Para terminar o ano, reflexões de um pensador
francês, que, sem cultivar a filosofia propriamente dita, produziu uma obra
leve, satírica, crítica dos costumes de sua época, e que foi censurada. Suas
Cartas Inglesas foram queimadas, e mais tarde publicadas novamente.
O livre pensar até hoje sofre com a
intolerância, como muito bem mostram episódios recentes de violência absurda em
plena Europa e mundo afora.
A seguir alguns trechos de Voltaire, um
iluminista, amigo de Frederico II, outro iluminista, esclarecido, culto, com
ideias e estilo de vida fora de padrões até mesmo os atuais. Em seu palácio
vivia com um misto de arte, prazer e homoerotismo.
Voltaire em o Filósofo Ignorante:
"Como posso pensar?
Os livros escritos há mais de dois mil anos
ensinaram-me alguma coisa? Tentei descobrir por meio da razão se as molas que
me fazem digerir e andar são as mesmas que me fazem ter ideias. Nunca pude
conceber como e por que as ideias fugiam quando a fome enlanguescia meu corpo,
nem como e porque renasciam quando eu havia comido. Vi uma diferença tão grande
entre os pensamentos e a alimentação (sendo que sem esta eu nunca pensaria) que
acreditei haver em mim uma substância que raciocinava e outra que digeria.
Entretanto, buscando sempre provar a mim mesmo que não sou dois, senti
grosseiramente que sou um só. Essa contradição sempre me penalizou muito.
Com muita engenhosidade, perguntei a alguns
de meus semelhantes, cultivadores da terra, nossa mãe comum, se sentiam ser
dois, se graças à filosofia haviam descoberto possuir dentro de si uma
substância imortal e, no entanto, formada de nada, existente sem extensão,
agindo sobre os nervos sem tocar neles, enviada expressamente ao ventre de suas
mães seis semanas após a concepção. Acreditaram que eu estava brincando e
continuaram a cultivar seus campos sem responder-me.
Vendo pois que um número prodigioso de homens
não tinha a menor ideia das dificuldades que me inquietavam (...) e muitos
caçoavam do que eu queria saber, suspeitei que não era absolutamente necessário
que o soubéssemos. (...) Acreditei que as coisas que não podemos alcançar não
são nossa partilha. No entanto, malgrado esse desespero, não abandono o desejo
de ser instruído, e minha curiosidade enganada é sempre insaciável".
***
Essas reflexões miram tanto a certeza
filosófica em noções como alma, o dualismo cartesiano, como inquietam aqueles
que buscam pela origem das ideias: como é possível pensar e se pensar e sentir
diferem, se são duas naturezas. Então o homem teria duas naturezas? O filósofo
é um ignorante que mesmo assim não desiste de interrogar...
Ao que tudo indica, esse livre pensar, esses
questionamentos, não atingem os fanáticos, os dogmáticos, os intolerantes, os
que se creem de posse da verdade. Os que odeiam a liberdade, a arte, a música e
o respeito às diferentes crenças e religiões.
O mais incrível é que, se considerando como
únicos portadores da virtude, os únicos cuja morte e assassinato de inocentes,
conduzirá sua alma imortal a algum tipo de paraíso eterno.
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