Cassiano Ricardo (1895-1974)
1
Café expresso — está escrito na porta.
Entro com muita pressa. Meio tonto,
por haver acordado tão cedo…
E pronto! parece um brinquedo…
cai o café na xícara pra gente
maquinalmente.
E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente
de São Paulo
nesta pequena noite líquida e cheirosa
que é a minha xícara de café.
A minha xícara de café
é o resumo de todas as coisas que vi na
fazenda e me vêm à memória apagada…
Na minha memória anda um carro de bois a
bater as porteiras da estrada…
Na minha memória pousou um pinhé a gritar:
crapinhé!
E passam uns homens
que levam às costas
jacás multicores
com grãos de café.
E piscam lá dentro, no fundo do meu coração,
uns olhos negros de
cabocla a olhar pra mim
com seu vestido de
alecrim e pés no chão.
E uma casinha cor de luar na tarde roxo-rosa…
Um cuitelinho verde sussurrando enfiando o
bico na catléia cor de sol que floriu no portão…
E o fazendeiro, calculando a safra do
espigão…
Mas acima de tudo
aqueles olhos de veludo da cabocla maliciosa
a olhar pra mim
como dois grandes
pingos de café
que me caíram dentro da alma
e me deixaram
pensativo assim…
2
Mas eu não tenho tempo pra pensar nessas
coisas!
Estou com pressa. Muita pressa.
A manhã já desceu do trigésimo andar
daquele arranha-céu colorido onde mora.
Ouço a vida gritando lá fora!
Duzentos réis, e saio. A rua é um vozerio.
Sobe e desce de gente que vai pras fábricas.
Pralapracá de automóveis. Buzinas. Letreiros.
Compro um jornal. O Estado! O Diário Nacional!
Levanto a gola do sobretudo, por causa do frio.
E lá me vou pro trabalho, pensando...
Ó meu São Paulo!
Ó minha uiara de cabelo vermelho!
Ó cidade dos homens que acordam mais cedo no
mundo!
RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São
Paulo: Global, 2003. p.49-51
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