sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

RUMO

Paulo Bentes (1908-1979)

Meu irmão, poeta;
Já assistimos ao enterro
de todos os rouxinóis,
de todos os cisnes,
de todos os corvos,
de todos os pardais...

Vimos caírem todas as flores
das cerejeiras
e morrerem todos os ciprestes
e todos os carvalhos seculares
que enchiam a poesia
europeísta
que nos legaram...

O resto nós fizemos:

Esquecemos os flocos de neve
que nunca baixaram
sobre os nossos telhados.

As árvores depenadas
pela inclemência
dos outonos.

Os lobos famintos que farejavam
rebanhos de ovelhinhas mansas
e pastores ingênuos
tocadores de flauta...

A nossa poesia
hoje
tem outras cores
e outra vida.

Já não fala mais
em aldeias tristonhas,
em trigais louríssimos e dóceis
às lambadas do vento,
em clareiras crepitantes
e
em história singelas
de campônios humildes.

As águias reais
escuras, agressivas,
cedera  lugar
à realeza das garças
alvíssimas e esbeltas
que voam
serenas
pelas tardes iluminadas...

Outros olhos
outra alma
outra sensibilidade
nasceram.

Nossos olhos já se apercebem
das araras vermelhas e azuis,
dos verdes papagaios barulhentos
e dos maguaris compridos
que sonham
numa perna só
à beira dos lagos tranquilos.
Os bosques de velhas faias morreram.
As neves se derreteram.

E vimos então a existência
de sol amarelo
e arrogante
do trópico.

Vimos as nossas bananeiras
bonitas
esfarrapadas
e as palmeiras brilhantes
cheias de cachos maduros...

Os rios selvagens engrossaram
e passaram correndo,
mais belos do que os tímidos regatos
das velhas terras
decadentes
e tristes...

As histórias de bruxas
e de fadas
foram varridas
e vieram as iaras,
o caipora,
o saci
e a matintaperera...

Está nascendo o Brasil...
Noite úmida cai...
Grilos impertinentes
se escondem
pelos pastos molhados
brincando de telegrafia.
Um grita
outro responde,
É um desafio teimoso
que não acaba mais.

Da torre da capelinha
do Padre Miguel
saem morcegos farristas...
de asas moles
batendo...

O caminho do povoado
encharcado,
e os moleques alegres
batem com força
os pés
pelas poças de lama.

Os muçambês bonitos
florando...
Noite úmida vai...
E os grilos brincam
De telegrafia.

Nas casinhas caiadas
dos colonos
onde a noite vai entrando
sem pedir licença,
começam a piscar
as lamparinas fumacentas.

Lá em cima
no céu
uma ou outra estrelinha
azulada
piscando também...

O gado está recolhido...
E a noite,
toda silêncio,
vem caindo úmida,
umidamente triste
e pesada,
embrulhando tudo...

Os moleques alegres
já não brincam
pelas poças de lama.
Já não passam mais
os caminhantes
enterrando os pés
no tijuco viscoso
do caminho...

Só os grilos impertinentes
riscam o silêncio frio
brincando de telegrafia.

(In “Antologia da Nova Poesia Brasileira”, J. G. de Araújo Jorge, 1947).

MELLO, Anísio. Lira amazônica: antologia. São Paulo: Luzes – Gráfica Editora Ltda, 1965. p.243-249

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