Leila Jalul
Ela saiu do mar da
Paraíba num navio caindo aos pedaços, na ala destinada aos sem classe. Chegou
de pernas inchadas pelas horas passadas no porão. E aportou num desses
seringais, com um marido que de pouco lhe valia, duas filhas pequenas, uns
contados vestidos, alpercatas e fotos das pessoas queridas.
Mulher
de têmpera, dessas que não fraqueja diante de qualquer pé de vento. Tiradas
rápidas e certeiras para qualquer situação. Fossem alegres ou tristes os fatos
ou os envolvidos, sempre uma sabedoria na ponta da língua. Nem era sumo de
bondade e paciência, nem poço de maldades. Tinha lá seus dias de avesso.
Pouco
afeito aos trabalhos pesados de seringais, Seu Mulato, como era chamado o
esposo, logo deu as costas para a família. Sobrou para a mulher trabalhar que
nem demente e aguentar firme e forte os abusos dos seringalistas.
E
foi então que a mão divina lhe amortiza o peso. Vai-se a primeira filha,
empestiada pela varíola. A segunda, que ainda lhe era onerosa, foi pro reino de
Juramidan, recebida com festas. E Dona Otília continuou vivinha. Tinha contas
para acertar, tinha tarefas para dar acabamento, tinha defeitos para
endireitar.
De
seringal em seringal, até chegar a ver as luzes da capital. Com o ofício de
costureira, bate à porta de um comerciante próspero, libanês do Líbano (turco
era a puta que pariu!).
O
velho ainda fazia as vezes de regatão, junto com seu sócio, Manoel Julião.
Prato feito para os sócios, pois, além de tabaco, mixira, fósforo, vela,
quinado, vermute, querosene e outras coisas de primeira necessidade, levavam
confecções do atelier montado pela nova empregada.
Não
sei não, mas tenho a impressão que essas medidas intermediárias hoje usadas
(PP, MM e GG), foram descobertas e nomeadas por ela. Os gabirus eram diferentes
do padrão americano. Eram baixos e gordos ou baixos e magros. Pernas
normalmente cambotas, barbas ralas e sorrisos largos quando esqueciam as
mazelas.
Agora
sim, as festas seriam mais bonitas. Calças de gabardine cáqui, camisas de risca
de giz, muita seiva de alfazema garrão, um bom conhaque, e todos felizes. Os
seringais Barro Vermelho, Pontão e Calafate tinham os arigós mais bem vestidos
e mais sedutores da paróquia.
O
sírio-libanês bem que sabia que aquela dona ia ser sua. Já separado da primeira
mulher, com quatro filhos, de 11, 12, 13 e 15 anos, tinha que dividir com
alguém a criação daqueles entes. A costureira não era de todo feia, porém
infinitamente menos bonita que a primeira, com quem casou quando esta tinha,
apenas, 12 anos e, com 13, lhe causou o infortúnio de ter uma filha mulher.
Essa não vai me dar trabalho!
Do
status de costureira, subiu muitos degraus. Agora tinha dono e sobrenome. E com
ele viveu, feliz, pelo que parecia. Ele, com a exigência de bem ser servido;
ela com a preocupação de bem servir. Aprendeu rudimentos de árabe e manejava um
velho ábaco com habilidade de chinês. Coisa bonita de ver! Somar e multiplicar
eram suas operações favoritas. Segundo a filosofia, dividir e subtrair, disso a
vida se encarrega, repetia sempre.
Somou
e multiplicou. Ajudou a todos, inclusive os indignos. Já anciã e muito doente,
apenas a enteada mais velha tinha tempo para, todos os dias, passar para
asseá-la e alimentá-la, não sem antes pedir:
–
Sua bênção, madrinha.
Pediu
para ouvir o trecho de uma música (“... e lá no outro mundo, em vez de inferno,
encontre glória, e que apague de minha memória o quanto sofri”), tomou um copo
de leite e dormiu.
Percorreu
todo o rio da sua vida com paciência de monja budista.
*Publicado originalmente no site Lima Coelho.
3 comentários:
É,...antes de tudo nota-se que ela era um forte...
abç
Emocionante,eu queria que todas as mulheres do Brasil tivessem acesso a esse texto.
Em alguns blogs lemos tanta bobagem, poesias sem sentido algum...
Parabéns por esse cantinho tão agradável!
Um beijo da carioca Mery*
Se tiver um tempinho, me visita e dá uma opinião lá no meu último post, a "realidade do Rio de Janeiro", uma grande favela.
Não existe uma palavra para traduzir, transcende a carne, quem sabe em outra dimensão...
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