terça-feira, 24 de março de 2009

Tão Acre: o humor acreano de todos os tempos

Não resta dúvida de que José Chalub Leite (1939-1998) foi um dos maiores nomes do jornalismo acreano. Trabalhou em diversos jornais, tais como: Tribuna do Povo, O Estado do Acre, O Rio Branco, etc. Fundou com outros a Associação dos Cronistas Esportivos do Acre, a Associação Profissional dos Jornalistas do Acre, a Federação de Pugilismo. Zé Leite, como era popularmente conhecido, legou para o Acre uma das mais belas páginas do humor jornalístico acreano. Em 1992 ele lançava o livro: “Tão Acre: o humor acreano de todos os tempos”, um livro tão palpitante de graça, trepidante de alegria e acreanissimamente moleca.

Tão Acre, como ressalta o próprio Zé Leite na introdução, é jamaxi de gargalhadas, varadouro de humor, jirau de “causos”, poronga de folclore, sapupema de alegria, cuia-pitinga de gaiatice, piracema de verve... açude do riso antológico acreano de bubuia satírica. Tão Acre é a prova provada da saga gafolheira de uma sociedade altiva, ferina, irônica, extrovertida, aberta, capaz somente de rejeitar os mal-intencionados e os que, como diziam o velho Guiomard, bancam besta pensando que acreano é besta.

E o título TÃO ACRE? Zé Leite explica o porque: “O Acre é o Acre, por isso é tão Acre. O que não acontece no Acre não acontece em lugar algum do Brasil: cambista de bicheiro faz greve, médico de Sena Madureira atesta gravidez de homem de 70 anos, motorista de táxi dá carona, prefeito inaugura quebra-molas com banda de música e foguetes, prostituta tem orgasmo múltiplo e dá de graça, reitor manda abrir inquérito para descobrir quem fez cocô na piscina, preso escapa do presídio serrando a barra de ferro com gilete, vigarista como o “Dr.”. Josias Cavalcante não foi governador porque não quis, mucura de “dois pés” come numa noite 1.666 galinhas do governo e fica por isso mesmo... cunhei a palavra para designar o inexplicável do Acre. E não se fala mais nisso.”

Enfim resta dizer com Antônio Stélio que TÃO ACRE é nosso. O Zé o pariu, mas nós o educaremos. Ele passa a ser parte de nosso cotidiano e, com certeza, como deseja o autor, irá gerar seus filhotes, robustos e sacanas, assim... Tão Zé.

Selecionei alguns fragmentos do livro:

Surrealismo
Padre José encontra-se com o pintor primitivista Hélio Melo, puxam papo, entram em terreno de amplo domínio da dupla:
Padre José:
– Hélio, eu minto muito mais que você.
Hélio:
– Mas você fez curso, eu não fiz!

Frei José e a beata
Velha beata, arrastando os pés, corre dentro da Igreja de São Sebastião (antes da Prelazia demoli-la) e captura o apressado padre José Maria Carneiro de Lima.
- Que é que há, vovó?
- Padre José, é pecado peidar na Igreja?
- Vovó, não apagando as velas. Pode peidar a vontade.

Homenagem ao poeta
Abundam no Acre entidades governamentais, empresariais, industriais e congêneres com o topônimo Acre: Cageacre, Teleacre, Eletroacre, Sanacre, Colonacre, Codisacre, Acredata, Represacre, Banacre, Construacre, Deracre, Oxiacre, Sabenacre, Acrevelimda, essas coisas.
Pois há anos, na rolagem do termo azedo, uma diretora da Escolinha Marechal Arthur da Costa e Silva, na linha do Mofundo, ramal da rodagem Senador Guiomard – Plácido de Castro, batizou na embalagem dos acres uma entidade comunitária.
“Centro Recreativo e Comunitário Olavo Bilacre”.
Não se sabe a prestativa e zelosa professora aderira à moda ou adotara nova homenagem ao patrono do serviço militar e poeta autor de “Tercetos”, obra-prima do poemário nacional auriverde.

Tão Acre...
Verdade verdadeira. Em Senador Guiomard, quando era prefeito o alto e espigado João Rodrigues, o popular João Jia, com banda de música, escolares de bandeirolas nas mãos, discursos e tudo o mais foi inaugurado solenemente... um quebra-molas.

Mensagem Radiofônica
Mensagem lida na Rádio Difusora Acreana, rigorosamente verdadeira:
“Atenção senhor Antônio José, na Colocação Vai-quem-quer, seringal Sapopemba. Aviso-lhe que o Manuel foi atropelado e está internado no Hospital de Base com fratura craniana, três
costelas quebradas, perna direita amputada e fraturas expostas nos dois braços. Peço que não se preocupe, pois ele passa bem. Abraços do Raimundo”.

Lição de vida

Do ilustre médico acreano, natural de Xapuri, Dr. Adib Domingos Jatene:
- O grande problema do pobre, no Brasil de hoje, não é ele ser pobre, é o amigo dele ser pobre.

