Álvaro Maia (1893-1969)
OS REMADORES
A tarde é linda...
A noite desce...
O sol é uma âmbula
de prece
sobre a indolência
destas águas...
Ao longe, vão
doidas canoas:
levam nas popas e
nas proas
homens viris
chorando mágoas...
Os remos na água bordam
rendas...
Fulgem, refulgem
velhas lendas,
longos terrores que
a alma espraia,
– posses cruéis,
punhais à vista,
ou pardos botos em
conquista
a moças nuas, sobre
a praia....
Nos ventos fogem
cavatinas
de langues, frases
cristalinas
do remador, como um
lamento...
penso em teu
vulto... E, deslumbrado,
ouço no canto o meu
passado...
E o canto se ergue,
lento e lento...
– “Ouve estas
vozes, em lembrança
de quem passou pela
bondade
com o pulso em
febre e a alma em vulcão...
E, ermando a vida
de esperança,
enquanto vais à
claridade,
vai procurando a
escuridão...
Onda materna que me
embalas,
barrancos de ouro e
de granizo,
noite em caminho
para o mar,
– tendes o céu de
suas falas,
o inferno azul de
seu sorriso,
a lua e o sol de
seu olhar”.
Morre a cadência...
Outra garganta
apresta a voz
dolente, e canta
crimes brutais,
nervosas ânsias...
São os sertões,
nervosas demandas,
beijos furtados nas
varandas,
raptos perdidos nas
distâncias...
Uma canoa, quando
passa,
é um violão de amor
e graça...
O remador, em
desafio,
sacode os remos,
duros dedos,
e une seus sonhos e
segredos
aos das florestas e
do rio...
O rio segue, entre
balanços,
em correntezas e
remansos,
aos cavos urros do
rebojo...
Mais tarde, acalma
e, então, recorda,
Presa no azul,
barrenta corda...
Vibrai-a, irmãos de
gleba e arrojo!
Ó
seringueiros-cantadores,
quando remais,
cantando amores,
por estas tardes de
áureo encanto,
o rio canta pelas
bolhas,
a árvore canta
pelas folhas
e tudo canta em
vosso canto... p.29-31
SERINGUEIRA
Ó gérmen do
celeiro, ó bendita semente,
que trazes no
tecido o vigor destas zonas,
brota, deslumbra,
mostra o delírio fremente
das florestas, dos
céus, dos rios do Amazonas.
Quantas bênçãos de
luz não te brilham nas franças,
que harmonizam de
dia o rincão que adoramos...
Resplende em tua
fronde um fanal de esperanças,
solta hosanas à
noite o oboé dos teus ramos...
Rainha poderosa
imperando na mata,
com tua ardente
seiva o terreno enriqueces...
E, às carícias do
sol e aos luares de prata,
esbanjas a bondade,
entreabrindo-te em preces...
És a imagem ideal
do crescer formidando,
do holocausto
divino em favor de quem chora...
Dão-te golpes na
casca e, em resposta, cantando,
dás teu leite e teu
pão, que são gotas da aurora...
Sacodes tua copa
aos clamores do vento,
ofereces ao solo o
teu pólen fecundo...
Sorves pela raiz o
abençoado alimento
para dar alimento
aos que vivem no mundo...
ó florestas, ó
céus, ó rios do Amazonas,
estacai um momento
e, em delírio fremente,
levantai orações ao
porvir destas zonas,
ao galho, à folha,
à flor, ao perfume, à semente... p.115
SUMAUMEIRA
Venho adorar-te à
sombra da folhagem,
olhando o nascente,
ao vento ondeando a fronde...
E solta o farfalho,
que responde
à voz das cousas,
num bramir selvagem...
Teu verde-branco,
verde-azul, aonde
a passarada canta
em vassalagem,
vem procurar
ventura na estiagem,
que doura as copas
e a fartura esconde.
