissional. “No Acre! Mas foi coisa pouca. Era uma...” O diretor e produtor Luiz Negrão foi logo dizendo que não precisava de muita experiência, que o papel não exigia muito do ator que bastava saber cair e dar uns saltos, e que ele pagaria tanto por cada espetáculo e mais tanto pela apresentação para a Festa da Páscoa da TV Globo. Não quis nem saber quantos tombos iria levar, não podia era perder essa boquinha. Em vez de michê, cachê! A peça era Pluft, O Fantasminha, de Maria Clara Machado. Gerrô, Luis e eu fazíamos estripulias mirabolantes como os Três Marinheiros. Gê Martú, que fazia o Perna de Pau indicou-me para outro espetáculo amador que o Bené Setenta estava montando e tinha convidado a ele, que era o ator mais cotado de Brasília e não podia assumir o papel. Lá fui eu! Duas peças ao mesmo tempo. Uma para crianças, outra para adultos, Uma de dia, outra à noite. Tive que me desdobrar com justificativas para manter a moradia de graça e comida barata da universidade. Na apresentação para a Globo que foi no Drive-in, as crianças em cadeiras de roda foram colocadas na lateral do palco por onde os marinheiros saiam de cena. Em sintonia muda, Luis e eu fazíamos um espetáculo à parte só para eles em cada saída e entrada. Só eles viam! 

Não tem volta 

A minha ida de vez para o Acre tem duas versões. Todas duas verdadeiras. Uma, fugindo da polícia. Outra, para ganhar dinheiro. Conta-se uma ou outra dependendo do teor da conversa. Aqui, contarei as duas.

Escrevi umas bobagens num cartão postal e enviei para um amigo. Ele e outra amiga comum ameaçaram me entregar para a Polícia Federal. Escaldado que sou com polícia, não pestanejei. Peguei duas mudas de roupa e caí na estrada rumo ao Sul. Em Curitiba fui à Assembleia dos Deputados atrás do deputado Scarpelini. Ele disse que eu ficaria na casa de seu pai, em Apucarana e que de lá iria para a fazenda que ele tinha em Rondônia. Estaria bem guardado e ainda poderia trabalhar para ele na sua fazenda onde começara uma roça de café. Estava tão escaldado com café quanto com polícia. Ao me apresentar ao capataz da fazenda, deixei lá a sacola com as poucas roupas que levava e, com a desculpa que tinha que ir a Porto Velho resolver uns documentos, nunca mais lá pus os pés. Cheguei em Rio Branco descalço e alquebrado, mas logo recuperei aos cuidados da Mãezinha. Deusa Faria tinha criado nove, mas sempre tinha um ocasional. Naquela altura, era eu e o Lildo, o que fugiu do Jumento, mas que um dia fez um grande papel num filme de minha autoria. A minha retribuição a tão grandiosa acolhida se deu em pequenas ações. As mais marcantes foram duas: trazer para o círculo familiar o menino Ceomar, que era o terror das crianças da Deusa, que eram sempre agredidos por ele, que não passava em frente da casa sem atirar umas pedras. Ironicamente, o Ceomar era admirado pelos meninos da Deusa pelas suas proezas aquáticas e vida totalmente livre. Era como se fosse filho de boto tal a desenvoltura e prazer com que se atirava às águas do rio Acre. Quando com ele me confrontei, soube que suas ações eram movidas por ciúme. Os Faria iam à escola e ele nem sabia ler. Conclusão. Passou a frequentar a casa da Mãezinha, onde aprendeu a ler e da qual cresceu sendo um verdadeiro guardião. Por último, foi trabalhar no garimpo do Josias Farias. Um garimpo de rio. A outra, foi uma das maiores façanhas da minha vida. A Silene queria fazer uma casa em seu terreno no Quinari. A Edunira Assef desenhou uma casa sextavada. O hóspede preferencial do momento era um americano de dois metros de altura, que comia muito, mas compensaria com seus conhecimentos no trabalho com madeiras. Comprou o melhor serrote, o melhor martelo... tudo muito caro como convém a um artista internacional. Mas o tempo passava e a casa não saía dos alicerces, que lá já estavam. A despensa reclamava. E uma dispensa se fez necessária. O carpinteiro Jofre foi chamado a substituir o comilão mas, experiente que só, foi logo avisando que sozinho não daria conta.  Jofre e eu ficamos três dias só namorando a base. Quando a gente chegava lá de manhã víamos as marcas dos pés dos curiosos que chamava aquele desenho no chão de (se não me falha a memória) jaburu. Ao terceiro dia, calamos a boca da vizinhança ao deixarmos de pé os seis esteios sem um prego sequer e sem amarras. A própria Edunira fez questão de fotografar os encaixes que fizemos. Depois disso foi rápido. Apenas muito sacrificante pois a madeira era Cumaru Ferro e aí valeram as ferramentas compradas pelo americano. Só para ter uma ideia, o pequenino Jofre e eu também pequeno, não comíamos juntos num dia o que o visitante comia no almoço. Fiquei no Acre até a poeira baixar. Ao ter a certeza de que os amigos não fizeram a denúncia contra mim tornei a Brasília para trancar a matrícula. E ainda tinha que encontrar o “Fala, João Ninguém” da Silene.

