Marta Cortezão é natural de Tefé-AM, radicada na Espanha, Segóvia, desde 2012. Poeta, escritora, tradutora, ativista cultural, interessada em promover a Literatura feita por mulheres mundo afora. Desenvolve o projeto “Tertúlias Virtuais” que divulga a Poesia de escritoras que publicam sua produção literária nas redes sociais. Foi professora da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC) de 1994 a 2012 e do Centro de Estudos Superiores de Tefé (CEST/UEA), de 2002 a 2010. Em 2017, lançou seu primeiro livro de poesia, “Banzeiro Manso”, pela Editora Porto de Lenha. O mais recente trabalho poético da autora encontra-se, no prelo, e deverá sair brevemente sob o provável título de “Amazonidades: gesta das águas”.
MANIAS
Era tão cheia de desinências
que não conseguia encontrar-se
plena em nenhuma declinação...
Talvez tivesse que repensar
essa mania de flexionar-se,
de fragmentar-se pelo mundo
sem ponto de inflexão!
Conjugava-se em largos pretéritos
com sede de particípios presentes
que colorissem futuros ausentes...
Quebrou o verbo em tantos pedaços
que o tema ardente da vida,
abandonado por seus morfemas,
sangrou em carne viva!
Despencou-se em doentias diacronias;
perdeu-se em afixos peregrinos
e expirou em versos alexandrinos...
Perdeu o ritmo dos pés da poesia;
louca, vociferou em trágicos jâmbicos,
até cair em cômicos ditirâmbicos,
asfixiando supérfluas manias
e respirando doces sílabas de harmonia! p. 23
MISSIVA
Se queres o céu
dê-me estrelas;
se estradas,
permita-me caminhos;
se rios,
revele-me nascentes;
se jardim,
floresça-me;
se relva fresca,
orvalhe-me;
se louca enxurrada,
chova-me;
se rima,
versifique-me;
se porto,
atraque-me;
se fogo,
acenda-me;
se libido,
deseje-me...
Não andes na contramão
da via de meus sentimentos.
O tempo que se vai
dar-se por perdido;
o amor que se perde
é tempo ido. p. 26
DEBILIDADES
Sempre haverá
um sorriso guardado
no rosto sofrido.
Um beijo idealizado
na boca que ultraja.
Um abraço esquecido
nos lânguidos braços.
Um grito contido
no peito que escarra.
Um prazeroso gemido
na profunda garganta.
Um doce toque
nas mãos calejadas.
E nos ríspidos passos,
sutis pegadas. p. 30
VALSA PARA EROS
Teus passos cegos
me vigiam.
Teus olhos passeiam
minha alma.
Teus sentidos
me ensandecem.
Tua boca ensurdece
meu mundo.
Teu silêncio
grita desatinos,
em gestos eróticos,
quando Eros travesso
se burla de mim.
Tuas mãos invadem
meu jardim.
Anjo querubim!
Faz arruaça,
na doce relva
molhada!
Cupido curumim,
flecha de carmim
na aljava.
Suspiros,
em movimentos
caleidoscópicos...
A mente serpenteia
embalada num
cadenciado
compasso.
Tua respiração
explode afônica
de regozijo
intempestivo...
Seios, pernas
mãos e braços
esgotam-se...
Teu coração
guarda fresco
hálito de flores.
A cura de tantas
tristes dores...
Feneço de gozo. p. 36
HÁ UM VERSO
Há um verso mudo em mim
atormentando meu silêncio
e tentando devorar-me o sim
do não que luzes me acende.
Há um verso retorcendo palavras
na água que abrolha recordações
e verte rios no peito que deságua
em doces rebojos de emoções.
Há um verso sentido na vida
que ensina o caminho a seguir
derramando dores na fera lida
e no tempo que para a carpir.
Há um verso que a rima adensa
e deve ser trabalhado a cada dia.
É arte laboriosa que compensa
e dá ritmo e compasso à maresia.
Há um verso rondando o abismo
no intento de atirar-se no sem-fim
e romper-se em cacos e rabiscos
e nas brasas pintadas de carmim.
Há um verso preso em labirintos
construídos pelo artífice desamor
onde o retraído desejo que sinto
é minotauro que mata-me de dor.
Mas há sempre um verso perfeito
nas andanças métricas de pés aflitos.
É aquele que deambula insatisfeito
nos corredores dos ébrios matizes. p. 61
METAMORFOSE
Ser casulo
para entender-se
no silêncio do Ser
ser lagarta
para saber-se
rastejante,
no Mundo.
