João Veras
“Sem
esquecimento não passamos de papagaio”
(Paul
Valery)
Do que se constitui
a vida das pessoas, como seres culturais, senão de suas memórias, que é como
nos vemos e também os outros o tempo todo? Todos somos o que somos justamente
em razão das memórias. Não consigo desmembrar a ideia de vida com a de memória.
Porque as vidas são construídas de memórias e estas justificam e motivam
aquelas. E memória não é passado, tão somente, mas também o que se passa. A
memória resiste a ausência de vida, esta ideia de vida como a concebemos.
Dizendo de outro modo, penso que é a memória que possibilita uma vida muito
próxima da infinitude que tanto desejamos. A vida passa e a memória fica. A
gente permanece e vai, tudo como memória.
Mas enquanto ela
nos é contemporânea, isto é, enquanto a produzimos/somos por ela produzidos, ela
não se faz só senão amalgamada de imaginação. Não há produto dela que não seja
resultado das duas. Não é possível lembrar sem imaginar. E isto se faz, em
regra, por uma operação inconsciente. É que a imaginação é um suporte, em maior
ou menor grau, da memória esta que, por sua vez, alicerça aquela. As duas se
retroalimentam e, por isso e por vezes, se confundem. E, ambas, não existiriam
misturadas, vezes confundidas, não fosse, muito talvez, o esquecimento.
E quando não se
pode dizer que são, numa narrativa, uma coisa e outra, quando não se pode fugir
do senso de ambiguidade que produz outro modo de ver o mundo, ai reside a arte,
a arte enquanto se difere, para um lado ou para outro, do exato, do linear, do
oficial, da história, especialmente disso tudo mascarado de imparcialidade, de
verdade.
Rua da Hosana,
filme de Ney Ricardo Silva lançado no final do mês passado em Rio Branco, é uma
obra de arte concebida em um ambiente narrativo a destempo, no sentido de que
busca desvelar, ao seu modo, um contínuo histórico, pois é sobre um fato social
em si que nunca acaba de acontecer em certos lugares – e em desfavor de certas
pessoas - que o estado-centro vai cunhar de sua periferia e de periféricas as
pessoas que ali vivem: O assassinato de uma mulher sem que se consiga/queira
fazer justiça. Casos tão comuns em que a vítima é que é merecidamente condenada
por sua condição tida como ofensiva ao status quo. Hosana era uma mulher livre.
Daí, justiça para, no caso contra, Hosana.
O filme trata das
vidas, das memórias, das imaginações e dos esquecimentos, de Hosana, de seus
testemunhos e de todos nós. Ninguém está fora disso. Não é viável, com esta
nova obra de Ney, desconjuntar uma coisa da outra. O que se passou, se passa e
se passará na Rua da Hosana é produto do que é vivido, lembrado, esquecido e
imaginado. Por ele, é possível se afirmar que a cultura é senão uma autocriação
e não algo reduzido a uma macro narrativa institucional só encontrada nos
livros escolares de história e nas propagandas governamentais.
Rua da Hosana, como produto cultural das narrativas de memória,
imaginação e esquecimento, traduz e revela todo o espectro social – e seus
significados morais, políticos e culturais – da época e de agora. As pessoas
que emprestam seus testemunhos ao filme, pelas quais Hosana é desadormecida,
buscam, mais que honrar o fato (na sua exatidão formal), honrar, para além de
sua própria defesa (como semelhante), a vítima e a ideia de justiça, tão
desconsideradas ao longo do tempo naquela região em suas histórias de desventuras
sem fim. De um símbolo, por sua silenciosidade, sem consideração para o centro,
Hosana, a mulher perdida, agora é infinita arte na obra do cineasta acreano.
João Veras
01.07.18
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