A outra versão. Eleonora se empenhou em levantar dinheiro para o irmão Bab ir para a Europa. Naquele tempo existia um tal de imposto compulsório para quem quisesse viajar para o exterior e que era mais caro que a própria passagem. Do imposto, o Bab se livrou por um erro da burocracia que tanto atravanca como beneficia. Conseguiu a permissão que artistas e desportistas tinham quando à convite ou para representar o Brasil oficialmente. Com a exposição que fizera na Aliança Francesa e com o leilão de um quadro conseguiu-se grande parte da passagem que para ser completada, a Eleonora, com um filho no colo e outro no bucho, revirou de pernas pro ar o Congresso Nacional, numa campanha que durou bem uns três ou quatro dias. Bab e eu ficávamos só olhando enquanto a irmã achacava deputados e senadores. A cena mais marcante foi quando o Senador Guiomard Santos não deu nada e ela feito um siri na lata, enfiou o dedo na cara do velho gritando um monte de impropério. Dizia que o irmão iria sim pra Europa e iria fazer bonito mesmo sem a ajuda de um velho muquirana como ele. Disse ainda que o Acre estava naquela miséria por culpa dele. Quando íamos saindo do gabinete, o velhinho se tremendo todo enfiou a mão no bolso e ofereceu uma nota de valor mediano, dizendo que não tinha entendido bem a intenção do pedido. Eleonora, chorando atirou-se a ele num abraço. Não pediu desculpas, mas, foi emocionante para os dois. Ele, o responsável pelo Acre ter deixado a condição de Território Federal e ela, uma lídima representante cultural desse novo Estado. Os quatro, melhor, os seis. Fernando nos braços e Iriá na barriga, lá mandamos o Bab pras Europas! Ainda no aeroporto a Eleonora diz: “Agora vamos mandar você! Tenho medo do meu irmão lá, sozinho. Não fala inglês, nem francês...” “Tá maluca mulher!” O Bab era artista e teve como concorrer à isenção. Eu não via como a gente iria levantar os 20 mil da passagem mais os 22 mil do imposto. Revirar o Congresso novamente, nem pensar! Como é que vamos arranjar dinheiro? “Vamos fazer o Pluft, O Fantasminha, lá no Acre. Dá dinheiro. Teatro infantil dá dinheiro. Não viu o teu diretor... vocês ganham uma mixaria, mas ele comprou até carro novo!” Eleonora acompanhou de perto o andamento da peça, pois quando o seu apartamento na Asa Sul alagou com a chuvarada, ela se mudou para os bastidores do teatro da Escola Parque, onde apresentávamos a peça, na qual, bem me lembro eu fiz o Fernando Sevá bater palmas pela primeira vez. “Está decidido” continuou ela “eu largo a IBM e a gente vai. Você vai na frente e vai ensaiando. Depois eu vou com a Mariquinha, ela é baixinha, dá bem pra fazer o Pluft. Vai... A Silene te ajuda. Chama o Cícero, chama o Cezinha... leva já as cópias do texto.”

Cheguei de ônibus em Rio Branco. Entrei no primeiro táxi e disse “Pra casa da dona Deusa Faria...” “A ourives, na Seis de Agosto, perto da caixa d’água?” “Isso! Por favor!”

E a Mãezinha ficou sendo a Mãe Pluft. A atriz Deusa Farias que até veio a trabalhar com João das Neves. Grande atriz, que deu uma perspectiva nova à personagem. Uma mãe mais proletária com que a plateia se identificou melhor. Muita gente foi ao teatro só para ver a Deusa.

