Cassiano Ricardo (1895-1974)
Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.
Nesse barco navega o meu rosto.
O meu rosto de tripulante
olha o meu rosto de náufrago
no espelho.
A viagem é longa. A paisagem
também oscila
entre o meu mundo em viagem
e a água tranquila.
Tudo é oscilação na tarde.
A água como que balança
em cada curva
entre o futuro e a demora.
Depois caminha oscilando
entre as duas margens opostas
como uma pergunta: até quando?
entre duas respostas.
Mas a oscilação mais grave
é a da viagem sobre o espelho.
Em que cada um de nós navega
com dois rostos.
Tripulante sobre o barco
e náufrago no meu reflexo
sob a tarde, em forma de arco,
vou eu, cada vez mais perplexo.
O meu rosto que se debruça,
vê o outro, caído ao fundo.
E sente, através do outro,
o abismo que aos meus pés carrego.
Antípoda de mim mesmo
entre mim e a minha mágoa
levo os dois rostos a esmo
um em meu corpo, outro n’água
O que, por força, conduzo
preso ao corpo
é o que não naufragou ainda.
O outro é o que perdi para sempre.
Viagem dupla, quase sem alvo,
em que o meu barco desliza,
entre o que há em mim de salvo
e o que de salvação precisa.
Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.
RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção
Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.66-68
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