Ó samaumeira
patrícia! Infiltra-me na fronte,
quando o corpo
volver ao transformismo,
as riquezas do ar,
as bênçãos do horizonte.
Leva minha alma ao
céu, que o bem resume,
e espalha-me, em
piedoso romantismo,
na luz, no pendão e
no perfume... p.117
ROMANCE AZUL
I
Eu passava por ti,
no isolamento
dos que vivem na
Dor, quando falaste...
De tua voz fluía um
canto...
Fui bebendo-o,
lento e lento,
sonambulando num
deslumbramento...
Por que te ouvi?
Por que falaste?
Eu me algemara ao
desalento
e resistia à
angústia da alma em pranto,
por uma poeira de
sonho,
na poesia do
Sonho...
II
Fremiu, em nosso
encontro, a força estranha,
a força das
torrentes
trementes,
seducentes
da
montanha...
E falaste de
novo... Em choro humilde,
o prelúdio das
grandes amorosas
melodizou as eras...
As mulheres da
lenda, Isolda e Bruneilde,
de bruços nas
ameias silenciosas,
esfolhavam
primaveras...
As musas da
tragédia, as tristes musas
– Desdêmona e
Francesca,
vagavam fúneras,
confusas,
ante a sorte
dantesca...
As noivas dos
poetas,
estilizadas em
poemas,
as amantes
inquietas
da Terra americana,
Moemas e Iracemas,
tudo eu ouvia
na pastorela
soberana
que teu lábio
escorria...
Falaste... E rosais
floriram,
e mares tremeram,
e ventos
cantaram...
Porque, em
romântica surdina,
radiou a voz divina
de todas as que
sentiram,
de todas as que
sofreram,
de todas as que
amaram...
Em baixo, o abismo
escancarava
a fauce em lava...
O amor, ao som de
harpas,
nos conduzia nas
escarpas,
para onde a morte
espumejava...
III
Tudo esqueci!
Que importa
o mundo, com
horror, me feche a porta,
sendo por ti!
Que importa,
injustamente, o atro labéu
me ultraje o rosto,
em frenesi...
Vejo no insulto um
luar solto do céu,
sendo de ti!
E si
Meu sangue for
preciso à tua vida,
rompo a veia,
abro-a em ferida,
abro-a por ti!
IV
Vi, junto ao meu,
teu sorriso moço,
ouvi teu sangue
estuar dentro da artéria...
Desse íntimo
alvoroço,
saíste pura,
como vieste...
Si à tua paz etérea
é necessária a
minha desventura,
estendo as mãos ao
sacrifício,
preso à bondade que
me deste...
Tombem sobre mim
as iras do flagício
e, enfim,
alvoreças em árvore
feliz!
Branca de flores,
vendo-me raiz,
enluarás de
alvorada
a sombra sempre
derramada
sob a copa feliz!
V
Não se remove o
amor, quando entrelaça
dois destinos que
se uniram
ao fulgor de
procelas, na desgraça...
Doma-se, às
vezes... Mas, um dia,
os que as almas em
beijos confundiram
se encontram em
divina rebeldia,
e vão na vida, como
as águas,
de pedra em pedra
repartindo as mágoas...
VI
Entre nós dois,
talvez possa fulgir
a ausência...
frígidas, sem tréguas,
nevarão milhas pelo
mar
e, na terra,
quilômetros e léguas...
Bendito o temporal
que nos unir,
maldigo a calma que
nos separar...
Quando se ama para
sempre,
distância não
assombra,
nem tempos
desanimam...
Um e outro ficaram
sempre
frente à frente,
olhos no vácuo... E, toda hora,
tia imagem de
aurora
e meu vulto de
sombra
se abraçarão,
levados por um imã...
Teremos, curvos à
fatalidade,
corpos sem alma,
corações já mortos...
O corpo é
transição, a alma é eternidade,
e almas e corações
são livres como o vento...