Antes de ganhar havia que gastar e para gastar havia que arrecadar. O que mais se via era a Eleonora com uma pasta debaixo do braço trocando nome no cartaz por patrocínio em dinheiro, em tecido... na Casa Natal, a Síglia desenrolou todo o cetim que precisávamos. Para dar uma ideia do quanto custou a produção, a peça até então mais cara de Brasília foi a primeira apresentação depois da liberação pela Censura Federal de “Eles Não Usam Black Tie”, com a presença do autor Guarniere e tudo, custou ao Bené 150 mil cruzeiros e a nossa custou 15 mil cruzeiros. Da Fundação São Judas Tadeu, do deputado federal Nosser Almeida conseguimos um bom montante mas nos custou a perda da Mariquinha que alegou motivos ideológicos muito justos, afinal, só Eleonora e eu tínhamos outros propósitos. Saí à cata de outro Pluft e ele veio até a gente na curva da caixa d’água, de moto. Era a Bruxinha, a Francis Mary, não era a Bat Girl. O Tio Gerúndio ficou sendo o Cícero, a Maribel, a Dalva Emília, o marinheiro Sebastião, o Cezar Garcia Lima, o marinheiro João, era o Fernando Mello e eu, me desdobrava entre o marinheiro Julião e o pirata Perna de Pau. A Deusa, mulher do carpinteiro Jofre, foi a costureira. Quando lhe mostrei os desenhos do figurino, ela me perguntou se eu queria bitaca e fui motivo de muito riso até descobrir de que se tratava. Para mim tudo era novidade. Uma outra língua. Uma outra linguagem. Para o Acre tudo foi novidade também. Certo que por cá se fazia um teatro exemplar para o mundo. Um teatro de resistência e de denúncia... através do Matias com o seu Grupo De Olho na Coisa. E outros grupos ligados às comunidades de base da Igreja. Mas o Grupo Sacy, que ajeitou às pressas a papelada para que se conseguisse os três grupos necessariamente obrigatórios para ser fundada Federação de Teatro Amador do Acre (FETAC) foi o primeiro a montar um espetáculo com uma direção assinada, a fazer cartazes e outros tipos de divulgação, a fechar as portas e colocar uma bilheteria cobrando ingressos e, pagar cachê. O palco foi o do Colégio Acreano, mandado reformar pelo Orlando Miranda do antigo SNT (Serviço Nacional de Teatro), mas que estava muito mal aproveitado. O Cezar Faria, que e acionava a aranha com ímã do cenário, de vez em quando ia ao porão e atiçava os morcegos que ficavam pra lá e pra cá na casa dos fantasmas. Era o delírio.

Deu dinheiro? Deu! Mas quando acabou a apresentação de estreia e algumas pessoas mesmo idosas vinham dizer que sempre ouviram falar desse “tá” de cinema, mas nunca tinha visto e que achou bom. E quando vi os olhinhos vidrados das crianças que não desgrudavam da gente... me veio à cabeça as crianças nas cadeiras de roda de Brasília, as trepadas nas árvores da Maria Angélica... E eu disse pra Eleonora. “O Bab tem a sua Estrela. Ele vai se dar bem sozinho. Vamos ficar fazendo isso. Vamos rachar a grana ou então guardar para montar outras. Você largou um emprego em Brasília, eu deixei de trabalhar no Black Tie... Vamos valorizar isso!” “É mesmo, manin!”
Equipe do Pluft, acervo do Grupo Sacy
Levei quinze dias, de atoleiro em atoleiro, até ao Rio para levar um cartaz e o dinheiro respectivo aos direitos autorais. A Maria Clara Machado até se assustou quando entrei n’O Tablado, ainda sujo de lama. Abriu mão da percentagem, agradeceu o carinho com que tratamos a sua peça e me falou da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), que é quem faz a arrecadação. Fui à SBAT para pedir informação sobre outras peças e acabei por ficar sendo o representante acreano da Entidade fundada por Chiquinha Gonzaga e que, hoje, anda capengando. Voltei com a corda toda! E, finalmente, levando o livro da Silene que, afinal não era “Fala, João Ninguém” e sim “Escuta, Zé Ninguém”, de Wilhelm Reich.



