Não foi preciso mais que uns poucos dias de cheia do Madeira para jogar por terra uma década e meia de propaganda sobre o desenvolvimento do Acre.
Ficou claro que não conseguimos nos alimentar sem contar com o que vem de fora, mesmo com tanta terra e gente disposta a trabalhar. Assim, até parece que somos um estado de indolentes.
Isto porque a atual política de desenvolvimento impôs uma especialização por essas bandas. Especializamo-nos em vender madeira e carne para os outros! Como é amplamente sabido, estas são atividades econômicas de grande impacto ambiental e contribuem para a concentração de terra e renda.
E que benefícios trouxeram para a população local? Que julgue o leitor, pois continuamos na dependência dos repasses do governo federal...
Para entender melhor a relação da cheia do Madeira com o Acre, é preciso fazer ainda outras considerações. Lembremos, então, do papel ativo que Jorge Viana (PT-AC) desempenhou na defesa do projeto de construção das barragens (Santo Antônio e Jirau) em nosso estado vizinho.
Quando ali os movimentos sociais se levantaram contra o projeto, o senador pôs-se ao lado de Ivo Cassol (PP-RO), argumentando que Acre e Rondônia não abririam mão de estar dentro do projeto, que ele (o projeto) traria oportunidades incríveis para nosso estado (ver o documentário O chamado do Madeira e a entrevista do professor Elder).
Bem. Não sei que bons frutos chegamos a colher do projeto, mas os frutos ruins estão aí e a tendência é que se multipliquem e se tornem cada vez mais amargos.
Agora, que parte da estrada que liga o Acre a Rondônia está alagada, Jorge Viana quer cobrar satisfação dos engenheiros responsáveis pela construção da BR. Não nos deixemos enganar por essa tentativa de distorcer os fatos e tirar o foco do que realmente ocorreu. Não foi a estrada que baixou. Foram as águas que subiram e subiram em razão das barragens que aguerridamente ele defendeu.
Francamente, a nosso ver, o senador deveria pedir desculpas ao povo acreano e aos nossos irmãos de Rondônia que estão sofrendo com a situação que ele ajudou a criar[2].
A atuação de Jorge de Viana no Senado tem contribuído enormemente para fazer da Amazônia uma espécie de colônia das regiões desenvolvidas do país[3]. No caso das barragens, estas regiões e as empresas ficam com a energia e os lucros. Nós ficamos com os prejuízos sociais e ambientais.
Cumpre ressaltar que, se os problemas estão acontecendo, não foi por falta de aviso ou conhecimento. Movimentos sociais, técnicos do IBAMA e vários cientistas alertaram sobre os perigos de tal obra. Já no século XIX, Engels (O papel do trabalho na transformação do macaco em homem) dizia que “Na natureza, nada acontece isoladamente: os fenômenos exercem entre si influências recíprocas, num movimento universal” (ENGELS: 1990, 31). Dizia ainda que “não nos deixemos entusiasmar apenas pelo fato de sermos vitoriosos em relação à natureza, pois a cada vitória assim conquistada, a sábia natureza prepara sua vingança” (ENGELS: 1990, 33).
Desse modo, se o problema está posto, foi em razão dos grandes interesses em jogo. De acordo com Boulos (Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto), 54%
dos deputados federais e senadoras eleitos em 2010 receberam ‘doações’ de grandes construtoras. As mais ‘generosas’ foram a Camargo Corrêa, que triplicou suas ‘doações’ em relação a 2006, chegando a R$ 80 milhões; e a Andrade Gutierrez, com R$ 58 milhões. As grandes empresas sozinhas representam 25% de todos os gastos com campanha eleitoral no Brasil (BOULOS: 2012, 34).
E, num pragmatismo que suplanta qualquer exclusivismo ideológico partidário, elas foram as principais financiadoras tanto da campanha de Dilma Roussef (PT) quanto da de José Serra (PSDB) (BOULOS: 2012, 34).
Uma vez chegando ao poder estatal, a força política financiada pelas construtoras deve então criar as “oportunidades” de obras que, num certo sentido, servem como “acerto de uma dívida”. Compreende-se, dessa maneira, porque pesquisas que apontam que, potenciando as usinas existentes, não haveria mais necessidades de construção de novas.
No momento, o governo local se desdobra para acalmar a população e evitar o caos. A busca de um Plano B ou C apenas mostrou que nós não temos um Plano A. E, independentemente do que o governo faça, a subida das águas do Madeira pôs a descoberto aquilo que faz tempo vimos denunciado: o fracasso de nosso modelo de desenvolvimento, um modelo que tanto tem de farsa quanto de tragédia.
Amparados pela imprensa, as forças governistas têm chamado a atenção para a construção da bendita ponte que há de ligar os dois estados. Entretanto, segundo informações, a estrada já conta com 14 km inundados. Diante disso, poderá a ponte resolver o problema?
Na iminência de faltar alimento, senti uma vontade enorme de criar galinha, de resgatar a cultura de nossos avós e plantar uma horta num cantinho aqui do quintal. Farei isso e vou preparar também um fogareiro.
Ah... Ia esquecendo. O carnaval se aproxima e disseram que pode faltar cerveja. Vou me apressar e fazer meu rancho... Nesses dias de tantas águas, não quero passar a seco.
Sigo na esperança de que, como eu, a população acreana esteja cansada e queira mudar de enredo em nossa política. Por ora, vou cantarolando... “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”...
[1] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2] Ao que tudo indica, deve pedir desculpas também aos bolivianos. Ver Bolivianos culpam Brasil por enchentes.
[3] A proposta do Novo Código Florestal em que ele tomou parte ativamente é disso um exemplo. Embora não tenham conseguido tudo o que pretendiam com tal código, os ruralistas podem comemorar. Parte significativa de suas reivindicações encontrou ali acolhida.
> Também publicado no blog do Altino Machado.
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