Longe, voarás, por
certo,
do abrigo em que
morares,
através de angras e
portos,
de selvas e mares,
em busca de meu
pensamento...
E, cheio do ideal
que nos prendeu,
há-de fugir meu
coração deserto,
como andorinha
viúva, para perto
do teu!
VII
O real prazer da
vida não no sente
o que o amor
preliba em doses
com o casto aspeito
de um
convalescente...
Filho de glebas em
revoltas,
sinto-o um caudal
em nevroses,
rebelde e
insatisfeito...
Não torna o rio ao nascedouro,
nem renúncia às
voltas
dos vales em
dilúvios...
Também não renuncio
à chama de ouro
dos teus dormentes
olhos núveos...
Dar-me-ás sempre
essa luz de que me inundo,
em meu tormento
sobre-humano...
Condenados embora,
iremos pelo mundo,
num romance lindo,
como o caudal para
o oceano,
– de queda
em queda,
bramindo,
borbulhando,
batalhando... p.173-178
RENÚNCIA
Entre o teu vulto
ardente e o meu destino incerto,
fulgure este
deserto, este abismo fechado,
– e ruja o coração,
como um grande forçado,
vendo-te sempre
longe, embora estejas perto...
Mas bendito esse
abismo e bendito o deserto,
que nos cavam no
mundo um fosso ilimitado:
não terás minha
voz, como um grito abafado,
nem verei teu
olhar, duplo sol entreaberto...
bendito esse
deserto e bendito esse abismo!
Não sentirás a dor,
que me acorrenta os passos,
o impossível
gelar-te as faces de agonia,
Nem cismarás em
pranto as torturas que cismo,
– beijo morto ao
nascer, rósea estátua sem braços,
que vejo em
desespero e não terei um dia! p.201
FANTASMAS
– “Fantásticas
visões, virgens de olhos ardentes,
que passaram
sorrindo em meu longo caminho,
constroem beijos de
mel, ressoantes de carinho,
em colmeias que são
tremendas urnas quentes...
Amei-as furioso,
como a árvore o torvelinho...
Agitei-as com raiva
em meus braços potentes,
desprezando-as após
sem folhas viridentes,
sem torneios de
vento e sem canções de ninho...
Clamei, mas era
tarde... às minhas rudes vozes,
responderam da
treva, em clamores de fera,
rugidos de revolta
e protestos ferozes...
Só tu me
apareceste, ó imagem soberana,
ó triste Solidão,
doce noiva sincera,
e sincera talvez
por que não és humana!” p.245
EMPAREDADO
– “A terra é um
canto elíseo... O céu é um grande centro
de ouro e fogo a
fulgir, – sentinelas da aurora...
Mas, apoiado à dor,
noiva que estua e chora,
a cela da saudade,
entre soluços, entro...
A dúvida acompanha
o elo em que me concentro,
ergue
interrogações... E, nos prantos que irrora,
mostra o
contentamento a explodir lá por fora
e um rude desespero
a vibrar aqui dentro...
Estudo as sensações
de toda fronte jovem,
sondo meu coração,
rubro céu sem caminho.
E fujo, na agonia
em que me desespero
E no encanto
triunfal das forças que me movem,
à ânsia de desejar
tudo quanto adivinho
e à fúria de viver
em ideais que não quero... –” p.247
PÊNDULO QUEBRADO
O implacável
cronômetro da vida,
nos mecânicos giros
errabundos,
ao bater os minutos
e os segundos,
vai ficando com a
órbita partida.
Enquanto corre o
pêndulo, na lida
de revolver as eras
nos seus fundos,
surgem do nada
gêneses de mundos
e ao nada volta
oque não tem saída.
Corpo, frágil ponteiro
da existência,
coração, que
alimentas e transformas,
perdestes o claror
da adolescência...
Mas, nas lutuosas
noites merencórias,
haveis de reviver
por novas formas
para a ressurreição
de novas glórias. p.277
Leia mais aqui.
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