Momentoso assunto
este que a imprensa do Rio vem discutindo em torno à sábias deliberações do
Ministério da Agricultura no concernente à proteção aos silvícolas brasileiros,
não é de estranhar que “O Município”, por sua vez, abordando a questão, elucide
fatos que tão perto se prendem à história da catequese neste rio.
Avessos,
por princípios e teoria, à catequização do selvagem, atenta à rara proficuidade
colhida nas empresas tentadas, revolta-nos ver perdidos esforços, ver
interrompida, quiçá abandonada de vez, a obra tenaz, ingente de quem
abnegadamente se dedicou a catequizar, com surpreendente êxito, os índios
bravios do alto Tarauacá, Murú e seus contravertentes.
Queremos
referir-nos ao empreendimento vitorioso do sertanista Angelo Ferreira.
Para
quem moureja nestas paragens, que somente a hévea opulenta e a castiloa efêmera
dão vida e acenam à imigração com o reflexo verde-gaio de suas folhas e com o
oiro alucinante dos seus produtos, não ignora que há bem poucos anos o vale do
Tarauacá era infestado por hordas de aborígenes, que hostilizavam, a cada
passo, os seringueiros nos alcantis das selvas e os patrões à margem dos cursos
conquistados pela coragem e pelas contingências da vida.
Escorraçados
frequentemente pelo embate da civilização, os selvícolas aldeiaram-se, num
agrupamento inteligente de tribos aliadas, nas quebradas alterosas donde manam
e se controvertem os sulcos tortuosos, indefinidos quase, do Tarauacá, Jordão,
S. Salvador, Valparaíso, Liberdade, Gregório, Acuraua e Eiru por um lado e por
outro do Doiro, Muru, Embira e seus longínquos afluentes.
Foi
aí, nesse domínio exclusivo do aborígene em luta porfiada com os exploradores
audazes, que Angelo Ferreira iniciou o seu sistema de catequese conquistando
pela bravura e pelo ardil, pela cobiça e pela temeridade, as terras férteis do
ouro negro para a indústria extrativa e as malocas de obstinados selvagens para
o convívio da civilização invasora.
Isto
é notório e ninguém contestará que o destemido nortista era tido e obedecido
como diretor, o tuxaua supremo, das tribos – Colinas, do Apuanã, Catuquinas e
Uamináuas, do alto rio Gregório; Capanáuás, do Acuraua; Jamináuas, Caxinauás,
Paranauás e Araras, do Embira. Além destas o arrojado cearense tentava domar a
maloca dos Mainauás, cujos índios brancos de olhos azuis e cabelos loiros,
seriam um exemplar valioso para os nossos estudos americanistas, no concernente
à etnografia amazônica. Era uma das aspirações de conquista, além de outros
empreendimentos temerários de exploração e catequese, do extinto sertanista.
Pois
bem. Depois da tragédia do Sanango, há dois anos, em que baqueou para sempre,
insidiosamente, esse bandeirante Juruaense, fez-se a derrocada nessa obra de
esforço humano vitoriosa através de insuperáveis obstáculos de uma catequese
particular; dispersaram-se as malocas; tornaram-se nômades os índios
catecúmenos e a indisciplina alastrou-se e aguçou-lhes os instintos para a
selvageria indômita de outr’ora. Os ataques inopinados e bárbaros reapareceram:
no Embira toda a zona caucheira do alto curso conflagrou-se e o indígena,
revoltado, trucidou na alucinação da nevrose vermelha do ódio, saqueou,
expulsou centenas de extratores.
Relatando
estes fatos, ao correr da pena, temos em mira solicitar de s. exc.ª o Ministro
da Agricultura as suas vistas para o abandono atual dos aborígenes desta zona,
com detrimento para a civilização e comércio do Território.
Julgamos
haver no Departamento um diretor para os índios catequizados, mas se realmente
ele existe, suas funções, de certo, tem sido exercida em determinados
tributários do Juruá, que não o Tarauacá e seus afluentes. E não o censuramos
por sua ausência nesta região, porque conhecedores antigos como somos destes
remotos sertões, sabemos que um só diretor não se pode duplicar, duplicar-se
mesmo, para atender, inspecionar, prover e providenciar as exigências de tão
várias e dispersas tribos em afastadas malocas.
