Maria de Nazaré Cavalcante de Sousa[1]
O Tempos Infinitos, romance do amazonense Paulo Jacob (1921-2003), narra a história de Maria Mariana, mulher branca, solteira e proprietária de um seringal no interior do Amazonas. A ficção aborda convivências entre homens e mulheres em seu cotidiano nos tempos áureos da produção da borracha na Amazônia brasileira. Narrativa que se diferencia de grande parte da ficção produzida nesse período, quando escolhe inserir o protagonismo feminino num espaço de domínio masculino, instigando, com isso, a que se reflita questões como raça, cultura e gênero numa região tratada pela “razão moderno colonial” como periférica.
O romance demostra que não se trata apenas de dar voz às histórias locais para que rompa-se o projeto universalizante colonial de cultura e de poder. Ele desafia discutir sobre a própria constituição de gênero que está arraigada na estrutura de poder e no imaginário cultural. Neste caso, em relação aos seringais, espaços em que mulheres sempre foram e continuam sendo (re)tratadas como coadjuvantes e submissas e, na maioria das vezes, vítimas das atrocidades – sutis ou não - de homens que habitam estas terras.
Diante de um protagonismo inusitado às temáticas ficcionais sobre a Amazônia, o presente texto pontua questões de gênero presente na condição de uma mulher que exerce o lugar de empregadora de um grupo de seringueiros homens. Tendo como base teórica os estudos da socióloga argentina Maria Lugones[2], esta relação de poder ganha espaço aqui para refletir sobre a colonialidade de gênero, segundo a qual há um vacilo histórico sobre as lutas das mulheres, na medida que algumas correntes filosóficas se negam a enfrentar a condição de exploração e agressão que a mulher latino-americana tem sido vítima ainda no século XXI.
Na ficção, a protagonista de Tempos Infinitos é uma seringalista. É proprietária do seringal Cabuquena, localizada no interior da Amazônia, empresa que administra com notada competência e severidade. Em contraponto às pseudo qualidades profissionais desta, a trama será guiada por um caminho que apela em relatar prejulgando as vivências sexuais de Maria Mariana que, contrariando ao serviu e casto perfil de mulher, é enredada como dona de um apetite sexual invejável. Em suas investidas, usa seus empregados como amantes de forma natural, atitude irreparável a uma mulher, segundo aos condicionamentos cristãos e ao imaginário cultural latino americano. Em situação de chefia, a personagem é descrita como uma patroa que submete seus empregados ao trabalho extenuante. Negocia de igual com os demais seringalistas da região e é temida pela religião, representada por um padre que se sente seduzido quando se hospeda para as desobrigas no seringal desta. Como uma espécie de epifania patriarcal, ou punição na trama, há uma reviravolta no decorrer dos acontecimentos quando Maria Mariana se apaixona por um indígena, prisioneiro do seringal. As atitudes da protagonista terminam por encarcerá-la numa condição de submissão afetiva, como forma de manutenção do ato punitivo por transgressão à estrutura patriarcal.
A trama de Paulo Jacob insinua, em grande parte, a destituição da condição submissa da mulher de ser e de ter no estado de domínio patriarcal e propõe uma reinserção desta na condição de não submissão ou vítima da opressão. No entanto, a tese não é sustentada, a narrativa torna por construir um espaço de conflito quando revela o enraizamento das estruturas patriarcais de poder que foi imposto no processo de colonização. Maria Mariana é uma protagonista complexa que, para inserir-se no universo masculino do lugar, conduz sua prática em realizações sexistas, o que não faz blindá-la do julgamento racista por parte desta comunidade. Esse estado de ambivalência é uma constante no fio condutor da narrativa que perpassa pela negação contínua da legitimidade do poder instituído à Maria Mariana diante da condição feminina. Em sua maioria, os diálogos reforçam a conduta comparada aos demais seringalistas em relação à administração de seu seringal. Essa reprodução de poder hierárquico, assumido pelo colonizado numa relação de superioridade, é refletida pelo pensador Maldonado-Torres quando discute sobre gênero e sexualidade:
O modelo de gênero e sexo do colonizador é tomados pelos sujeitos colonizados como direcionador de suas próprias performances em seus esforços de parecerem normais em um mundo que consideram essencialmente anormais, deficientes e maus. Isso leva a formas agressivas de masculinidade beligerante entre aqueles considerados como perpétuos derrotados e inimigos sub-humanos. Também leva homens e mulheres colonizados a procurarem vários modos de escapar dessa condição, buscando estar com colonizadores masculinos ou assumir o lugar deles.[3]
Assim, na trama, a protagonista é definida como uma pessoa destemida e de ações violentas:
Dona Maria Mariana não prestava mesmo, matava seringueiro, ficava com saldo, pouca vergonha, amigada com os empregados da casa(JACOB, p.13) Dona Maria Mariana era acatada pelos outros coronéis, braba, rancorosa. Não é mulher de brincadeira, quando promete faz. Não só ameaça, cumpre a palavra, ditou a morte de alguém, pode acender a vela...Ninguém impõe ao mando dela...mulher absoluta. Escorraça seringueiro. Mata índio e pratica as maiores malvadezas. Ninguém se atreve a falar nada... Mulher de grandes posses.[4]
Descrições que reafirmam a incorporação ontológica da cultura do colonizador masculino em ambos os sexos. As características heterossexuais sobressaem numa perspectiva sexista, mas - ao mesmo tempo no lugar que ocupa e vive - é rejeitada por ser mulher. Nesta ambivalência, a personagem sofre agressões por sua decisão em exercer sua condição de mulher independente e de exercer com liberdade sua feminilidade. Assim, torna-se alvo do machismo estrutural. O narrador se encarrega de reproduzir a leitura que os moradores do lugar fazem da mulher, evidenciando a situação de vulnerabilidade moral e social vivido por esse gênero: Gosta mesmo é de homem, enxergou um macho, se põe oferecida vive de safadezas. Não merece trato respeitoso, puta ratuína.[5]
Nesta ambivalência maniqueísta, em confronto com as diferenças subontológicas e ignorando a visão ocidentalizada da condição de gênero, segue a narrativa demonstrando as fragilidades conceptivas com que vai sendo alinhavada a trajetória do papel feminino no interior da ficção. A protagonista é um produto do patriarcado, ela não confronta as barras do racismo epistêmico, do massacre de gênero e de todo o entorno do patriarcalismo forjado pelo sistema colonial capitalista. Ao contrário, reforça, em seu perfil de mulher patroa, uma mantenedora do estado de injustiça, de opressão e agressão aos submissos sob seu comando, contribuindo, assim, para a manutenção de um permanente estado de colonialidade de poder como concebe Anibal Quijano[6]
A personagem feminina torna-se legitimada em suas relações como um modelo do homem branco, heterossexual e opressor, o que segue por transigir uma ordem de escravidão em sua realidade contemporâneo. Por outro lado, se levarmos em consideração a ousada proposição de um protagonismo feminino, no contexto de extremo domínio patriarcal, o romance pode ser compreendido como um conteúdo de resistência ao desafiar a norma estabelecida do espaço em confronto com o sistema patriarcal. Embora não haja epifania desse enfrentamento, a contradição se mantem, já que Maria Mariana é massacrada mesmo com o predicativo de ser patroa, uma mulher que exerce sua feminilidade e, é independente economicamente.
A sua condição de gênero a define em uma relação de subalternidade dentro do sistema patriarcal. O enredo apresenta uma condição maior de ontologia impressa pelo estado de colonialidade, reafirmado quando esta subverte os dogmas cristãos, de modo que é esquecida a condição de poder econômico que a esta detém no lugar e passa a ser julgada quando resolve viver sua condição de mulher livre que acredita ser, no seu espaço social. Mesmo sendo privilegiada pela cor, dentro dos padrões hierárquicos em que a mulher branca, burguesa se diferencia da condição social das demais mulheres, por exemplo: as negras e indígenas.
Anibal Quijano[7] aponta a diferença racial como o primeiro motor da desigualdade nas formas de trabalho e nas relações entre os sexos na constituição do sistema patriarcal, capitalista, moderno colonial, englobando todos os aspectos que essas categorias implicam. Na condução de seu discurso, a partir do conceito de raça que irá ordenar a formação de hierarquias, entre elas está a reflexão em relação ao gênero. Reflexão que Lugones[8] destaca como importante nesta conceptualização do feminismo decolonial, um pensamento que traz elementos que auxiliam repensar criticamente a participação e condição da mulher na América Latina.