Ser borboleta
para libertar-se,
aladamente,
no centro de
uma curta e
maravilhosa
existência. p. 80
ODISSEU ERRANTE
Quando a escuridão em mim se faz,
ainda que o sol desponte radiante
perco o sono, perco o tino e a paz.
Sinto-me o Odisseu mais errante
dentre todos os mortais.
Cansado de astúcias e guerras,
de tantas naus e saqueios perdidos,
de tantos sonhos caídos por terra,
Odisseu de sentimentos oprimidos,
dessa grande vida procela.
Sem Destino, sem timão,
exilado em um submundo,
desprovido de toda ilusão,
Odisseu do Hades profundo
decrépito, de amargo coração.
Levianas juras e vãos amores
esvaíram-se tal água pelos dedos
carrego do mundo as dores
Odisseu dos tormentosos segredos,
isolado em belicosas torres.
Castigado pela ira netúnia
atormentado pelo abandono do lar
largado à própria sorte, à penúria.
Odisseu sem porto aonde chegar
e de grandes glórias estapafúrdias.
Onde perdi o poder da imortalidade?
Quando os triunfos viraram fardos?
Por que me abandonaram as divindades?
Odisseu de trêmulos e vagos passos,
por que tudo em ti é fatalidade?
O peso da idade me consome,
tal como ao leal amigo Argos.
Quiçá as forças não me abandonem,
quero voltar a retesar o arco,
ser Odisseu caído, mas Homem,
e reerguer-me sublime e cauto. p. 82
ESTRANHOS DIAS
Estes estranhos dias
de inexplicável desassossego
em que tantas incertezas
insistem aninhar-se no peito,
revirando antigas chagas
e plantando raros medos
eivados de mistérios,
tingidos de segredos
em telas frescas
de insanos impropérios
que o pensamento grita
à alma devassa e aflita?!
Estes raros dias
são rios de tormentos,
são furos densos,
onde meu olhar náufrago
por temores debilitado
se agarra aos fios de esperança
que flutuam em água turva
da enxurrada que avança;
enquanto travo intensa luta
para não afogar-me
neste revoltoso submundo,
que por ora me sucumbe,
nestes tristes estranhos dias... p. 92
SÚPLICA A IARA
Iara, leva-me contigo!
Não sou feliz aqui.
Encanta-me com teu canto
pois sei que lá não há pranto...
Não, não sou daqui.
Leva- me contigo, Iara!
Cansei deste mundo raso.
Prefiro teu mundo de águas,
rio profundo, sem as mágoas
que desafinam, amiúde, meu trovar.
Escuta, Mãe-d’água, meu lamento
e manda a resposta pelo vento
onde me possa alcançar teu canto.
Vem, não te demores a chegar
porque posso enlouquecer, definhar.
Sei de tuas oníricas artimanhas,
sereia da tribo guerreira Amazonas!
Só a ti narrarei as patranhas
que esta vida de cá me faz contar!
Iara, cuida, não te entretenhas!
O sol já se põe, aproveita a hora
que corre no remanso da boca do rio
e enche meus olhos de pororoca.
Não tardes, Iara, tenho vazios
carentes de tua suave e rouca voz...
Espero-te, doce Iara, loucamente!
Necessito beber de tua fonte,
lançar-me num salto demente,
tocar-te e beijar-te meiga fronte
no afã de fugir deste mundo doente. p. 117
RITO
Eu que já viajei tantas águas,
que conheço os segredos
do rio profundo, o canto da Iara,
os mistérios e encantamentos
do Boto sedutor e da Boitatá,
a cordialidade do Tucuxi,
o arrepio do canto da mata...
Sou incapaz de conhecer
teu dissimulado riso
de louca Mona Lisa!
Eu que miguei tabaco
meloso e melado pro Matinta,
tomei cachaça e proseei,
no toco do pau, com o Curupira,
descobri o enigma do Acauã,
pássaro agourento,
a boca da noite escondida
no caroço de tucumã,
o gosto do café oferecido
pelas mãos da simpática
Anciã da cacimba...
Ignoro teus desejos!
Perco-me na superficialidade
do teu dissimulado olhar!
Por que te escondes
e te camuflas em meus beijos?
