sábado, 5 de setembro de 2020

DESLENDÁRIO

 João de Jesus Paes Loureiro

 

No verde, verde medo, entre ciladas

e nos cipós ardentes das queimadas

enforca-se o uirapuru

na clave de seu canto.

 

Longe,

           no arco da preamar

a proa

           seta

                   investe contra o eterno...

 

Na canoa bubuiando acorda o anjo.

 

Erguem-se asas no ar...

                                      O além aninha-se nas velas.

 

Pálpebras de penas

                                gaivotas

                                              olhar do canoeiro.

 

Pelas margens sentenciadas

                                   o ronco de tratores esmagando

 

gerações atônitas, safras, sóis do meio-dia...

 

Amazônia! Amazônia!

A destroçada árvore de lendas.

A desmatada agenda de cereais.

O desmentido estandarte de minérios.

Outrora era Tupã lento ensinando

Jesus Menino a nadar entre as iaras.

agora o capital acumulando

a latifúndia razão

a primitiva

a concentrada estação da mais-valia.

E a desvalia do homem, atroz, desadorado

em relatórios, cifrões, mercadorias,

– adeuses presos em cárceres de calos –

Expulso de suas terras,

no ingênuo rio gêmeo de estrelas com essas noites.

 

Rio que já não corre puro em meus poemas

coroado de espumas, mururés.

Rio, pão líquido, trigal de escamas,

que alimentou de lendas o poemário

– piracema de ânsias, sílabas, espumas.

Rio agora de águas humilhadas,

com incessante rumor de morte às cabeceiras.

Rio ex-metafísico a correr entre os humanos

barrancos comprimidos da descrença.

Rio que naveguei no útero de tábuas,

da vigilenga, em busca do mistério.

Rio, paisagem ágil, andor, horizontal bandeira,

de meu reino de infância destronada.

 

Como é difícil falar do eu-profundo

quando canoeiros se perdem das águas

que se querem de todos, preamar;

como é difícil falar da forma pura,

quando o futuro mineral da terra

com sementes de chumbo se semeia,

entre horizontes de moedas delinquentes;

como é difícil falar do belo-belo

se há camponeses sangrando, mortes cruzes,

cemitérios, hortos na estatística,

cova e propriedade...

 

É hora em que o relógio das marés se desgoverna

e punhaladas buscam látex, minério

no coração de colonos.

A terra já não sabe quem nela trabalha,

pois, muito menos que flores, verdes, pão e safra,

é documento, é salário,

é subordinação do trabalho ao capital.

 

E morre o homem

no olhar agônico mundiante da boiúna,

enquanto, nos ouvidos do silêncio,

a solidão é uma notícia muda...

 

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas (vol. 1). Rio de Janeiro: Escrituras, 2000. p. 101-103

Foto: jornal A Crítica

Um comentário:

Aquila Cavalcante Cabral disse...

Excelente! Infelizmente, um texto ainda terrivelmente atual.