Ponderamos
a s. exc.ª com a devida vênia e acatamento ao seu alto critério e descortino
político na pasta referente à Agricultura e especialmente à Proteção aos
Índios, a nomeação de um diretor especialmente para agira no vale do Tarauacá.
Só
assim se não perderá tudo da campanha catequizadora de Angelo Ferreira, de
valiosos resultados para a etnografia do país.
Jornal O MUNICÍPIO,
Tarauacá-AC, 28 de abril de 1912, Ano III, N. 83, p.1
ÍNDIOS...
“Há
uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais
até ao infinito...”
Os
selvagens acreanos têm vivido em pleno ostracismo, na indiferença incontestável
das administrações centrais republicanas...
Os
próprios assuntos que fitam trazer em público, fugazes informe sobre eles, não
passam das pastas baralhadas dos escrevinhadores, e são, de ordinário,
preteridos pela cadência harmônica e rítmica dos versos, pelos períodos
empolgantes de prosas sadias e buriladas com caprichos de artista, pelos
comentários cruéis que as crônicas espalham com verve, ocultando nas
entrelinhas a intenção satírica do autor, pela discussão enfim de todos os
fatos da vida mundana, presos, já se vê, ao raio de ação de uma máquina
poderosa, que, automaticamente vai indicando o destino da humanidade – o Tempo.
E
falar de índios quando a coisa vai melhorando, a borracha prestes a
valorizar-se, quando os novos governos oferecem mais gordas prebendas... não
deve ser muito bom.
Reconfortados
então pelo repouso e pela fartura, todos, aglomerando-se em préstitos, vão
dobrar os joelhos num templo, cujas portas escancaradas parecem atrair – a
Ambição.
Neste
templo o tributo em vez de incenso e mirra desprende interesse, e o sino de
bronze, bimbalha incansável avisando o ritual do Egoísmo.
É
muito difícil mesmo, podemos dizer desassombradamente, achar-se nas colunas de
qualquer in-folio diário ou semanário, uma varia ao menos que traduza fatos que
se prendam aos aborígenes nacionais.
O
próprio Deus pareceu coroar-lhes o infortúnio, fazendo cair sobre as cabeças
destas criaturas infelizes, duplamente, a clamide fúnebre do esquecimento.
E,
como se houvesse uma prevenção inata e indesviável, uma ojeriza instintiva,
como vinda de berço, como se neste interregno da infância à adolescência, só
nos ensinassem árias anti-selvagens.
E
hoje, justamente, quando o Brasil todo se agita, do Chuí pequenino às margens
fecundas do Oiapoque, das nascentes esconsas do Javari ao extremo leste, num
frêmito de liberdade política e social, num estremecimento de força e de
conquista para o desiderato feliz de uma civilização radiante, era bem justa
que os próprios selvagens, arregimentados também à sombra do pavilhão
áureo-verde, participassem da monumental obra da unificação do sentimento
nacional, todos na ânsia insofreável de elevar o Brasil.
É
necessário portanto que a educação dos índios se opere de uma maneira frisante
e completa, que se prepare esta nova casta, visceralmente nacional, dentro do
aperfeiçoamento da ciência moderna, para engrandecimento desta pátria gigante.
Aperfeiçoada,
acomodada brilhantemente aos moldes de uma evolução progressista, nascerá de
certo um dos esteios mais poderosos para a consolidação da sociedade
brasileira.
Assim,
subsequentemente, e em muito maior escala, haverá a fusão das raças cultas com
as raças virgens, e segundo um grande pensador que costuma usar luvas brancas
ao grafar as suas reflexões no papel, “é no encontro das raças adiantadas com
as selvagens que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da
civilização”.
Impende
naturalmente ao governo transformar, num rasgo supremo de humanidade, a vida
dos selvagens.
Para
isso bastaria semear algumas escolas onde ministrassem o nosso idioma e a nossa
história; criar núcleos onde se fizessem experimentar noções da vida agrícola;
instituir processos práticos para melhoramento das indústrias indígenas.
Fazer
substituir o tacape pelo alfabeto, os “mariris” pelos livros, as tabas pela
pátria...
É
de lastimar, porém, o estado extraordinariamente atrasado do selvagem acreano
quanto a conhecimentos científicos.
