segunda-feira, 21 de setembro de 2020

ALBERTO DA CUNHA MELO (1942-2007): poemas


FORMAS DE ABENÇOAR

 

Fique aqui mesmo, morra antes

de mim, mas não vá para o mundo.

Repito: não vá para o mundo,

que o mundo tem gente, meu filho.

 

Por mais calado que você

seja, será crucificado.

Por mais sozinho que você

Seja, será crucificado.

 

Há uma mentira por aí

chamada infância, você tem?

Mesmo sem a ter, vai pagar

essa viagem que não fez.

 

Grande, muito grande é a força

desta noite que vem de longe.

Somos treva, a vida é apenas

puro lampejo do carvão.

 

No início, todos o perdoam,

esperando que você cresça,

esperando que você cresça

para nunca mais perdoá-lo. p. 133

 

 

INFLUÊNCIA DAS VOZES

 

Nunca fiz um poema limpo

como o avental de minha mãe:

sempre os outros e o pó dos Outros

puseram em mim sua presença.

 

Como na infância, há sempre um vulto

emergido de algum silêncio.

Para ajudar-me a escrever,

Vem segurar na minha mão.

 

Mas rasgo tudo, rasgo o que amo

e vejo tudo realizado

nas outras mãos, enquanto fico

desconfiado de minha força.

 

Às vezes mostro a meus amigos

estas flores, peço-lhes água.

Eles sorriem, são meus amigos,

mas também estão no deserto.

 

Já não preciso ser autêntico:

sobre uma só realidade

eis-me na terra como os outros,

sou os outros, e morro só. p. 144

 

 

Plantamos para longe

o açúcar mais branco,

a banana mais cheia,

o mais puro café.

Aprendemos a plantar

cedo, para muito longe.

Os planos estão satisfeitos

mas os homens choram

em suas choupanas de verdade.

Fizemos justiça ao metal

Que mereceu um visto para longe;

à planta mais eugênica,

demos-lhe uma embalagem de luxo

e um passaporte para a França.

Só os homens ficaram

com os filhos enfermos

e a terra longa

e alheia

para, sem fuga e sem amor,

continuar. p. 154

 

 

PREVIDÊNCIA SOCIAL

(SEM COMENTÁRIOS)

 

Os humilhados têm nomes simples,

fáceis de decorar

e de esquecer.

Habitam o vestíbulo

de tudo.

Antes mesmo que os zeladores

Espanem as mesas,

limpem os cinzeiros

e abram as janelas,

eles já chegaram.

Antes mesmo que o sol

entre na sala principal

uma fila silenciosa

escurece o vestíbulo. p. 169

 

 

ALGUMA PRESSA NA CALÇADA

 

Às vezes, nos sentimos

acima desta agonia concreta

e cantamos poderosamente

sobre o majestoso granito.

Algo pode ser feito

desta massa comum

que tudo assimila e reduz

à sua própria matéria?

Alguma mulher infinita

(só duas ou três não são infinitas)

abrirá sobre os balcões

sua carne melodiosa

de tanto ser beijada?

As pessoas se descobrem

muito tarde:

só se veem

e se falam

(mesmo)

quando já passaram. p. 200

 

 

LIÇÕES DE FORÇA

 

Como não somos camponeses,

aos invés de lenha

trazemos, às costas,

um feixe

de horizontes queimados;

ao chegarmos sujos,

chutamos, no escuro,

carros e bonecos de plásticos:

o comandante ferido

chuta cadáveres no convés

e olha o céu,

pedindo o resto da tempestade

(a tempestade desse barco

é o seu próprio comandante). p. 239

 

 

INFORMAÇÕES PARA CADASTRO

 

De maior fracasso

meu fracasso me salva,

quando me enxota

para longe do palco

e da obrigação

de ser belo e limpo

feito faca lavada;

quando me deixa

apagado em meu canto,

apagado e vivo

feito uma mágoa perdoada. p. 241-242

 

 

O HOMEM QUE ASSOVIAVA BRAHMS

 

Aquele cara

assoviava todo dia,

às seis horas da manhã,

um trecho

de sinfonia de Brahms:

isso era coisa

realmente pedante,

se levarmos em conta

vizinhos cheios

de promissórias vencidas,

meninos gritando

nos ouvidos encerados

e outros honrosos

ferimentos da terra;

ele? Nem ligava,

e danava-se a assoviar

a velhíssima

sinfonia de Brahms. p. 253-254

 

 

 

PAISAGEM ESTRATIFICADA

 

O baralhar barulhento

da misturadora de concreto

é dura música

para os que comem

numa hora espremida

debaixo das traves,

enquanto no bar defronte

certos homens falam

de antigas trepadas

à beira-mar

e bebem com fastio

vários salários mínimos

sem notar. p.  272

 

 

CINCO DIAS DE UM ZUMBI

 

Atravessa a semana

feito um zumbi diurno

arrastando-se sem sangue

até o sábado salvador;

quando abre seu rum

e escreve umas cartas

sem, “prezado senhor”;

compra tomates

e livros novos

que o possam ajudar

na aparência erudita,

própria de um zumbi

de nível universitário

que, às vezes, até

em si mesmo acredita. p. 273

 

 

RESISTÊNCIAS

 

Teu corpo no banho:

tuas mãos passeando,

cheias de espumas

sobre a pele dourada;

teu corpo altivo

feito uma chuva

solene, a se distender,

tão lavado e vivo,

tão forte que retarda

seu próprio entardecer. p. 314

 

 

LEITURAS

 

Porque um

era a surpresa do outro,

todas as manhãs

amanhecíamos juntos

porque amanhecíamos

com outro;

livres líamos

todas as manhãs

o livro novo

que éramos

um para o outro;

porque amávamo-nos,

como desconhecidos,

amávamo-nos. p. 317

 

 

MELO, Alberto da Cunha. Poesia completa. Rio de Janeiro: Record, 2017.

Visite o site do poeta: http://www.albertocmelo.com.br