Ainda invadirei teus anseios
e visitarei teu limbo,
matarei teu cão de guarda,
e com sangue pactuarei
com tua alma de cunhã
e descobrirei teus mais
íntimos segredos muiraquitãs... p. 121
POROROCA
Minhas águas são rios
que fluem loucamente
em tua direção, com ânsia
de, na tua praia, quebrar-me.
Sou maré alta e quero banzeirar-me,
violentamente, em teus braços.
Sou o estrondo abrupto
das impetuosas ondas
aniquilando silêncios de outrora.
Desejo sitiar teus castelos de areia
e adonar-me de todo teu reino...
Lançar-me em cavalgada ligeira
como se fosse vez derradeira.
Porque o céu é o limite de amar
e o amor tanto nos importa...
Quando o meu rio encontrar
com tua delirante preamar
vai ser linda a nossa pororoca! p. 123
RIMAS DE REMANSO
Se teu olhar me abraça,
entrego-me com graça
a este rebojo de paixão.
Teu verso, chispa roubada,
acende-me de tesão!
O remanso de teu beijo
é correnteza de prazeres
derrubando barrancas
em ritmo piracema
de poesia ou de poema!
Teu banzeiro remansoso
desata desejo viçoso
na água doce de riso-mar.
Teu toque passeia manso
em rimas de meu remanso!
Tuas mãos são malhadeiras
que me pescam sem cessar
nas correntes fagueiras
do rio profundo de teu olhar
e no verso doce a fervilhar!
E se eu perdesse a rima,
esta brisa que me inebria,
meu rio triste secaria...
Mas teu verso líquido
enche-me de rio-mar!
E se eu perdesse a rima
o amanhã choraria...
Mas o teu sorriso
deságua poesia
em meu ermo rio! p. 124
BÊNÇÃOS
A Nelci Cortezão.
Por que aquele vento de outrora?
e essa chuva lá fora?
Filha, o vento leva embora
a tristeza que se chora.
Leva todo o sofrimento
para além do firmamento!
Essa chuva que cai agora
traz a paz como quem ora.
Empapa o coração de esperança.
É amor, é bonança!
Mãe, e aquele rio, para onde corre?
Não descansa? Nunca morre?
Aquele rio corre para o mundo...
Com a força de um moribundo
sem pressa de chegar
mas com muitos caminhos a alcançar!
Seu corpo caudaloso
leva o sonho duvidoso,
rega a vida entristecida
de amores e poesia!
Filha, se eu fosse aquele vento
levaria, longe de ti, todo lamento.
te cercaria de bênçãos,
te guiaria até o firmamento
sempre com divinas mãos!
Se eu fosse essa chuva,
regaria tua vida de doçura,
sazonaria teu caminho de doce Ventura
para teu jardim sempre florir!
Se eu fosse aquele rio,
te banharia a vida de leve frescor
tal qual matinal rocio
e te guardaria na Paz de Nosso Senhor!
Filha, quando minha ausência se fizer,
clama ao Vento, à Chuva, àquele Rio!...
Ainda quando eu não mais estiver,
serei a benigna sombra no teu caminho! p. 131
JEITO TUPEBA DE SER
Sabe esse ar lisonjeiro,
esse sorriso faceiro,
essa mirada impactante
que marcam meu semblante?
É o puro jeito Tubeba de ser!
Trejeitos de curumim-cunhatã,
Detêm segredos do Muiraquitã
das belas guerreiras Amazonas
e que de doçura a alma cabocla sazona.
É assim o jeito Tupeba de ser!
Essa tez de um moreno cobreado,
esses olhos negros e puxados,
esse sotaque particular e ligeiro
de aspectos enigmáticos e corriqueiros,
É apenas meu jeito Tupeba de ser!
Delicioso açaí com tapioca na cuia,
banho de rio pra ficar só de bubuia.
O que preciso tiro da minha cumbuca.
Pra vida, estou sempre de butuca.
Do rocha, ach’é fraco o jeito Tupeba de ser!
Pelas ruas e calçadas da cidade,
bodó assado na brasa, às seis da tarde,
regado ao molho de pimenta murupi,
com muita farinha-ova do Uarini.
Égua, maninho! Que jeito Tupeba de ser!
Na rede, aquele cochilo porreta,
depois de comer um tambaqui maceta.
Outro melhor El dourado não há
mas se houver é só mesmo de agá!
Porque genuíno que só e pra valer
é só esse jeito Tupeba de ser! p. 145
CORTEZÃO, Marta. Banzeiro Manso. Gramado: Porto de Lenha, 2017.
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