Cruzeiro do Sul é logo ali 

Passei a viver para o teatro e como não vivia do teatro tinha que de novo viver de expedientes. Só que agora, os expedientes eram outros. Metia-me em tudo que era concurso: de música, de desenho, de pintura, de fotografia, literários... Artes que comecei a desenvolver para suprir a falta no meio teatral. Aqui, acolá, ganhava algum. Um dinheirinho que sempre chegava em boa hora.  A preocupação passou a ser gritar as injustiças por que passava as gentes e a mata do Acre. Quando precisava de um dinheiro maior fazia exposições com os desenhos a café, escrevendo e vendendo livros mimeografados e  com o artesanato que chamei de Cascagrossa. Cheguei a ter alguns empregos, mas de pouca duração. O teatro tomava todo o tempo. Tive quatro vidas maritais. Uma que ficou sendo a segunda mais falada de Rio Branco, só perdendo para a do Maestro e a Pianista. Algumas vezes dava uma fraquejada e fugia. A provação era muita. Caganeira que durou um ano e meio e uma curuba com a qual tive de me acostumar. Tudo isso aliado às dores de dente e à fome, já conhecidas de antanho.  Quem sabe vira um livro? Muitas histórias. A do osso buco com que o Valério e sua família, mulher e cinco filhos, repartiu comigo o caldo durante um mês, enquanto eu estava refugiado no Teatro Barracão preparando uma exposição. A da fuga em Brasileia, por oferecer o meu trabalho a Wilson Pinheiro, líder sindicalista assassinado fazia uma semana. Das montagens teatrais que fiz. De não medir esforços para botar o povo no teatro, no palco e na plateia. De apesar de ter conseguido a profissionalização, nunca abandonar o espírito amador. Da mulher que tinha que comer fruto do mar pelo menos uma vez por semana e eu ia roubar sardinha no mercado. De João e Maiara, os filhos que tive para além do Shalom. Da passagem pelo curso de Geografia da UFAC, do qual saí no terceiro período. D’O Casarão. Do La Gondola, onde muita gente ia comer só para ver o garçom diferente e acelerado que eu interpretava para ajudar a Graça, que junto com o Valter nunca se furtou a ajudar os artistas. Da relação com o SESC. Das parcerias em atividades culturais e de lazer com Gregório Filho e com Moacir Barbosa. Com a Fundação Cultural. Do Cine Recreio. De Glória Marques. De Kikha Danttas. De Hélio Melo. De Valdenice Silva. Do Major, que Zé Chumbinho dizia ser o maior ator que ele conhecia. Do próprio Zé Chumbinho. Tantas histórias. Da parceria tão profícua com Alberto da Cunha Melo. Das noitadas com Nivaldo preparando cartazes subversivos na gráfica da Fundação Cultural. Da menina que pedi pra casar com ela e levei com uma panela na cabeça. Do meu envolvimento com o cordel. Do Palhaço Trimpulim que eu incorporava e que durante cinco anos fez dupla com o Tenorino. Dupla que aprontava bastante, até mesmo botar o povo a cantar A Internacional na praça em frente ao quartel da PM. Da viagem da dupla de palhaços, de bicicleta até Porto Velho. Sete dias e meio fazendo apresentações nos atoleiros ao longo da estrada. Da experiência como jornalista do Folha do Acre, que saía para fazer uma reportagem e voltava com uma crônica. De ter feito por merecer alguns poemas, inclusive o Poema Póstumo, de João Veras. Da placa do doutor Parigot e os aperreios do Correinha. Do desenho encomendado pelo  Adonai Santos que foi parar no lixo ou ele daria para um cego. Do quadro que o Aragão surrupiou da Secretaria de Indústria e Comércio. Das fugas. Tantas fugas. Não só políticas, mas conjugais. Para Rondônia e a confusão que armei enquanto professor em Porto Velho, não deixando um sargento da polícia entrar na sala para retirar um aluno. Para Brasília, onde com o apoio do grande e velho amigo Porchat, fiz uma exposição. Da volta a pedido da governadora Yolanda para assumir o Cine Tetro Recreio. Da fuga para o Rio e o tempo que tive de ganhar a vida como profissional do teatro. E da volta, já com o “Frei Molambo, Ora Pro Nobis”, da Lourdes Ramalho preparadinho e já estreado em Niterói. Foi aí que o Gregório Filho, presidente da Fundação Cultural  e a Mira, então minha chefe na área de teatro e também participante do coro do Frei Molambo arranjaram para eu fazer uma oficina de teatro em Cruzeiro do Sul e também apresentar lá, o Frei Molambo.

Se você sai a pé e leva dezoito anos para chegar a algum lugar, só pode chegar mesmo é todo esmolambado. E mesmo esmolambado ainda fomos para Portugal. Os vinte anos na Terrinha, eu conto depois.





(...) mês premières patries ont été les livres. 

Se o verdadeiro lugar de nascimento é onde alguém lança um olhar inteligente sobre si mesmo, como bem disse a Marguerite Youcenar, e as suas pátrias são os livros, eu posso dizer e digo. Sou acreano. Mesmo quando, já em Portugal, passei a escrever, primeiro procurei pagar o meu tributo aos poetas, feiticeiros, artistas, amigos... às pessoas que me impediram de ficar rico, e escrevi O Português ou Escravos da Esperança, ganhei um prêmio bom em dinheiro. Aumentei a dívida. O jeito foi voltar. Protelei pelo desânimo de não ter mais a Mãezinha. Mas, hoje, tem a Giselda e toda a troupe dos Castela. Ainda deve ter algo para se fazer. 


Para conhecer um pouco mais da obra de Jorge Carlos Amaral:

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