quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O RUBAIYAT de Omar Khayyam

Omar Khayyam, cujo nome completo era Ghiyáthuddin Abulfath Omar bin Ibráhim Al-Khayyámi, o que vem depois de Omar significando “filho de Ibrahim, o fabricante de tendas”, nasceu e morreu em Nishapur, província de Khorassan, na Pérsia (c. 1050-c.1123). Dedicado ao estudo da matemática e da astronomia, escreveu tratados, um dos quais, sobre álgebra, tornou-se um livro clássico e foi traduzido no Ocidente por Woepke (1851). Elaborou a reforma do calendário muçulmano. Em vida era conhecido sobretudo como matemático e astrônomo. Mas foi poeta também, exprimindo-se em quadras epigramáticas (rubáyyát é o plural de rubay, quadra em persa). Compôs algumas centenas delas. A filosofia que impregna esses breves poemas caracteriza-se pelo seu agnosticismo: não se pode negar nem afirmar coisa alguma, devemos contentar-nos com saber que tudo é mistério – a criação do mundo e a nossa, o destino do mundo e o nosso, jamais saberemos nada, jamais elucidaremos um só dos mistérios do universo; pelo seu imediatismo: goza o momento que passa, não te preocupes com o passado nem com o futuro – o passado é um cadáver que se deve enterrar, o futuro é indevassável, os homens falam de um Paraíso depois da morte, mas é bem possível que ele não exista e portanto cria um Paraíso para o teu gozo na terra, e que é um Paraíso? – A sombra de uma árvore, vinho, os sons de alaúde, rosas, canções, uma bonita mulher de seios cor de neve... e melhor é evitar amá-la, e que ela seja incapaz de amar-te: Deus deu-nos o amor como a certas plantas deu o veneno; o seu hedonismo: o prazer é o fim da vida, nosso tesouro é o vinho e a embriaguez, não penses na morte; depois da morte só pode haver duas coisas – o nada ou a misericórdia, colhe todos os frutos da vida, deixa-te penetrar de todos os perfumes, de todas as cores, de todas as músicas, acaricia todas as mulheres... Seu hedonismo, porém, não era o de um egoísta, não excluía a compaixão pelo próximo, e o poeta o aconselhava: ao pobre que te pede uma esmola dá a metade do que possuis; perdoa todos os culpados; não concorras para a tristeza de ninguém.  (Manuel Bandeira, prefácio)

***

O que é melhor? Sentarmo-nos
Numa taverna e o exame
De consciência fazermos,
Ou bem numa mesquita

Prosternarmo-nos de alma
Fechada? Não me inquieta
Saber se um Senhor temos
E o que fará de mim. p.10

___
Procede sempre de maneira
Que de tua sabedoria
Nunca sofra o teu semelhante.
Domina-te. Jamais te entregues

À ira. Se queres chegar
Um dia à paz definitiva,
Sorri aos golpes do Destino,
E nunca batas em ninguém. p.12

___
Uma vez que se ignora o que é que nos reserva
O dia de amanhã, busca ser feliz hoje.
Vai sentar-te ao luar e bebe. Pois talvez
Não vivas mais quando amanhã voltar a lua. p.12

___
Satisfaze-te neste mundo
Com poucos amigos. Não busques
Tornar durável a amizade
Que possas sentir por alguém.

Antes de apertares na tua
A mão que te estendem, pergunta
A ti mesmo se ela algum dia
Não se erguerá para ferir-te. p.15

___
Nenhum poder sobre o destino
Te foi dado, sabes. Portanto
Que adianta a ansiedade em que ficas
Pela incerteza do amanhã?

