sexta-feira, 19 de abril de 2019

TARAUACÁ: A VISÃO SOBRE OS POVOS INDÍGENAS EM 3 TEXTOS

ABORÍGENES

Momentoso assunto este que a imprensa do Rio vem discutindo em torno à sábias deliberações do Ministério da Agricultura no concernente à proteção aos silvícolas brasileiros, não é de estranhar que “O Município”, por sua vez, abordando a questão, elucide fatos que tão perto se prendem à história da catequese neste rio.
Avessos, por princípios e teoria, à catequização do selvagem, atenta à rara proficuidade colhida nas empresas tentadas, revolta-nos ver perdidos esforços, ver interrompida, quiçá abandonada de vez, a obra tenaz, ingente de quem abnegadamente se dedicou a catequizar, com surpreendente êxito, os índios bravios do alto Tarauacá, Murú e seus contravertentes.
Queremos referir-nos ao empreendimento vitorioso do sertanista Angelo Ferreira.
Para quem moureja nestas paragens, que somente a hévea opulenta e a castiloa efêmera dão vida e acenam à imigração com o reflexo verde-gaio de suas folhas e com o oiro alucinante dos seus produtos, não ignora que há bem poucos anos o vale do Tarauacá era infestado por hordas de aborígenes, que hostilizavam, a cada passo, os seringueiros nos alcantis das selvas e os patrões à margem dos cursos conquistados pela coragem e pelas contingências da vida.
Escorraçados frequentemente pelo embate da civilização, os selvícolas aldeiaram-se, num agrupamento inteligente de tribos aliadas, nas quebradas alterosas donde manam e se controvertem os sulcos tortuosos, indefinidos quase, do Tarauacá, Jordão, S. Salvador, Valparaíso, Liberdade, Gregório, Acuraua e Eiru por um lado e por outro do Doiro, Muru, Embira e seus longínquos afluentes.
Foi aí, nesse domínio exclusivo do aborígene em luta porfiada com os exploradores audazes, que Angelo Ferreira iniciou o seu sistema de catequese conquistando pela bravura e pelo ardil, pela cobiça e pela temeridade, as terras férteis do ouro negro para a indústria extrativa e as malocas de obstinados selvagens para o convívio da civilização invasora.
Isto é notório e ninguém contestará que o destemido nortista era tido e obedecido como diretor, o tuxaua supremo, das tribos – Colinas, do Apuanã, Catuquinas e Uamináuas, do alto rio Gregório; Capanáuás, do Acuraua; Jamináuas, Caxinauás, Paranauás e Araras, do Embira. Além destas o arrojado cearense tentava domar a maloca dos Mainauás, cujos índios brancos de olhos azuis e cabelos loiros, seriam um exemplar valioso para os nossos estudos americanistas, no concernente à etnografia amazônica. Era uma das aspirações de conquista, além de outros empreendimentos temerários de exploração e catequese, do extinto sertanista.
Pois bem. Depois da tragédia do Sanango, há dois anos, em que baqueou para sempre, insidiosamente, esse bandeirante Juruaense, fez-se a derrocada nessa obra de esforço humano vitoriosa através de insuperáveis obstáculos de uma catequese particular; dispersaram-se as malocas; tornaram-se nômades os índios catecúmenos e a indisciplina alastrou-se e aguçou-lhes os instintos para a selvageria indômita de outr’ora. Os ataques inopinados e bárbaros reapareceram: no Embira toda a zona caucheira do alto curso conflagrou-se e o indígena, revoltado, trucidou na alucinação da nevrose vermelha do ódio, saqueou, expulsou centenas de extratores.
Relatando estes fatos, ao correr da pena, temos em mira solicitar de s. exc.ª o Ministro da Agricultura as suas vistas para o abandono atual dos aborígenes desta zona, com detrimento para a civilização e comércio do Território.
Julgamos haver no Departamento um diretor para os índios catequizados, mas se realmente ele existe, suas funções, de certo, tem sido exercida em determinados tributários do Juruá, que não o Tarauacá e seus afluentes. E não o censuramos por sua ausência nesta região, porque conhecedores antigos como somos destes remotos sertões, sabemos que um só diretor não se pode duplicar, duplicar-se mesmo, para atender, inspecionar, prover e providenciar as exigências de tão várias e dispersas tribos em afastadas malocas.
Ponderamos a s. exc.ª com a devida vênia e acatamento ao seu alto critério e descortino político na pasta referente à Agricultura e especialmente à Proteção aos Índios, a nomeação de um diretor especialmente para agira no vale do Tarauacá.
Só assim se não perderá tudo da campanha catequizadora de Angelo Ferreira, de valiosos resultados para a etnografia do país.

