sexta-feira, 4 de outubro de 2024

QUATRO MOVIMENTOS: Luiz Bacellar

Quatro Movimentos, o terceiro livro do poeta amazonense Luiz Bacellar (1928-2012), publicado pela Editora Artenova, em 1975, do Rio de Janeiro. Com prefácio de L. Ruas e ilustrações de Van Pereira.

 

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VII

 

Uma rosa de sal, entretecida

de mágoa, de pavor, de angústia e espanto,

por espinhos de gelo guarnecida,

foi se lavrando ao longo do meu canto!

Uma rosa de sal! Não fenecida,

pelas salobras lágrimas, que enquanto

cantei fui derramando, foi nascida

como estalagmite do meu pranto.

Uma rosa de sal! Ai quem pudera,

nessa corola branca constelada

de brilhos claros, de perenes lumes,

ver todo o sentimento que a fizera

sem contudo a tomar, menos amada,

por rosa dolorosa e sem perfumes? p. 21

 

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VIII

 

Rosa do mar! Se o mar tivesse rosas...

Rosa do céu? Se o céu também tivesse

e uma estrelar corola compusesse

de fluidas lactescências vaporosas.

Rosa de lumes claros, de olorosas

opalescências, ciciar de prece

erguida à Virgem pelo que padece,

para tecer grinaldas luminosas!

Ó rosa de impossíveis... transparências

que minha mente cria e que minh’alma

procura nos espaços siderais!

Ó rosa de purezas e inocências,

rosa da fé, rosa da paz, da calma,

rosa do além, rosa do nunca mais... p. 22

 

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IX

 

Essa rosa farpada, essa reouvida

rosa inconsútil plena em ressonâncias,

essa é a rosa dos ecos de uma vida

feita em procura dela em fundas ânsias;

essa rosa que dói mas que é amada

assim mutável, desassossegada

girando em chamas com seu rubro lume

de redolente cor, claro perfume,

é rosa mais na dor, mais na vivência,

mais no vibrátil som que é sua essência:

deslumbramento de um destino adverso;

essa rosa contínua e ressonhada,

por pétalas de pálpebras formada,

é rosa renascida em sono e em verso. p. 23

 

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XIX

 

Esta lua é a dos loucos. E eu pressinto

que vizinho já sou dessa loucura...

No entanto sinto quanto a noite é pura

com um diurno sentimento de que minto

sorvendo o azul e trágico absinto

do luar: me garimpando na procura

de uma razão de ser... (Essa tortura

de pressentir o louco que em mim sinto!)

Luar peripatético e falaz,

deambulatório luar, atro e minaz:

versos contados por passadas lentas.

Pelo meu ritmo interior levado

eu vou compondo, a passo magoado

o poema. E enchendo as horas lutulentas. p. 34

 

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XX

 

O meu verso é um fragor: desmoronar -

me sinto quando escrevo. E o ruído é tanto

que vou com passo incerto no meu canto

como se caminhasse à beira-mar

num dia de ressaca sob um luar

como o de agora (a via-láctea é um manto

salpicado de sal, de prata e pranto)

em que as horas se esquecem de passar.

Meu verso é um natural correr de pena

que rasga, que destrói, mutila e mata

minhalma que é de espuma e de verbena:

é um vestido deixado sobre a cama,

vazio de um corpo amado. E me arrebata

no vácuo intenso do meu próprio drama. p. 35

 

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XXXIII

 

Nos meandros do verbo abrindo as claves,

supremas solidões de angústias tensas

num denso tumultuar de asas imensas

de sombras vivas em revoadas de aves,

guardas as mais recônditas sentenças:

negros silêncios de pesadas chaves,

marulho surdo de perdidas naves,

proas rompendo o duro mar que pensas...

Mar de secos sargaços e de ossuários

com as amplas solidões, vastos silêncios

das planuras mortais do irrevelado,

arcabouço de sonhos refratários

que, alta corola calcinando-os, vence-os

o sol do espanto, lívido e nevado. p. 49

 

BACELLAR, Luiz. Quatro Movimentos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. p. 21-23