domingo, 17 de novembro de 2024

PERI AUGUSTO: Catarina e outras estórias curtas de amor


























CATARINA

Peri Augusto

 

Libório ouvira falar muito da Zona Franca de Manaus. Contavam prodígios. Fazia-se fortuna do dia para a noite O dinheiro corria fácil como no apogeu da borracha. Por isso sonhava em mudar-se para o Amazonas. Até que um dia tomou coragem. Liquidou o pequeno comércio que mantinha e que pouco lhe rendia, em Itapipoca, no interior do Ceará.

Transferiu-se para Manaus com pequeno capital e a família, constituída da esposa Catarina e dos filhos Francisco, Vicente e Bárbara. Tão logo chegou, estabeleceu-se com armarinho, na Rua dos Barés. O negócio não dava para fazer for- tuna. Mas quebrava o galho e oferecia melhores compensações do que no sertão cearense.

Se prosperou no comércio, Libório não foi bem de saúde. Velha e mal curada hepatite, contraída em sua terra, voltou a se manifestar, deixando-o em precárias condições físicas. Catarina revelou-se, então. Tomou a frente do armarinho e mostrou-se tão eficiente como no lar.

Quando Libório foi chamado para o reino do outro mundo, antes de completar um ano na capital amazonense, Catarina fez-lhe o enterro. Sem muitas lamúrias e poucas velas. Dedicou-se com o auxílio dos dois filhos ao negócio da Rua dos Barés. Quem a observava de longe, sem verter lágrimas e sem lamentar a morte do marido, julgava-a leviana. Sem sentimentos. Mas interiormente sentia a falta do esposo e mantinha-se fiel. Cultivava uma fidelidade fanática ao falecido.

Apesar de moça e em condições de contrair segundas núpcias, pois atrativos não lhe faltavam, ela empregava-se de corpo e alma aos negócios comerciais. Eram a sua e a sobrevivência dos filhos. As reclamações do sexo muito frequentes ela as sufocava com chá de erva cidreira, receita que aprendera em sua terra de origem como calmante.

Catarina não via a vida passar. Só olhava para seu comércio. Pechinchava o preço das mercadorias, quando ia comprá-las, nas importadoras e vendia-as no varejo, com grande margem de lucro. Às vezes ganhava cem por cento. Os fornecedores, dada a seriedade dela nas transações comerciais e da admiração que inspirava, desde que o marido morrera, concediam-lhe favores. Davam-lhe prazos dilata- dos, fora das normas. Catarina era entretanto de pontualidade exemplar. Antes da data de vencimento de um título, liquidava-o. Sob suas rédeas o armarinho progredia mais do que nas mãos do finado Libório.

Se era rígida no mundo dos negócios o era mais ainda na disciplina familiar. Os dois rapazes trabalham com ela no armarinho. A filha encarregava-se dos afazeres domésticos. Francisco, o mais velho, que já atingia a maioridade, não ousava sequer fumar um cigarro na frente dela. Os métodos de Catarina eram censurados. Acusavam-na de retrógada e de viver no século passado. Dura e inflexível. Não admitia que se imiscuíssem na sua filosofia de vida.

Se alguém a aconselhava a botar Bárbara na escola, moça que tinha apenas rudimentares conhecimentos de leitura adquiridos no grupo escolar de Itapipoca, respondia que mulher devia ser educada na dureza do lar para saber tratar do marido quando casasse. Se faziam alusão ao procedimento dos filhos com as moças do bairro, mandava que “amarrassem suas cabritas porque seus bodes estavam soltos”. Era uma parada a Catarina!

Chamavam-na pejorativamente de “Paraíba”. Mas ela não ligava para o que dela dissessem. Só se preocupava com o armarinho e a família. Não tinha satisfações a dar a ninguém. Nem aos parentes do Ceará escrevia. Aos domingos, à noitinha, com Bárbara na frente e os outros filhos atrás, dirigiam-se à igreja para ouvir a santa missa. E triste do filho que inventasse qualquer pretexto para não comparecer ao ofício religioso.

Bárbara no ardor dos seus dezesseis anos tinha certas ardências interiores. Muito mais violentas do que as reclamações sexuais da mãe. O pior é que desconhecia o chá milagroso para servir de lenitivo. Quando os ímpetos do sexo chegavam, principalmente quando antecediam os dias perigosos, ficava doidana, como que perseguida pelo demônio. Roçava-se pelos objetos e móveis da casa. No banheiro por ocasião dos banhos nem o sabonete livrava-a daquele tormento. Não havia calmante que lhe servisse. Um fogo abrasador. Não tinha coragem de expor suas perturbações à mãe para evitar o sermão costumeiro como acontecia com coisas menores.

Estava Bárbara num desses dias de angústia, quando teve que ir à quitanda, na esquina da rua onde morava, a do Rosário, no Bairro de São Raimundo. Ia comprar as frutas recomendadas pela mãe. No caminho encontrou um motorista de caminhão que pilheriou com ela. Gostou do galanteio, mas fez-se indiferente. Na volta tornou a encontrá-lo e ouviu novos gracejos. Riu e prosseguiu no seu caminho. No fundo achou o moço bonito e sentiu-se lisonjeada por despertar desejos.

O motorista, de nome Romualdo, natural de São Paulo, estava com seu “Mercedes” no conserto, numa oficina da Rua do Rosário. Como o trabalho demorou mais de uma se- mana, teve tempo de informar-se sobre a vida solitária de Bárbara. Ficou conhecendo-a em todos os detalhes. Enquanto a mãe e os irmãos trabalhavam na Rua dos Barés, ela ficava em casa, sozinha. Diante das informações, sob o pretexto de pedir um copo d’água, Romualdo bateu à porta da casa. Não se sabe explicar se por inexperiência ou se por ingenuidade. Se pela lábia do motorista ou se pelo fogo que a consumia. O certo é que a moça ficou enfeitiçada por Romualdo. Três dias depois, enquanto aguardava o conserto do carro, o paulista se insinuou e terminou frequentando a casa como se fosse íntimo. Nem a advertência do pessoal da mecânica sobre a ferocidade de Catarina fê-lo recuar. Bárbara que em parte tinha o temperamento voluntarioso e decidido da mãe, entregou-se ao paulista e acalmou as comichões do sexo.

No dia em que o caminhão ficou pronto, Romualdo viajou para São Paulo. Levou Bárbara em sua companhia. Quando se soube da fuga, se grande foi a surpresa, maior foi o escândalo. Na rua não se falava noutra coisa. Mais por pirraça à mãe de Bárbara, uma vizinha narrou posteriormente as visitas e a fuga a Catarina. Esta ficou com mais raiva dela do que da filha por não lhe ter revelado os fatos antes. Guardou a mágoa no âmago do coração e com o desgosto e a vergonha ficou mais trancada do que era.

Decorrido um mês da fuga, Catarina recebeu carta de Bárbara. Narrava suas desditas. Dizia ter sido seduzida por um homem casado que a abandonara no município de Dourados, em Mato Grosso. Só não estava passando fome porque empregara-se como doméstica numa casa de família. Confessava-se arrependida e pedia para voltar. Após a leitura da missiva passou-a aos filhos. Sem dizer uma palavra de comentário. Depois de lê-la, no conhecimento da dramática situação de Bárbara, o mais velho sugeriu: Mãe, vamos buscar a mana.

A coitadinha tá sofrendo ponderou o mais novo. Não foi a resposta fria e seca de Catarina. Se ela nasceu para quenga, quenga será.

E não admitiu que se tocasse mais no assunto.

 

AUGUSTO, Peri. Catarina e outras estórias curtas de amor. Manaus: Editora Calderaro, s/d. p. 7-12

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

SE EU TIVER DE MORRER: Refaat Alareer

SE EU TIVER DE MORRER

Refaat Alareer (1979-2023)

 

Se eu morrer,

você tem que viver

para contar a

minha história

para vender as minhas coisas

para comprar algum papel

e alguns fios,

para fazer uma pipa

(que seja branca com uma longa cauda)

para que uma criança,

em algum lugar de Gaza,

olhando o céu

nos olhos

esperando por seu pai que

se foi numa chama

sem se despedir de ninguém

nem mesmo de sua própria carne

nem mesmo de si mesmo

veja a pipa, a minha

pipa que você fez,

voar lá no alto

e pense por um momento

que um anjo esteja ali

para trazer de volta o amor.

Se eu morrer,

faça com que eu traga esperança

faça com que eu seja uma história!

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Tradução: Luisa Rabolini

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O poeta palestino Refaat Alrareer foi assassinado por um bombardeio israelense em 6 de dezembro de 2023.

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Poema publicado originalmente: Se eu morrer, faça que eu seja uma história. Poema de Refaat Alrareer - InstitutoHumanitas Unisinos - IHU

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

ALDISIO FILGUEIRAS: Ai de ti, Manaus

 
AI DE TI, MANAUS

Aldisio Filgueiras

 

Ai de ti Manaus:

                    tu viste

na televisão

             o crime

suprir

             tua lei

-- no teu olho --

          & preferiste

voltar

          as costas

para o rio

                    & a floresta

           & riste

& te chamaram sorriso

                             & riste

           ...Deus dá o riso

a quem não tem dentes...

                      (...o riso...

                      & não o ciso...)

& riste!

                      De quê Manaus?

                     Decidi

ser didático contigo:

                     Muitas

cidades já foram devoradas

pelo fogo

           & pela água

& pelo vento

           & pela terra

& pela...bala...

           & pela peste

                     Muitas.

                     Tu não:

depois

            de um porre

no Bar do Armando

                     em qualquer

poste tu estás

                     qualquer

& o teu rancor

                     de pobre

 

porto de lenha:

a província

           se defende

                     como pode.

Entre o porto

                      & o aeroporto

a retórica dos hipócritas

           desfila

a fome das favelas

                      em fila única.

 

Mas tu cagas pra isso.

 

“Quem vencerá:

           o ovo ou a galinha?”

 

& te chamaram equívoco, Manaus.

 

                      Ai

de mim de mim

                poeta

     menor

em prosa

    com o mundo

-- que será de ti?

-- o que é de mim?

Perco o fôlego

                     & logo & logo

os olhos leigos

                     -- curto triscar --

         surpresa

de taxistas

         furiosos

com a vida &

         mulheres &

crianças

          -- malditos idiotas --

sem crédito

          & sem dúvidas

na chacota dos boçais.

Ai de ti Manaus.

                   Um simples

cisco de rio

                   no teu sistema

         viário

                   nada demais

um risco simples de giz

 

                mas não Manaus.

 

Negas-te

          & te basta.

Quando te dás

          és outra.

& te bastas.

             Já capitulaste

tantas vezes

             que a próxima

não te fará

             nenhuma

vergonha na cara.

 

Ninguém te amou mais de uma vez.

& se disseres:

 

-- por que não outro sítio que não eu...

-- de tantas caras & máscaras é impossível

           fugir de ti sem encontrar-te em cada

esquina de aeroporto & polícia rodoviária

:

a última vez

                    -- conta um signatário

anônimo: foi

                    a que jurei estar livre!

otário!

 

& mais não disse

          não disse, Manaus

mas lhe foi perguntado.

Todo descuido

           em ti será

fatal, Manaus.

           Espremeste

todas as seringueiras

& oprimiste

            todos os seringueiros

que o Nordeste

            não teve tempo

quente o bastante

                 para queimar.

& extraiste

          látex

& extraiste

          sangue

& extraiste

          divisas

& extraiste

          sonhos

& vaudevilles

          & foste produzir

pneus em Detroit

          & guerras

neuróticas na Europa.

& se eu

          acreditasse

mesmo em Deus

                      rezaria

que ele estudasse

                      mais geografia

& te descobrisse

                      aqui onde estás

encolhida & devassa

                      & te bombardeasse

nem que fosse

           com uma nuvem

enxuta de Chernobyl

           sobre os legumes

que vêm de São Paulo

           alimentar

de cadáveres &

           filmes

de Spielberg

           tua produção

de informática.

Mas o anjo

           não me diz

nada. Deus?

           Arcanjo?

Quê -- senão

           o nada

dimensionado?

 

Mas tu cagas pra isso.

 

                      Massacraste

os teus poetas &

                      pintores

& músicos & malucos

de todos os matizes

-- os que mais te amaram --

com discursos

& crimes pós-barba

                      & piadas obscenas

& quadros & romances

                      que só tu

superas em ficção

                      & maldade

Ouve a pobreza

           dos teus

bairros Manaus.

           Eles comem

lixo & tu vestes luxo.

Eles querem viver

           & ensinas

lições suicidas

           desde a Baixa

Cachoeirinha

           -- onde quintais

viram danceterias

           & os igarapés

estão bêbados de

           neon & mercúrio.

Sim: eles querem viver.

Mas o ônibus

           fede & os sovacos

& as bocetas

           & os homens bebem

movidos a ódio cru

           para sonhar

mas o sonho fede

           & tu cagas pra isso.

Ai de ti Manaus

           não venhas chorar no meu ombro.

 

FILGUEIRAS, Aldisio. Manaus – as muitas Manaus. Manaus: Edição do Autor, 1994. p. 71-90

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

ADONAI DE MEDEIROS: Jamachi: coisas da Amazônia

Jamachi: coisas da Amazônia, 1934.

 

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UMA EXPLICAÇÃO

Não sou candidato à Academia de Letras. Tampouco ao prêmio Nobel. Nem quero ser membro de Juri... Os contos são meus. Assunto da minha terra – o Amazonas. É regionalismo puro. Alguma fantasia. Quem achar que poderia sair melhor tem um recurso: as livrarias vendem papel, tinta, lápis, máquinas de escrever e outros artigos de que se servem os escritores sente à mesa e escreva... Se não tiver dinheiro para comprar o material suficiente – exceto a inteligência – venha a mim que eu forneço. Contanto que venha para a liça. Se não agradarem ao leitor, tenho a dizer que os contos são filhos desta coruja que sou eu. Eu os achei bons, ótimos mesmos. Por mim, estou contente. Sou muito egoísta.

 

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AS POMAS DE IACI

Adonai de Medeiros

 

Logo que a montaria encalhou na praia, à entrada do lago, arregaçamos as calças e nos dirigimos ao velho caboclo que recolhia num paneiro as raízes de macaxeira.

Estávamos dentro do grande lago em Manacapuru e tratávamos de aproveitar aquele chorrilho de feriados e dias santos que os primeiros dias de Novembro nos concediam, procurando passá-los da melhor maneira. Uma digressão pelas casas à margem do enorme lago era agradável e, por isso, pedimos uma canoa por empréstimo ao coronel Juvêncio, dono do barracão onde nos hospedamos e nos metemos à folia.

Éramos ao todo cinco: o Pimenta, que a par de boa voz tocava magistralmente o cavaquinho; o Salles, que reunia ao vezo de exímio bebedor de “Janauacá” o de bom violão; o Almeida, emérito no fazer soar o caracaxá; o Oliveira, que se fizera notável na harmônica, e eu, que brilhava por não saber nem cantar nem tocar, acompanhando-os nas repetidas saudações às garrafas da famosa aguardente amazonense.

Ao nosso cumprimento o caboclo respondeu com um “bom dia” acompanhado de um gesto à aba do chapéu de palha e, amarrando com umas embiras as bordas do paneiro, levantou-o ao ombro e conduziu-o para a barraca na terra firme. Acompanhamo-lo e, gente da cidade, curiosa, crivamo-lo de perguntas sobre o lugar e suas lendas. Ele, vergado ao peso do paneiro, cuspinhando para os lados, remexendo na boca a masca de fumo, respondia à nossa fala, com aquele jeito peculiar de quem envelheceu ao contato da natureza selvagem e maravilhosa do vale.

Entrando na tosca residência, toda de palha, ordenou à mulher nos servisse café batido ao pilão, e enquanto o saboreávamos, aromatizado com cravo, ele, cedendo à nossa insistência, começou a narrar uma das muitas lendas que os seus ancestrais lhe legaram:

– Foi ali, moços, no outro lado, e há muito que se passou, foi naquela margem onde está a tapera do Pedro Jerômo, aquele que matou a mulher por falsidade. Houve aqui nestas terras uma tribo de índios. O tuichaua, o velho Kemembaua, morreu há cinco anos; tinha uma filha, Iaci, linda entre todas as tapuias, de cabelos e olhos tão negros como as noites de tempestade; os seios turgidos davam a impressão de flechas retesadas num arco.

Toda a mocidade guerreira da aldeia desejava-a por esposa e era com ansiedade que esperava a celebração da sua puberdade. A maloca inteira venerava-a; sendo a sua palavra um oráculo, como me disse o velho pajé Muipiraua: uns diziam que o Grande Espírito a tinha feito nascer da Lua com o Sol; faziam-na outros gerada da Noite com o Dia.

Certa manhã em que ela se banhava no igarapé que fica atrás daquele cumaru, mostrando aos olhos invisíveis de Tupã o esplendor do seu corpo moreno, um branco, um viajor incumbido da catequese dos silvícolas, apareceu e, sem que ela pudesse evitar a insânia que sua beleza causara ao aventureiro, furtou toda a ventura do tapuio escolhido para seu marido...

Kemembaua, cientificado da afronta infligida à filha, lança o seu “Hi-o-há” de guerra, dardeja do arco e põe-se no encalço daquele que a maculara. O branco, sabedor do ódio que o seu ato motivara entre aqueles que tinha por dever chamar à civilização, tratou de fugir para lugar onde a ira dos ofendidos não o alcançasse. Vendo baldados os esforços para a captura do catequista, Kemembaua aplicou à filha, vilipendiada, a lei da tribo: sujeitou-a ao suplício de lhe cortar os seios.

E, sob a revolta que tal cena despertava na gente que a adorava, revolta velada pelo respeito aos desígnios do chefe, vindo através dos tempos, até eles, Kemembaua os lançou na água parada do lago. Muipiraua repetiu-me as palavras que proferiu:

– Iaci sofre porque branco fugiu.

Assim, o ídolo da maloca, com o peito em chaga, expirou a castigo tão cruel...

 

MEDEIROS, Adonai de. Jamachi: coisas da Amazônia. São Paulo: Gráfica São José, 1934. p. 9-12

 

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*Acerca de Adonai de Medeiros não foi possível encontrar quaisquer referências biográficas, além da que diz ser do Amazonas, no início da obra.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

QUATRO MOVIMENTOS: Luiz Bacellar

Quatro Movimentos, o terceiro livro do poeta amazonense Luiz Bacellar (1928-2012), publicado pela Editora Artenova, em 1975, do Rio de Janeiro. Com prefácio de L. Ruas e ilustrações de Van Pereira.

 

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VII

 

Uma rosa de sal, entretecida

de mágoa, de pavor, de angústia e espanto,

por espinhos de gelo guarnecida,

foi se lavrando ao longo do meu canto!

Uma rosa de sal! Não fenecida,

pelas salobras lágrimas, que enquanto

cantei fui derramando, foi nascida

como estalagmite do meu pranto.

Uma rosa de sal! Ai quem pudera,

nessa corola branca constelada

de brilhos claros, de perenes lumes,

ver todo o sentimento que a fizera

sem contudo a tomar, menos amada,

por rosa dolorosa e sem perfumes? p. 21

 

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VIII

 

Rosa do mar! Se o mar tivesse rosas...

Rosa do céu? Se o céu também tivesse

e uma estrelar corola compusesse

de fluidas lactescências vaporosas.

Rosa de lumes claros, de olorosas

opalescências, ciciar de prece

erguida à Virgem pelo que padece,

para tecer grinaldas luminosas!

Ó rosa de impossíveis... transparências

que minha mente cria e que minh’alma

procura nos espaços siderais!

Ó rosa de purezas e inocências,

rosa da fé, rosa da paz, da calma,

rosa do além, rosa do nunca mais... p. 22

 

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IX

 

Essa rosa farpada, essa reouvida

rosa inconsútil plena em ressonâncias,

essa é a rosa dos ecos de uma vida

feita em procura dela em fundas ânsias;

essa rosa que dói mas que é amada

assim mutável, desassossegada

girando em chamas com seu rubro lume

de redolente cor, claro perfume,

é rosa mais na dor, mais na vivência,

mais no vibrátil som que é sua essência:

deslumbramento de um destino adverso;

essa rosa contínua e ressonhada,

por pétalas de pálpebras formada,

é rosa renascida em sono e em verso. p. 23

 

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XIX

 

Esta lua é a dos loucos. E eu pressinto

que vizinho já sou dessa loucura...

No entanto sinto quanto a noite é pura

com um diurno sentimento de que minto

sorvendo o azul e trágico absinto

do luar: me garimpando na procura

de uma razão de ser... (Essa tortura

de pressentir o louco que em mim sinto!)

Luar peripatético e falaz,

deambulatório luar, atro e minaz:

versos contados por passadas lentas.

Pelo meu ritmo interior levado

eu vou compondo, a passo magoado

o poema. E enchendo as horas lutulentas. p. 34

 

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XX

 

O meu verso é um fragor: desmoronar -

me sinto quando escrevo. E o ruído é tanto

que vou com passo incerto no meu canto

como se caminhasse à beira-mar

num dia de ressaca sob um luar

como o de agora (a via-láctea é um manto

salpicado de sal, de prata e pranto)

em que as horas se esquecem de passar.

Meu verso é um natural correr de pena

que rasga, que destrói, mutila e mata

minhalma que é de espuma e de verbena:

é um vestido deixado sobre a cama,

vazio de um corpo amado. E me arrebata

no vácuo intenso do meu próprio drama. p. 35

 

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XXXIII

 

Nos meandros do verbo abrindo as claves,

supremas solidões de angústias tensas

num denso tumultuar de asas imensas

de sombras vivas em revoadas de aves,

guardas as mais recônditas sentenças:

negros silêncios de pesadas chaves,

marulho surdo de perdidas naves,

proas rompendo o duro mar que pensas...

Mar de secos sargaços e de ossuários

com as amplas solidões, vastos silêncios

das planuras mortais do irrevelado,

arcabouço de sonhos refratários

que, alta corola calcinando-os, vence-os

o sol do espanto, lívido e nevado. p. 49

 

BACELLAR, Luiz. Quatro Movimentos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. p. 21-23