Com
o desaparecimento dos caboclos velhos vão surgindo os novos, mais fortes, mais
inteligentes, propensos ao próprio ensino.
Um
espírito observador veria quanta arte aparece em suas vestes, quanta estética
em suas pinturas exóticas.
A
experiência, que a vida nos traz, indica-nos, sem contestação, que a compleição
intelectual dos índios não é defeituosa ou bronca, e se deixa de progredir é
somente por viver restringida entre a ignorância e o desprezo.
De
sorte diversa de alguns privilegiados, saídos das regiões inóspitas de Mato
Grosso, os nossos índios vão adquirindo conhecimentos a seu talante, por uma
força ingênita de progresso e adiantamento...
A
convivência dos nordestinos tem sido o principal fator para o incremento da
nova civilização, facilitando com novos métodos e sistemas novos, a vida primitiva
dos caboclos.
O
aborígene, hoje, é perfeitamente sociável, como também é francamente
hospitaleiro.
A
solidariedade é um princípio cegamente observado para a conservação e
estabilidade das tabas.
Elegendo
um “tucháua”, o chefe supremo da família, todos eles se adaptam às leis do seu
regulamento, numa plena fusão de vontades, sufocando os interesses pessoais em
bem da coletividade, numa ligação natural de ser a ser.
Apesar
da tendência estoicamente provada de alguns deles procurarem espontaneamente a
luz do ensino, mendigando lições, esmolando cartilhas, nunca se poderá chegar a
um resultado amplamente magnífico de um desenvolvimento intelectual.
Esquecidos
pelo próprio governo de sua pátria que se esquiva de lhes facultar o menor
auxílio, monetário ou industrial, os aborígenes acreanos, vão vivendo no mais
completo abandono, sem jamais poderem aperfeiçoar os seus processos elementares
de indústria.
O
nosso governo é porque vive a respirar atmosfera pesada de politicagem e
descalabros, sem querer ligar importância às nossas desventuras.
O
mundo culto, pelo menos, conhece ou antes sabe, que o índio José Cristiano, do
Estado do Amazonas, foi agraciado pela Inglaterra, com medalha de prata, à
vista de feitos heroicos praticados durante a grande guerra.
Na
música, a sublime arte de Mozart, na mecânica, na pintura, na escultura, em
todas as ramificações da arte enfim, os índios têm demonstrado revelações.
Que
o governo da República estenda até aos índios acreanos, particularmente aos
envirenses, o serviço da “Proteção aos Índios”, até há pouco sob a
superintendência do insigne patriota o general Candido Rondon.
Será
uma medida doce e humanitária, uma auréola de luz que circulará a estrela do
Acre quando tivermos a fortuna de sermos representados na flâmula nacional...
W. Valle Mello
Japão – Rio Envira
Jornal A REFORMA,
Tarauacá-AC, 2 de setembro de 1923, Ano VI, N.267, p.1
CORRERIA
Correria,
na acepção própria, significa: - invasão de inimigos, ação de correr para um e
outro lado ruidosamente; mas, também emprega-se para designar a perseguição do
homem civilizado ao homem bárbaro; a astúcia contra o ardil.
Sobre
a origem dos selvagens indígenas americanos se debatem em verdadeiras
controvérsias os nossos mais etnólogos.
Alguns os julgam
autóctones; outros, oriundos da Ásia, tendo se transportado à América quando
esta se achava ligada àquela, pelo estreito de Bering, então congelado.
Comparando-se,
efetivamente, um índio a um asiático, notadamente a um chinês ou a um japonês,
encontra-se uma perfeita semelhança de traços físicos, um mesmo cunho de
originalidade.
O
que é certo é que, muitos séculos antes de Cristóvão Colombo ter descoberto a
América e Pedro Álvares Cabral o Brasil eram estes, já, conhecidos pelos
navegadores antigos.
Quando
Pizarro e Fernando Cortês conquistaram aquele o Peru e este o México,
encontraram a civilização dos Incas e dos Astecas; e, o nosso país era também
conhecido pelos Fenícios uns 600 a 900 anos antes de Cristo.
Ou
originários da própria terra ou emigrados de um outro continente, são eles,
hoje, os habitantes dos vastos interlands ainda virgens de civilização.