Jornal O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 28 de abril de 1912, Ano III, N. 83, p.1


ÍNDIOS...
                   
“Há uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito...”

Os selvagens acreanos têm vivido em pleno ostracismo, na indiferença incontestável das administrações centrais republicanas...
Os próprios assuntos que fitam trazer em público, fugazes informe sobre eles, não passam das pastas baralhadas dos escrevinhadores, e são, de ordinário, preteridos pela cadência harmônica e rítmica dos versos, pelos períodos empolgantes de prosas sadias e buriladas com caprichos de artista, pelos comentários cruéis que as crônicas espalham com verve, ocultando nas entrelinhas a intenção satírica do autor, pela discussão enfim de todos os fatos da vida mundana, presos, já se vê, ao raio de ação de uma máquina poderosa, que, automaticamente vai indicando o destino da humanidade – o Tempo.
E falar de índios quando a coisa vai melhorando, a borracha prestes a valorizar-se, quando os novos governos oferecem mais gordas prebendas... não deve ser muito bom.
Reconfortados então pelo repouso e pela fartura, todos, aglomerando-se em préstitos, vão dobrar os joelhos num templo, cujas portas escancaradas parecem atrair – a Ambição.
Neste templo o tributo em vez de incenso e mirra desprende interesse, e o sino de bronze, bimbalha incansável avisando o ritual do Egoísmo.
É muito difícil mesmo, podemos dizer desassombradamente, achar-se nas colunas de qualquer in-folio diário ou semanário, uma varia ao menos que traduza fatos que se prendam aos aborígenes nacionais.
O próprio Deus pareceu coroar-lhes o infortúnio, fazendo cair sobre as cabeças destas criaturas infelizes, duplamente, a clamide fúnebre do esquecimento.
E, como se houvesse uma prevenção inata e indesviável, uma ojeriza instintiva, como vinda de berço, como se neste interregno da infância à adolescência, só nos ensinassem árias anti-selvagens.
E hoje, justamente, quando o Brasil todo se agita, do Chuí pequenino às margens fecundas do Oiapoque, das nascentes esconsas do Javari ao extremo leste, num frêmito de liberdade política e social, num estremecimento de força e de conquista para o desiderato feliz de uma civilização radiante, era bem justa que os próprios selvagens, arregimentados também à sombra do pavilhão áureo-verde, participassem da monumental obra da unificação do sentimento nacional, todos na ânsia insofreável de elevar o Brasil.
É necessário portanto que a educação dos índios se opere de uma maneira frisante e completa, que se prepare esta nova casta, visceralmente nacional, dentro do aperfeiçoamento da ciência moderna, para engrandecimento desta pátria gigante.
Aperfeiçoada, acomodada brilhantemente aos moldes de uma evolução progressista, nascerá de certo um dos esteios mais poderosos para a consolidação da sociedade brasileira.
Assim, subsequentemente, e em muito maior escala, haverá a fusão das raças cultas com as raças virgens, e segundo um grande pensador que costuma usar luvas brancas ao grafar as suas reflexões no papel, “é no encontro das raças adiantadas com as selvagens que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização”.
Impende naturalmente ao governo transformar, num rasgo supremo de humanidade, a vida dos selvagens.
Para isso bastaria semear algumas escolas onde ministrassem o nosso idioma e a nossa história; criar núcleos onde se fizessem experimentar noções da vida agrícola; instituir processos práticos para melhoramento das indústrias indígenas.
Fazer substituir o tacape pelo alfabeto, os “mariris” pelos livros, as tabas pela pátria...
É de lastimar, porém, o estado extraordinariamente atrasado do selvagem acreano quanto a conhecimentos científicos.
Com o desaparecimento dos caboclos velhos vão surgindo os novos, mais fortes, mais inteligentes, propensos ao próprio ensino.
Um espírito observador veria quanta arte aparece em suas vestes, quanta estética em suas pinturas exóticas.
A experiência, que a vida nos traz, indica-nos, sem contestação, que a compleição intelectual dos índios não é defeituosa ou bronca, e se deixa de progredir é somente por viver restringida entre a ignorância e o desprezo.
De sorte diversa de alguns privilegiados, saídos das regiões inóspitas de Mato Grosso, os nossos índios vão adquirindo conhecimentos a seu talante, por uma força ingênita de progresso e adiantamento...
A convivência dos nordestinos tem sido o principal fator para o incremento da nova civilização, facilitando com novos métodos e sistemas novos, a vida primitiva dos caboclos.
O aborígene, hoje, é perfeitamente sociável, como também é francamente hospitaleiro.
A solidariedade é um princípio cegamente observado para a conservação e estabilidade das tabas.
Elegendo um “tucháua”, o chefe supremo da família, todos eles se adaptam às leis do seu regulamento, numa plena fusão de vontades, sufocando os interesses pessoais em bem da coletividade, numa ligação natural de ser a ser.
Apesar da tendência estoicamente provada de alguns deles procurarem espontaneamente a luz do ensino, mendigando lições, esmolando cartilhas, nunca se poderá chegar a um resultado amplamente magnífico de um desenvolvimento intelectual.
Esquecidos pelo próprio governo de sua pátria que se esquiva de lhes facultar o menor auxílio, monetário ou industrial, os aborígenes acreanos, vão vivendo no mais completo abandono, sem jamais poderem aperfeiçoar os seus processos elementares de indústria.
O nosso governo é porque vive a respirar atmosfera pesada de politicagem e descalabros, sem querer ligar importância às nossas desventuras.
O mundo culto, pelo menos, conhece ou antes sabe, que o índio José Cristiano, do Estado do Amazonas, foi agraciado pela Inglaterra, com medalha de prata, à vista de feitos heroicos praticados durante a grande guerra.
Na música, a sublime arte de Mozart, na mecânica, na pintura, na escultura, em todas as ramificações da arte enfim, os índios têm demonstrado revelações.
Que o governo da República estenda até aos índios acreanos, particularmente aos envirenses, o serviço da “Proteção aos Índios”, até há pouco sob a superintendência do insigne patriota o general Candido Rondon.
Será uma medida doce e humanitária, uma auréola de luz que circulará a estrela do Acre quando tivermos a fortuna de sermos representados na flâmula nacional...