O golpe de vista
Padre José vinha de Xapuri dirigindo sua Toyota azul-cerúleo, tendo como carona seu irmão também padre, o frei Pelegrino. No meio do percurso da esburacada estrada em pleno verão, padre Pelegrino se pronuncia, quase gritando:
- Pára, José, Pára! Eu vou saltar.
- Que é que houve, meu irmão?
- Vou recolher aquela agulha ali na beira da estrada.
- Estás doido, Pelegrino, vais só perder tempo. És cego?
- Perder tempo? Cego?
E frei José:
- Não estás vendo que a agulha não tem buraco na cabeça, é apenas um alfinete?

Tão Acre
Em Tarauacá, o ex-vereador José Pinheiro descobriu que o único vendedor de peças de motosserras é o ecologista Gérson de Oliveira Araújo.

Terra boa
Os tarauacaenses orgulham-se de sua terra. Os demais acreanos, talvez com inveja, nominam assim a risonha região do Juruá:
Tarauacá, terra da mulher bonita, do abacaxi grande e homem pequeno.

Educação
O ex-senador Altevir Leal, rico seringalista de Tarauacá, gentilmente curva-se diante de toda menina de 12 anos, em sua terra, e cumprimenta-a reverente:
- Como vai, minha senhora!
Menina-moça, pra ele, já é. Ou era.

Helicóptero
Um helicóptero em Rio Branco, em 1991, deu força à Secretaria da Saúde no combate à cólera que ameaçava assolar o Acre. Quem muito usufruiu da traquitana foi o falecido governador Edmundo Pinto. Um dia convidou o deputado Chico Sombra para um sobrevôo. O parlamentar agradeceu:
- Obrigado, governador, eu não ando em avião de rosca.
*
Referência e sugestão:
Tão Acre: Humor acreano de todos os tempos de José Chalub Leite. Rio Branco: BOGRAF Editora Preview Ltda, 2000.

sábado, 14 de março de 2009

SEJA HOMEM E NÃO ME SIGA



J. Wolfgang Goethe é um dos maiores nomes da literatura mundial. Em 1774 Goethe lançava “Os sofrimentos do jovem Werther”, a obra mais emblemática de uma época de transição entre valores aristocráticos, nas artes e na sociedade, e o nascente poder da burguesia, que buscava afirmar sua visão de mundo e consolidar uma nova estética.

“Seja homem e não me siga.” O sucesso junto ao público e o efeito do romance “Os sofrimentos do jovem Werther”, relançado numa versão revista e definitiva em 1787, foram tão estrondosos que o autor se viu levado a introduzir em edições posteriores essa advertência de não confundir a vida com a ficção. É que vários de seus leitores mais empolgados tinham resolvido imitar a ação do herói de pôr fim aos tormentos de sua paixão amorosa através do ato de meter-se uma bala na cabeça – não antes sem cuidar da devida auto-encenação, que consistia em se vestir, como o modelo, de paletó azul e colete amarelo, conforme ressalta o crítico literário Willi Bolle.

Os Sofrimentos do jovem Werther narra o desenrolar de um drama íntimo, de uma paixão irrefreável cujo limite é a morte. Nas cartas que o protagonista envia ao seu melhor amigo, confidenciando-lhe o seu amor pela bela Charlotte, encontra-se também a descrição de uma nova sensibilidade, a da burguesia, que se contrapunha ao mundo de regras pedantes e artificiais da sociedade aristocrata. O tom intimista que caracteriza o romance, além da poeticidade raramente alcançada em obras de ficção, também garantem seu lugar como precursor do moderno romance psicológico, assim como fez Hermann Hesse na obra “O Lobo da Estepe”. Abaixo transcrevo um excerto do romance:


10 de maio

Uma serenidade maravilhosa apoderou-se de todo o meu ser, semelhante às doces manhãs de primavera que venho saboreando intensamente. Estou sozinho, e felicito-me por viver neste lugar, feito para as almas como a minha. Sinto-me tão feliz, meu caro amigo, ando tão inteiramente absorto no sentimento de uma existência tranqüila, que minha arte sofre com isso. Seria incapaz de desenhar agora um simples traço a lápis e, apesar disso, nunca fui tão excelente pintor. Quando o vale gracioso exala em torno de mim uma névoa repleta de fragrâncias, o sol do meio-dia repousa no obscuro inviolável da floresta, e somente alguns raios esparsos penetram o interior do santuário; quando, estendido sobre a relva espessa, perto do rio que flui, descubro rente à terra mil variedades de plantinhas; quando sinto, mais próximo de meu coração, o fervilhar desse pequeno mundo entre os arbustos, as figuras inúmeras, infinitas, dos vermes e dos insetos; quando sinto, enfim, a presença de Deus Todo-Poderoso, que nos criou à Sua imagem e semelhança, e o sopro do Seu amor infinito, que nos dirige e nos sustenta, embalados numa alegria eterna. Meu amigo, se o dia começa a raiar à minha volta, se o mundo que me cerca e o céu inteiro descansam no meu peito como a imagem de uma bem-amada, então suspiro e digo para mim mesmo: “Ah! Caso pudesse se exprimir, caso pudesse passar para o papel o que em você sente viver com tanto ardor e tamanha abundância, de forma que ali estivesse o espelho de sua alma, como sua alma é o espelho de Deus infinito!...” Ah, meu amigo... Mas me sufoco, esmoreço diante da magnitude dessas visões.