Para
se ter deles uma ideia perfeita, um conhecimento completo, é preciso que os
conheça até nas menores idiossincrasias.
Para
eles o roubo não é mais que o suprimento de uma necessidade; matar – um
equilíbrio de forças e o resultado de uma vingança. Neles este sentimento é
nato; e, pensando-se bem, a vingança é tão necessária ao homem quanto a ambição.
Ter ambição não é dado a toda a gente diz Balzac: “A vingança é a ambrosia dos
Deuses”. na mitologia grega, Prometeu por ter roubado do Olimpo o fogo criador,
pagou, acorrentado ao Caucaso, tendo uma águia a devorar-lhe, constantemente, o
fígado, o seu crime; e, nos nossos dias, ainda vemos esta raça de Israel,
dispersa, proscrita, paira em toda a parte, estrangeira em própria pátria,
pagando ainda o crime de uma traição e tendo um símbolo:
Ashasoems
– e vivendo de um sonho que é uma lenda: – O Messias.
É
terrível a correria. Um traço de homens, 10, 15, às vezes mais, outras menos,
interna-se na floresta à caça do índio.
Acostumados
às intempéries do tempo, dormido ao relento, conhecendo, como os índios, a
selva e tendo como ele as mesmas artimanhas, mais intensos no ódio, mais cruéis
na desforra, ei-los caminhando dias inteiros, famulentos, ora alimentando-se
dos palmitos de certas palmeiras, ora das frutas silvestres, quando estas
abundam.
O
índio é desconfiado, mas não é precavido.
A
aproximidade de suas tabas – construções vastas, oblongas e toscas – é
denunciada pela grande algazarra, ouvindo-se à grande distâncias.
É,
então que os perseguidores tornam-se sombras, deslizando solertes,
imperceptíveis, parando ao ruído de um galho que se parte, de uma ave que
levanta o voo assustada, avançando ora de rastros, recuando ao menor
obstáculos, atentos, calmos e silenciosos.
Geralmente
o ataque se efetua pela madrugada, nessa hora em que os antigos bretões tão
acertadamente denominavam o pipular do dia.
A
noite, nas florestas amazônicas, infunde sempre, mesmo àqueles que estão
acostumados a estas arriscadas aventuras, um certo temor, embora que
passageiro.
A
mata abre-se em lantejoulas de luz; galhos e folhas secos tornam
fosforescentes, pirilampos pontilham a solidão com a sua luz vaga e errante, o
bramido das onças ecoando nas quebradas das terras, o ciciar das cobras que
passam, o coaxar estridente dos sapos, nos baixios; enfim um fauna que se
esconde ao sol se expõe às trevas, a claridade da lua, que penetrando em
fitilhos baços de luz na floresta dando-lhe uns tons funéreos; todo este
conjunto grandioso de coisas heterogêneas consubstanciadas, aterra, assombra e
aniquila.
Depois,
tudo cai numa espécie de apatia e assim se passam horas, até que um bater de
asas de aves mal despertas, o horizonte purpureando-se, anuncia o nascer do
sol.
Então,
nesta hora sublime em que a Natureza, esta palavra de Deus, é uma explosão de
cânticos, parte um tiro – responde um grito agudo e prolongado de um moribundo,
no estertor de uma dor; depois outro, uma fuzilaria, um silêncio, um tropitar
de pessoas que chegam, ofegantes e outro de pessoas que fogem, gritando; e
aonde penetrou a bala, alcança o punhal. Às vezes, uma índia com uma criança
aos braços suplica num soluço, mas os grandes ódios, as grandes cóleras, em
geral, adormecem, no peito humano, os sentimentos humanitários.
Um
índio, que o medo paralisou, à vista d’aquelas faces descompostas, parte numa
carreira, mas, um tiro certeiro prostra-o por terra, num lago de sangue.
Após,
tudo cai numa estagnação absoluta de vida e o silêncio é interrompido, somente,
pela melopeia das águas tremulinas nas cachoeiras dos igarapés próximos e pelo
canto saudoso da nhambu chamando a companheira distante.
Seabra, Novembro de
1928
X
* Foto retirada da revista ÍNDIOS ISOLADOS DO ACRE, uma publicação da Biblioteca da Floresta, Rio Branco-AC, maio de 2010, p.67
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