Então, se és um sábio, procura
Tirar do momento presente
O maior proveito possível.
O futuro o que te trará? p.18

___
Não anda firme em seu caminho
O homem que não colheu o fruto
Da verdade. Se conseguir,
Porém, da árvore da Ciência

Arrebatá-lo, saberá
Que passado e futuro em nada
Diferem daquele enganoso
Primeiro dia da Criação. p.20

___
Além da Terra e do Infinito
Eu procurava o Céu e o Inferno.
Mas uma voz solene disse-me:
– “Procura-os dentro de ti mesmo.” p.20


Nada mais me interessa. Ergue-te,
Traz-me vinho! Amiga, esta noite
Tua boca amorável é a
Mais bela rosa do Universo.

Vinho! Vinho vermelho como
Tuas faces! E que os meus remorsos
Sejam leves, leves, tão leves
Como os cachos dos teus cabelos! p.21

___
Mais rápidos que a água do rio,
Que o vento do deserto, escoam-se
Os dias. Dois não me interessam:
São o de ontem e o de amanhã. p.24

___
Não posso evocar o dia
Do meu nascimento, nem
Dizer quando morrerei.
Que homem saberá fazê-lo?

Vem, minha amada! À embriaguez
Quero pedir que me faça
Esquecer que neste mundo
Jamais saberemos de nada. p.26

___
É inútil, Khayyam, penares
Por teres pecado tanto.
Depois da morte só existe
O nada ou a Misericórdia. p.28

___
Nos conventos, nas sinagogas
E nas mesquitas é costume
Irem refugiar-se os fracos
Que a ideia do Inferno apavora.

O homem que conhece a grandeza
De Deus não acolhe em sua alma
As sementes más do terror
E da imploração lamentosa. p.28

___
Na primavera vou, às vezes,
Sentar-me num campo florido.
E se uma bela rapariga
Vem trazer-me um copo de vinho,

Não penso em minha salvação
No outro mundo. Se me deixasse
Dominar por esse cuidado,
Valeria menos que um cão. p.29

___
O vasto mundo: apenas
Grão de poeira no espaço.
Toda a ciência dos homens:
Só palavras, palavras.

Povos, animais, flores
Dos sete climas: sombras.
Resultado de toda
Tua meditação: nada. p.29

___
Convence-te disto:
Um dia tua alma
Deixará teu corpo
E serás lançado

Para trás do véu
Que há flutuando sempre
Entre este Universo
E o desconhecido.

Enquanto esse dia
Não chega, procura
Ser feliz. Esquece
Todo outro cuidado.

Pois não sabes de onde
Vens, tampouco sabes
Para onde irás
Depois de tua morte. p.31

___
Os doutores e os sábios mais ilustres
Caminharam nas trevas da ignorância.
O que não impediu que em vida fossem
Tido por luminares de seu tempo.

Que fizeram? Pronunciaram
Algumas frases confusas
E depois adormeceram
Para toda a eternidade. p.32

___
Ninguém pode compreender
O que é mistério, ninguém
Pode ver o que se esconde
Debaixo das aparências.

Nossas casas, salvo a última
– A terra, são provisórias.
Amigo, bebe o teu vinho!
Trégua às palavras supérfluas! p.33

___
Sono sobre a terra
Sono sob a terra.
Sobre e sobre a terra
Corpos estendidos.

Nada em toda parte.
Deserto do nada.
Homens vêm chegando.
Outros vão partindo. p.38

___
O vento sul veio fanar a rosa
Cuja beleza os rouxinóis cantavam.
Choraremos por ela ou por nós? Mortos
Nós, outras rosas desabrocharão. p.40

___
Disputam o bem e o mal
A primazia na terra.
O Céu não é responsável
Pelas voltas do destino.

Não agradeças portanto
Ao Céu, nem tampouco o acuses...
O Céu é indiferente
A tuas dores e alegrias. p.47

___
Cairemos na estrada do Amor
e o Destino nos pisará.
Ergue-te, moça, ó linda taça!
Beija-me antes que eu seja pó. p.54

___
Ah, não procures a felicidade!
A vida dura o tempo de um suspiro.
Djemchid e Kai-Kobad hoje são poeira.
A vida é um sonho; o mundo, uma miragem. p.55