Ao resistir a tais modelos próprios do padrão colonial de poder e de ser patriarcais, a mulher, Maria Mariana, desestabiliza o universo em que se encontra inserida. O primeiro ponto é em relação ao papel determinado à mulher branca heterossexual na hierarquia tradicional patriarcal, a formadora de uma família nuclear. Essa família que, para a pesquisadora nigeriana Yeronke Oyewumi[9], é uma representação principalmente da subordinação da mulher ao marido, seu “proprietário”, o que a faz, consequentemente, geradora de filhos. A filósofa irá determinar a sexualidade como um ponto divergente nos papeis sociais de gênero. No Ocidente a mulher é moldada e educada para ser esposa obediente e mãe exemplar. Assim, a maternidade - que em muitas outras sociedades constitui a identidade dominante das mulheres - nesta cultura a mulher é condicionada ao papel de procriação e a lactação que, geralmente, é determinado como parte da divisão sexual do trabalho. A formação de casais pelo casamento está assim constituída como a base da divisão social do trabalho. Na maioria das culturas, a maternidade é definida como uma relação de descendência, não como um compromisso de reprodução e continuidade de dominação hierárquica de poder patriarcal. Em seus estudos, a pesquisadora mostra como a imposição colonial em relação ao gênero abarca a subordinação das fêmeas em todos os aspectos da vida.
Lugones[10] irá confirmar que o sistema de gênero surge já no período dos avanços do projeto colonial europeu e se consolida na modernidade tardia. A socióloga argentina vai dizer que o sistema de gênero tem seu lado visível quando organiza apenas as relações entre homens e mulheres brancas e burguesas, momento em que imprime a forma entre homens e mulheres, definindo papel no controle do acesso sexual, no trabalho e na autoridade. Assim, as mulheres foram categorizadas dentro do sistema patriarcal eurocêntricos e cumprem papéis definidos dentro das hierarquias política e social:
La pureza y la pasividad sexual son características cruciales de las hembras burguesas blancas quienes son reproductoras de la clase y la posición racial y colonial de los hombres blancos burgueses. Pero tan importante como su función reproductora de la propiedad y la raza es que las mujeres burguesas blancas son sean excluidas de la esfera de la autoridad colectiva, de la producción del conocimiento, y de casi toda posibilidad de control sobre los medios de producción. La supuesta y socialmente construida debilidad de sus cuerpos y de sus mentes cumple un papel importante en la reducción y reclusión de las mujeres burguesas blancas con respecto a la mayoría de los dominios de la vida; de la existencia humana.[11]
Lugones[12] afirma ainda que para as mulheres a colonização foi um processo dual de inferioridade racial e subordinação de gênero imposto pelo estado colonial patriarcal. Diante destas condições, os anos 70, do século XX, tornou-se palco de luta contra as regras, estereótipos, as características de imposição de restrições do direito ao desejo. Assim, descreve o que chama de lado oculto do sistema de gênero que relaciona às mulheres negras, indígenas e as pessoas do terceiro gênero que foram totalmente excluídas de qualquer processo de decisão ou mesmo de conspiração como seres humanos. Foram reduzidos à animalidade, ao sexo forçado com os colonizadores brancos e a exploração do trabalho profunda, que muitas vezes as levavam à morte.
A pesquisadora, nesse sentido, questiona sobre a forma como se tem conduzido a busca pelo espaço de luta feminino quando acontece de forma generalizada, sem observar as particularidades sobre as etnias ou espaço de fala de cada mulher. No entanto, defende o movimento feminista que possibilitou um palco para discutir questões específicas de mulheres em sua condição de subserviência ao mundo patriarcal. Já Oyewúmi[13], do seu lugar de fala, entende que o gênero foi definido pelo Ocidente como uma ferramenta de dominação designada em duas categorias sociais. Ao associar anatomia ao gênero determina-se hierarquias de dominação, tais exclusões não era uma condição homogênea nas sociedades antes da introdução das colônias ocidentais.
Lugones[14] vê que a questão central que perpassa o discurso do gênero é afirmar a categoria de mulher colonizada como uma visão de categoria vazia. A mulher no processo de colonização e na colonialidade estabelecida não entra no conceito de humano, pois a todo momento é colocada como um instrumento de uso pelo colonizador, pelo patriarcado e pela própria constituição da religiosidade cristã que se implantou em toda a América Latina. Assim, irá afirmar que a hierarquia dicotômica central da modernidade colonial é a questão entre o humano e o não ser humano.