Referência e sugestão:
Os sofrimentos do jovem Werther de J. Wolfgang Goethe. São Paulo: Nova Alexandria, 1999.

quinta-feira, 12 de março de 2009

DJALMA BATISTA E A MEDICINA


"É tarefa honrosa, emotiva e portanto difícil abordar a face médica, a meu ver a mais eclética da formação do Djalma da Cunha Batista. Neste ciclo de palestras onde a Fundação que leva seu nome o homenageia nos 80 anos de seu nascimento, pensei cumprir esta minha parte, a última do ciclo, começando pela análise da conjuntura política, econômica e social da década de 30, quando ele iniciava seu curso médica na Faculdade de Medicina da Bahia(...)

(...)O que o motivou a ser médico? Era importante que eu iniciasse pelos porquês e buscasse entender sua vida médica dedicada à Amazônia e aos amazônidas(...)

(...)Djalma Batista durante o curso médico se destacava dos colegas quando exercia funções técnicas peculiares do Curso. Internato no Sanatório São Jorge pode tê-lo iniciado na compreensão e compromisso do combate à tuberculose(...)

(...)Assim, o marco referencial que busquei ter acesso para entender e falar do médico que foi Djalma da Cunha Batista não poderia ser outro senão o seu Discurso de Formatura. Escolhido no meio de tantos, de diferentes origens e procedências, o acadêmico finalista de Medicina, da turma de 1939, com apenas 23 anos de idade, fez um disco de formatura intitulado Medicina e Estética, que se consituiu em sua primeira obra literária(...)

(...)Ao retornar aos 23 anos, o Dr. Djalma Batista funda em 12 de fevereiro de 1940, o Laboratório De Patologia Clínica que traz o seu nome, hoje com 56 anos de bons serviços prestados aos doentes do Amazonas.

(...)O reencontro com o amigo da adolescência Moura Tapajós, agora médico vinda escola de Octávio de Freitas no Recife, cimenta uma profunda convivência com base em respeito mútuo e no idealismo contagiante.

(...)É a convite de Moura que Djalma começa a militar na Liga Amazonense contra a Tuberculose (fundada em 1932)(...)

(...)Com o retorno dos jovens médicos e o crescimento galopante da "peste branca" (assim chamava-se a tuberculose), Moura Tapajós e seu grupo fundam em 31.07.1939 o Dispensário Cardoso Fontes(...)

(...)A partir desta base definitiva e contando com melhores e mais especializados recursos humanos, o Dispensário se desenvolveu com o "Ateneu Clemente Ferreira", um Centro de Estudos que Djalma assim definia: "é uma escola de disciplina mental e profissional e de incentivo espiritual, em que todos são mestres e discípulos fraternalmente, compreensivamente"(...)

(...)Todo este trabalho de quase 20 anos não lhe mudaram a modéstia e a humildade. "Não sou tisiólogo, apenas afeiçoado entusiasta da especialidade, sobretudo da parte social da tisiologia. O que se fizer não em meu benefício pessoal, nem me trará glórias, a que não aspiro, certo, com Anatole France, de que a glória é a mais funesta e a mais ridícula das ilusões de um cerébro doente"(...)

(...)Depois da atividade em tuberculose, o Dr. Djalma Batista foi o médica de família e dos doentes da Santa Casa que tinha certa de 30 leitos(...)

(...)Somente quando eu tomei consciência de que as perdas desses homens sabios àquela altura não eram somente dos cargos, mas de suas próprias vidas, pude perceber claramente que aqueles que tinham o "lado" bem definido, que estavam ombreados com os desvalidos, que pensavam o bem comum, "estavam subvertendo a ordem estabelecida" e deviam ter seus caminhos cortados. Tempos de chumbo! Como e quanto perdermos com eles! Penso que Djalma Batista começou a morrer com esta perda, com estes tempos.(...)

(...)Apesar de tudo isso, chegou o momento de nos encontrarmos no espaço que percebí ter sido sua grande realização: a Faculdade de Medicina. Educar as gerações, socializando o imenso conhecimento acumulado, lecionando Patologia Clínica. O meste nos ensinou, com a paciência do sábio que desvalorizava nossa ignorânci e alienação(...)

(...)Quando após uma de suas aulas, ele me destacou dos outros alunos e me convidou para estagiar em seu laboratório de patologia clínica, estava me abrindo um espaço que não só mudou a minha vida, mas me fez olhar o mundo sobre outro prisma(...)

(...)Hoje, o que mais nos tem entristecido além da saudade que sentimos dele, é revermos o quadro nosológico brasileiro se agravando com a volta das endemias medievais como a cólera, das viroses que nem conhecemos, ou da tuberculose que volta a ter a força da "peste branca"da década de 40"(...)

*
(Trechos da palestra do Dr. Marcus Luiz Barroso Barros, proferida em 29.02.96, no Auditório da Faculdade de Ciências da Saúde).
*