quinta-feira, 3 de maio de 2018

POEMAS DE ASTRID CABRAL

Astrid Cabral (1936), poeta e contista amazonense, integrou o importante movimento Clube da Madrugada, em Manaus. Já recebeu os seguintes prêmios: Prêmio Olavo Bilac (1987), da Academia Brasileira de Letras, com a obra “Lição de Alice”; Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody (1998), da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, com a obra “Intramuros”; Prêmio Nacional de Poesia (2004), da Academia Brasileira de Letras, com a obra “Rasos d’água”; Prêmio Troféu Rio de Personalidade Cultural 2012, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro. Possui vasta obra, entre as quais, Alameda (1963), Ponto de cruz (1979), Torna-viagem (1981), Lição de Alice (1986), Visgo da terra (1986), Rês desgarrada (1994), Ante-sala (2007), Palavra na berlinda (2011), Infância em franjas (2014).
Foto: elfikurten


RÉQUIEM

Pesado é o coração
do escombro de teus sonhos
e dos mortos que em teus ombros
repousam imortais.
O amor de ontem
é cinza feita chumbo.
Cicatrizes e rugas
lavram a tua carne
de aflições temperada
e a vazante das veias
irriga-se
de subterrâneas lágrimas antigas. p.28


CARESTIA

Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos,
a conta escorchante
das noites em claro,
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo,
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos? p.31


A FOGUEIRA

Em dezembro, sonhar com janeiro,
em janeiro pensar: fevereiro
vai ser bem diferente
A semana inteira chocar o sábado,
no sábado, esperar o domingo.
No domingo dizer: no outro, quem sabe?
O tempo todo apoiar-se na bengala
da ilusão, a preferir a cegueira
à visão do abismo.

Cansei-me da farsa.
Fiz uma fogueira, joguei
a esperança dentro dela
e arregalei os olhos. p.37


CIRCUNSTÂNCIA-MOR

Não só terra e ar
são teu elemento.
A solidão que te cinge
é a circunstância-mor.
Povoado, o mundo mascara
e te confunde bastante:
família e amigos bordam
com palavras e abraços
a miragem das pontes
a ilusão dos laços.
Mas a tua carapaça
refratária, intacta
não trinca ao toque
de nenhum afago.
És sólido, insólito ovo.
(A vida latejando
recôndita, secreta,
na gema de pedra
que ninguém penetra.) p.39


PONTO DE CRUZ

Lá fui eu ao armazém
comprar açúcar e mel.
Voltei com um quilo de sal
na boca o gosto do desgosto
lágrimas no rosto embutidas.
No balcão ao pedir vinho
vinagre me foi servido,
queria um maço de fogos
chuvas de prata e estrelas
para comemorar a noite
porém só havia velas
com que imitar o dia.
Lá fui eu ao armarinho
(tangida por que ventos
por que pérfidas sereias?)
comprar um dedal de amor.
Voltei com este coração
são sebastião de alfinetes.
O peito? retrós entaniçado
por mil linhas de aflição
euzinha toda por dentro
que nem pano em bastidor:
bico de agulha finoferoz
sobe-desce-sobe bordando
minha vida em ponto de cruz. p.42


NAVIO-ESQUIFE

Correm as águas do rio
corre veloz o navio.
Entre as faces do vento
entre as faces do tempo
corremos nós.

Ao abraço de que foz
viajam as águas
viajamos nós?

Árvores nas margens
céleres passam
sob remansos de céu
onde se apaga o sol.

Eis que longe o porto
acende seu colar de luzes:
grinalda para os mortos
que no navio-esquife
ante-somos todos. p.52


XXXVI

São Simão elegeu a solidão
como cilício, disciplina
e via de autopurificação.
São Simão cedo recolheu-se
a torre-pombal ou edifício-
coluna em pleno deserto.
São Simão mais de quarenta
anos aí morou sozinho em
rotina de jejum e oração
fazendo hora pra entrar no céu
onde todos os santos estão.
Perdoa-me, Simão, a ousadia
da minha heresia, mas é certo
fugir, como fugiste, do irmão?
Será justo escapar à luta
escolhendo a sina de bicho quieto
na cova que ninguém toca?
Diálogo não é também oração?
Ó Simão, jejuar é tão árduo
quanto ver a dura fome do irmão.
Ó Simão, viver entre os homens
não será a maior provação? p.126


RITUAL

Todas as tardes
rego as plantas de casa.
Peço perdão às árvores
pelo papel em que planto
palavras de pedra
regadas de pranto. p.239


RÊS DESGARRADA

Pois em Chicago, amigos,
sou rês desgarrada.
Agarra-me sim, danada
a nostalgia da ex-boiada.

Carga pesada esta saudade
dos pastos brasis
onde os buritis sambam
à carícia da brisa.

Perde-se meu ser rural
tão tropical nesta urbe
labirinto de pedra e vidro
sob o cíclico do frio.

Oceanos de chão e tempo
cercam-me gélidos, cegos.
Neles, sem sossego navego
e nau sem rumo quase afundo.

– Vaca na balsa, rês desgarrada – p.330


CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979/1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

Um comentário:

Unknown disse...

seus poemas são os melhores.