Quintino Cunha
(1873-1943)
É o rio Negro,
aquele é o Solimões.
Vê bem como este
contra aquele investe,
Como as saudades
com as recordações.
Vê como se separam
duas águas,
Que se querem
reunir, mas visualmente;
É um coração que
quer reunir as mágoas
De um passado, às
venturas de um presente.
É um simulacro só,
que as mágoas donas
Desta terra não tem
sentido adverso,
Todas convergem
para o Amazonas,
O real rei dos rios
do universo;
Para o velho Amazonas,
soberano
Que, no solo
brasílio tem o paço;
Para o Amazonas,
que nasceu humano,
Porque afinal é
filho de um abraço.
Olha esta água – é
negra como tinta,
Posta nas mãos, é
alva que faz gosto;
Dá por visto o
nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem
de um desgosto.
Aquela outra parece
amarelaça,
Muito, no entanto,
é também limpa, engana;
É direito à virtude
quando passa
Pela flexível porta
da choupana.
Que profundeza
extraordinária, imensa,
Que profundeza mais
que desconforme!
Este navio é uma
estrela, suspensa
Neste céu dágua
brutalmente enorme.
Se estes dois rios
fôssemos, Maria,
Todas as vezes que
nos encontramos,
Que Amazonas de
amor não sairia
De mim, de ti, de
nós que nos amamos!... p.172-173
AJURI
Ajuri é um índio
velho,
Que mora numa
cabana,
Tão longe da vida
humana
Como a miséria de
si!
Nada pensa em sua
vida,
Viva de pesca e de
caça,
Sem conhecer a
desgraça,
O bom índio Ajuri.
Todos os dias de
tarde,
À margem do grande
rio,
Num canto muito
sombrio,
Sob um cedro secular,
Ajuri vai
pressuroso,
Vai satisfeito o
bom velho
Ver algum boto
vermelho,
À flor das águas
boiar!
E quando, como é
costume,
Algum boto lhe
aparece
E de novo ao fundo
desce,
E de novo à tona
vem,
Aí é que
satisfeito,
No mais profundo
desvelo,
Ajuri murmura ao
vê-lo!
– Maria, meu
doce-bem!
Todo povo fala que
esta,
Que Ajuri amava
tanto,
Na tarde de um dia
santo,
A sombra na água
botou;
Ela que um boto com
certeza
A botara; pois
Maria
Nunca mais, desde
esse dia,
Um triste instante
passou.
Se por ventura
morresse,
Iria ao reino de
Iara,
Gozar do que não
gozara
Na terra, feliz
mulher!
Não era morte, era
encanto,
Para o nosso mundo
ignoto,
Maria seria um boto
Como outro boto
qualquer.
Morreu, mas a sua
morte
Não causou luto nem
mágoas!
Ajuri por sobre as
águas,
A noiva morta
estendeu;
Ele próprio, no
entretanto
Su’alma à crença é
tão presa
Que ainda diz com
certeza
Que Maria não
morreu!
Por isso é que toda
tarde,
À margem do grande
rio,
Naquele canto
sombrio,
Sob um cedro
secular,
Ajuri satisfeito,
Vai toda tarde e
bem velho,
Ver algum boto
vermelho,
À flor das águas,
boiar. p.174-176
A ENCHENTE
Sinistro cresce o
rio bom de outrora,
Mas hoje um cruel,
fazendo mil estragos.
Já não tem coração,
não tem afagos
Para si mesmo, o
Solimões dagora;
Mas, em
compensação, há nisto uns vagos
Tons de alegria
impressionadora:
É que alegres, os
peixes vão-se embora,
Pelos igarapés,
para os seus lagos.
E, no ouranal,
pousadas tristemente,
Com a mesma
tristeza com que a gente
Se prostra, às
vezes, quando sente mágoas,
As garças olham
como a praia há-de
Em breve se
esconder, naquelas águas,
As garças olham...
tristes de saudade!... p.176
A PIRACEMA
Aqui é um lago,
feito de água clara,
Visualmente negro
se mostrando;
Calmo que sobre si
passa uma igara,
Como no espaço um
passarinho voando.
Sol das dez da
manhã. O amor compara
Este quadro à
virtude. Um vento brando...
Mas lá fora no rio.
Ele aqui para,
O lago, a mata e o
céu quietos deixando.
Do anivelado
espelho dágua, apenas
Manchado levemente
por pequenas
Nódoas que lhe
colorem, nódoas cérulas,
Aos bandos, as
sardinhas vão surgindo,
Frágeis,
cambiantes, rápidas, fugindo,
Como travessas
conchas madrepérolas. p.177
MELLO, Anísio. Lira
amazônica: antologia. São Paulo: Luzes – Gráfica Editora Ltda, 1965.
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