segunda-feira, 9 de julho de 2018

MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO NA RUA DA HOSANA (notas sobre o filme)

João Veras

“Sem esquecimento não passamos de papagaio”
(Paul Valery)


Do que se constitui a vida das pessoas, como seres culturais, senão de suas memórias, que é como nos vemos e também os outros o tempo todo? Todos somos o que somos justamente em razão das memórias. Não consigo desmembrar a ideia de vida com a de memória. Porque as vidas são construídas de memórias e estas justificam e motivam aquelas. E memória não é passado, tão somente, mas também o que se passa. A memória resiste a ausência de vida, esta ideia de vida como a concebemos. Dizendo de outro modo, penso que é a memória que possibilita uma vida muito próxima da infinitude que tanto desejamos. A vida passa e a memória fica. A gente permanece e vai, tudo como memória.

Mas enquanto ela nos é contemporânea, isto é, enquanto a produzimos/somos por ela produzidos, ela não se faz só senão amalgamada de imaginação. Não há produto dela que não seja resultado das duas. Não é possível lembrar sem imaginar. E isto se faz, em regra, por uma operação inconsciente. É que a imaginação é um suporte, em maior ou menor grau, da memória esta que, por sua vez, alicerça aquela. As duas se retroalimentam e, por isso e por vezes, se confundem. E, ambas, não existiriam misturadas, vezes confundidas, não fosse, muito talvez, o esquecimento.

E quando não se pode dizer que são, numa narrativa, uma coisa e outra, quando não se pode fugir do senso de ambiguidade que produz outro modo de ver o mundo, ai reside a arte, a arte enquanto se difere, para um lado ou para outro, do exato, do linear, do oficial, da história, especialmente disso tudo mascarado de imparcialidade, de verdade.

Rua da Hosana, filme de Ney Ricardo Silva lançado no final do mês passado em Rio Branco, é uma obra de arte concebida em um ambiente narrativo a destempo, no sentido de que busca desvelar, ao seu modo, um contínuo histórico, pois é sobre um fato social em si que nunca acaba de acontecer em certos lugares – e em desfavor de certas pessoas - que o estado-centro vai cunhar de sua periferia e de periféricas as pessoas que ali vivem: O assassinato de uma mulher sem que se consiga/queira fazer justiça. Casos tão comuns em que a vítima é que é merecidamente condenada por sua condição tida como ofensiva ao status quo. Hosana era uma mulher livre. Daí, justiça para, no caso contra, Hosana.

O filme trata das vidas, das memórias, das imaginações e dos esquecimentos, de Hosana, de seus testemunhos e de todos nós. Ninguém está fora disso. Não é viável, com esta nova obra de Ney, desconjuntar uma coisa da outra. O que se passou, se passa e se passará na Rua da Hosana é produto do que é vivido, lembrado, esquecido e imaginado. Por ele, é possível se afirmar que a cultura é senão uma autocriação e não algo reduzido a uma macro narrativa institucional só encontrada nos livros escolares de história e nas propagandas governamentais.

Rua da Hosana, como produto cultural das narrativas de memória, imaginação e esquecimento, traduz e revela todo o espectro social – e seus significados morais, políticos e culturais – da época e de agora. As pessoas que emprestam seus testemunhos ao filme, pelas quais Hosana é desadormecida, buscam, mais que honrar o fato (na sua exatidão formal), honrar, para além de sua própria defesa (como semelhante), a vítima e a ideia de justiça, tão desconsideradas ao longo do tempo naquela região em suas histórias de desventuras sem fim. De um símbolo, por sua silenciosidade, sem consideração para o centro, Hosana, a mulher perdida, agora é infinita arte na obra do cineasta acreano.


João Veras 
01.07.18

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