Nesse sentido, a discussão pode ser tomada no aspecto de como foi constituída a mulher na América Latina vivendo este estado de colonialidade como não humana e de objetificação. Duas situações importantes para analisar a mulher neste contexto que auxiliará na classificação que Lugones[15] fará sobre a colonialidade do gênero quando se percebe o sistema de opressão de gênero racializado no sistema capitalista.
O lugar de fala de Maria Mariana é uma periferia da já periférica América Latina. Mesmo sendo heterossexual, branca e pertencente a classe dominante do lugar, há nela duas marcas que a imprime como subserviência dentro do sistema patriarcal moderno colonial. É mulher e vive na periferia do mundo moderno colonial. Neste sentido é importante entender a profundidade e a força da violência na produção tanto do lado obscuro e oculto como o lado visível do padrão de gênero moderno/colonial. Lugones afirma que a construção de um espectro feminino passa a ser duramente perverso, violento, degradante quando convertem mulheres brancas em reprodutoras da raça e da classe burguesa, enquanto as demais mulheres de outras raças, indígenas e negras são compreendidas como animais. Será exatamente esta opressão do gênero racializado capitalista do mundo moderno colonial patriarcal que a pensadora irá definir como colonialidade de gênero.
O trajeto de vida da personagem Maria Mariana em interação com outros a coloca na condição de mulher independente. Ao posicionar-se livre em suas escolhas de vida afetiva, a protagonista é punida de forma perversa como manda os preceitos da religião mantenedora (cristã) do colonialismo eurocêntrico, cujos desígnios são de subserviência ao obscurantismo e à castidade reservadas à fêmea burguesa branca. Há no corpo de Maria Mariana um desejo de negação do modelo de mulher definida pelo padrão colonial patriarcal de poder, uma possibilidade de vencer este estado e pensar a questão como uma possibilidade da existência e re-existência à condição de opressão.
Nesse sentido Tempos infinitos, cujo o título remete às infindas narrações do indígena (o piá) que faz para sua patroa em momento de intimidade, é um romance que denuncia de forma implícita, o gênero como elemento estrutural da colonialidade, a expressão moderna colonial do poder patriarcal. Confirmando o pensamento de Maldonado-Torres[16] quando afirma que a expressão político-criativa em si não define uma postura decolonial em relação a atuação do sujeito em seu lugar de vivência. Além da necessária consciência do espaço geopolítico que ocupa, exige-se também, desse agente de mudança, que através do pensamento e criatividade se proponha buscar descontruir saberes eurocentristas estabelecidos, importante, assim, evitar a tentação ou cuidar de que, muitas vezes, em atitude de alienação, fazer atividades do pensamento e da criatividade zonas de refúgio da colonialidade.
Bibliografia
LUGONES, Maria. Colonialidade e Gênero. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 73-101, julio-diciembre 2008 Acessado em: 19 de outubro de 2020. http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a06.pdf
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais/ organização e apresentação Heloísa Buarque de Holanda: autores Adriana Varejão...[et.al.]- 1ª ed. –Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação- episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira1 ed. Rio de Jnaeiro: Cobogó, 2019
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico -org. Joaze Bernadino-Costa, Nelson-Maldonado-Torres, Ramon Grosfoguel- 2ª ed.- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
OYÈWUMÍ, Ouèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. In: Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais/ organização e apresentação Heloísa Buarque de Holanda: autores Adriana Varejão...[et.al.]- 1ª ed. –Rio de Janeiro: Bazar do tempo,2020.
QUIJANO, Anibal. Textos de fundación. compilado por Zulma Palermoy; Pablo Quitero. 1ª ed.- Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Signo,2014.
RIBEIRO,Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?- 1ª.ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[1] Maria de Nazaré Cavalcante de Sousa é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC.
[2] Lugones, 2020.
[3] Maldonado Torres, p.40
[4] Jacob,1999
[5] Jacob, 1999, p.40
[6] Quijano, 2014.
[7] Quijano, 2014
[8] Lugones, 2020.
[9] Oyewumi, 2019.
[10] Lugones,2020
[11] Lugones, 2020
[12] Lugones, 2020
[13] Oyewúmi, 2019
[14] Lugone, 2020.
[15] Lugones, 2020.
[16]Maldonado-Torres, 2019
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