sábado, 19 de janeiro de 2019

DA POESIA: HILDA HILST

Hilda Hilst (1930-2004)

Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo. p.290-291


Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça;

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça. p.412


As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro da tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e dentes.
Outras de geometrias. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através da minha vida vão viver. p.449-450


Empoçada de instantes, cresce a noite
Descosendo as falas. Um poema entremuros
Quer nascer, de carne jubilosa
E longo corpo escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não seria o não dizer
E deixar aquietadas as palavras
Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante

Ainda que imperfeito quer nascer.

Estendo sobre a mesa o grande corpo
Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas ventas. Nasce intensa
E luzente a minha cria
No azulecer da tinta e à luz do dia. p.450-451


De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens da loucura.
Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome. p.454


Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias. p.464


Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada. p.480


Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo,
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala
Sabes por quê? Lutei com Aquele
E dele também não fui lacaia. p.482


O REIZINHO GAY

Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS...
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram ós agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.
Acabou-se da turba a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa da sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu mastruço
Pra quem nem é russo.
E quero sem demora
Um buraco negro
Pra raspar meu ganso.
Quero um cu cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal evento...
Desse reino perdido na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.

Moral da história:
A palavra é necessária
Diante do absurdo. p.493-495


HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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