Há sensações que são
sono, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam
pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não
tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do
sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de
não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento
indolente do pé à passagem.
Olha-se,
mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma espécie de
tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As
casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se
vê, mas vê-se bem o que é, sim.
As
pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam
grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças
parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao
fundo, o rio está cansado.
Não
é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. E uma vontade de dormir com
outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada,
a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem
levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos
sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há
um aperto de dentro da cabeça.
Parece
uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um
desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença
evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da
rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemente, a dormir só
com a impossibilidade de dar ao corpo outra direção, a porta onde se deve
entrar. Passa-se tudo.
Que
é o pandeiro, ó uso parado?
PESSOA, Fernando.
Livro do desassossego. Barueri: Cirando Cultural, 2018. p.80-81
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