___
Não temo a morte. prefiro,
Irmãos, esse inelutável
Ao outro imposto ao nascermos.
O que é a vida afinal?

Um bem que me foi confiado
Sem o meu consentimento
E que eu com indiferença
Restituirei um dia. p.58

___
Ouço dizer que os amantes
Do vinho vão para o Inferno.
Não há verdades na vida,
Mas há evidentes mentiras.

Se porventura os amantes
Do amor e do vinho vão
Para o Inferno, então vazio
Deve estar o Paraíso. p.60

___
Falam da estrada do conhecimento...
Uns dizem tê-la achado, outros procuram-na
Mas um dia uma voz há de exclamar-lhes:
“Não há estrada nenhuma, nem vereda!” p.68

___
Dizem: “Não bebas mais, Khayyam!”
Respondo: “Quando bebo entendo
O que dizem rosas, tulipas,
E até o que não diz minha amada.” p.72

___
Encheu de rosas a aurora
A copa do céu. No ar límpido
Modula seu canto o meigo
Derradeiro rouxinol.

O odor do vinho é mais leve.
Pensar que há agora quem sonhe
Glórias e honras! Que sedosos
São teus cabelos, querida! p.74

___
Que possuo em verdade?
Que restará de mim
Depois de morto? É a vida
Breve como um incêndio. p.78

___
Convicção e dúvida,
Verdade e erro são
Palavras vazias
Como a bolha de ar.

Irisada ou baça,
Essa boca oca
É a imagem mesma
Da existência humana. p.79

___
Não deixes de colher os frutos
Que a vida te oferece. Corre
A todos os festins e escolhe
As copas que forem maiores.

Não creias que Deus leve em conta
Os nossos vícios e virtudes.
Nunca desprezes qualquer coisa
Que te possa fazer feliz. p.83

___
Os sábios não te ensinam nada,
Mas ao acarinhares os longos
Cílios de tua bem-amada
Sentirás a felicidade.

Não te esqueça que tens os dias
Contados. Assim, compra vinho,
Busca um retiro sossegado
E no vinho a paz, o consolo. p.91

___
Senhor, ó Senhor, responde-nos!
Deste-nos olhos, permitiste
Que a beleza das criaturas
Perturbasse os nossos sentidos.

Dotaste-nos da faculdade
De ser felizes, e pretendes
Todavia que renunciemos
A gozar dos bens deste mundo?

Mas isto é-nos mais impossível
Que virar, Senhor, uma taça
Para o chão, sem que se derrame
O líquido que ela contém. p.96

___
Fecha o teu Corão. Pensa livremente,
E encara livremente o Céu e a Terra.
Ao pobre que passar, pedir-te esmola,
Dá-lhe a metade do que possuíres.

Perdoa sempre a todos os culpados.
Não concorras jamais para a tristeza
De nenhuma criatura. Se tiveres
Vontade de sorrir, esconde-te. p.105

___
Mil armadilhas colocaste,
Senhor, na estrada que trilhamos,
E depois disseste: “Ai daqueles
Que não souberam evitá-las!”

Tudo vês e sabes. Sem tua
Permissão nada ocorre. Somos
Responsáveis por nossos erros?
Podes censurar-me a revolta? p.123

___
Olha em torno de ti. Verás somente
Angústias, aflições e desesperos.
Teus melhores amigos já morreram,
Tens por só companhia, hoje, a tristeza.

Mas levanta a cabeça! Abre os dois punhos!
Agarra firmemente, caso o avistes
À mão, o que desejas. O passado
É um cadáver que deves enterrar. p.130

___
Pobre homem, nunca saberás
Nada; jamais explicarás
Um só dos mistérios do mundo.
E já que as religiões prometem

Depois da morte o Paraíso,
Busca tu mesmo criar um
Para teu gozo aqui na Terra,
Pois o outro talvez não exista. p.135


KHAYYAM, Omar. O Rubaiyat. Tradução Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

Nenhum comentário: