quinta-feira, 6 de outubro de 2011

NÃO APRESSE O RIO

Leila Jalul

Ela saiu do mar da Paraíba num navio caindo aos pedaços, na ala destinada aos sem classe. Chegou de pernas inchadas pelas horas passadas no porão. E aportou num desses seringais, com um marido que de pouco lhe valia, duas filhas pequenas, uns contados vestidos, alpercatas e fotos das pessoas queridas.
Mulher de têmpera, dessas que não fraqueja diante de qualquer pé de vento. Tiradas rápidas e certeiras para qualquer situação. Fossem alegres ou tristes os fatos ou os envolvidos, sempre uma sabedoria na ponta da língua. Nem era sumo de bondade e paciência, nem poço de maldades. Tinha lá seus dias de avesso.
Pouco afeito aos trabalhos pesados de seringais, Seu Mulato, como era chamado o esposo, logo deu as costas para a família. Sobrou para a mulher trabalhar que nem demente e aguentar firme e forte os abusos dos seringalistas.
E foi então que a mão divina lhe amortiza o peso. Vai-se a primeira filha, empestiada pela varíola. A segunda, que ainda lhe era onerosa, foi pro reino de Juramidan, recebida com festas. E Dona Otília continuou vivinha. Tinha contas para acertar, tinha tarefas para dar acabamento, tinha defeitos para endireitar.
De seringal em seringal, até chegar a ver as luzes da capital. Com o ofício de costureira, bate à porta de um comerciante próspero, libanês do Líbano (turco era a puta que pariu!).
O velho ainda fazia as vezes de regatão, junto com seu sócio, Manoel Julião. Prato feito para os sócios, pois, além de tabaco, mixira, fósforo, vela, quinado, vermute, querosene e outras coisas de primeira necessidade, levavam confecções do atelier montado pela nova empregada.
Não sei não, mas tenho a impressão que essas medidas intermediárias hoje usadas (PP, MM e GG), foram descobertas e nomeadas por ela. Os gabirus eram diferentes do padrão americano. Eram baixos e gordos ou baixos e magros. Pernas normalmente cambotas, barbas ralas e sorrisos largos quando esqueciam as mazelas.
Agora sim, as festas seriam mais bonitas. Calças de gabardine cáqui, camisas de risca de giz, muita seiva de alfazema garrão, um bom conhaque, e todos felizes. Os seringais Barro Vermelho, Pontão e Calafate tinham os arigós mais bem vestidos e mais sedutores da paróquia.
O sírio-libanês bem que sabia que aquela dona ia ser sua. Já separado da primeira mulher, com quatro filhos, de 11, 12, 13 e 15 anos, tinha que dividir com alguém a criação daqueles entes. A costureira não era de todo feia, porém infinitamente menos bonita que a primeira, com quem casou quando esta tinha, apenas, 12 anos e, com 13, lhe causou o infortúnio de ter uma filha mulher. Essa não vai me dar trabalho!
Do status de costureira, subiu muitos degraus. Agora tinha dono e sobrenome. E com ele viveu, feliz, pelo que parecia. Ele, com a exigência de bem ser servido; ela com a preocupação de bem servir. Aprendeu rudimentos de árabe e manejava um velho ábaco com habilidade de chinês. Coisa bonita de ver! Somar e multiplicar eram suas operações favoritas. Segundo a filosofia, dividir e subtrair, disso a vida se encarrega, repetia sempre.
Somou e multiplicou. Ajudou a todos, inclusive os indignos. Já anciã e muito doente, apenas a enteada mais velha tinha tempo para, todos os dias, passar para asseá-la e alimentá-la, não sem antes pedir:
– Sua bênção, madrinha.
Pediu para ouvir o trecho de uma música (“... e lá no outro mundo, em vez de inferno, encontre glória, e que apague de minha memória o quanto sofri”), tomou um copo de leite e dormiu.
Percorreu todo o rio da sua vida com paciência de monja budista.


*Publicado originalmente no site Lima Coelho.

3 comentários:

Palazzo disse...

É,...antes de tudo nota-se que ela era um forte...
abç

Mery disse...

Emocionante,eu queria que todas as mulheres do Brasil tivessem acesso a esse texto.
Em alguns blogs lemos tanta bobagem, poesias sem sentido algum...
Parabéns por esse cantinho tão agradável!
Um beijo da carioca Mery*
Se tiver um tempinho, me visita e dá uma opinião lá no meu último post, a "realidade do Rio de Janeiro", uma grande favela.

Jose J Jr. disse...

Não existe uma palavra para traduzir, transcende a carne, quem sabe em outra dimensão...