W. Valle Mello
Japão – Rio Envira

Jornal A REFORMA, Tarauacá-AC, 2 de setembro de 1923, Ano VI, N.267, p.1


CORRERIA

Correria, na acepção própria, significa: - invasão de inimigos, ação de correr para um e outro lado ruidosamente; mas, também emprega-se para designar a perseguição do homem civilizado ao homem bárbaro; a astúcia contra o ardil.
Sobre a origem dos selvagens indígenas americanos se debatem em verdadeiras controvérsias os nossos mais etnólogos.
Alguns os julgam autóctones; outros, oriundos da Ásia, tendo se transportado à América quando esta se achava ligada àquela, pelo estreito de Bering, então congelado.
Comparando-se, efetivamente, um índio a um asiático, notadamente a um chinês ou a um japonês, encontra-se uma perfeita semelhança de traços físicos, um mesmo cunho de originalidade.
O que é certo é que, muitos séculos antes de Cristóvão Colombo ter descoberto a América e Pedro Álvares Cabral o Brasil eram estes, já, conhecidos pelos navegadores antigos.
Quando Pizarro e Fernando Cortês conquistaram aquele o Peru e este o México, encontraram a civilização dos Incas e dos Astecas; e, o nosso país era também conhecido pelos Fenícios uns 600 a 900 anos antes de Cristo.
Ou originários da própria terra ou emigrados de um outro continente, são eles, hoje, os habitantes dos vastos interlands ainda virgens de civilização.
Para se ter deles uma ideia perfeita, um conhecimento completo, é preciso que os conheça até nas menores idiossincrasias.
Para eles o roubo não é mais que o suprimento de uma necessidade; matar – um equilíbrio de forças e o resultado de uma vingança. Neles este sentimento é nato; e, pensando-se bem, a vingança é tão necessária ao homem quanto a ambição. Ter ambição não é dado a toda a gente diz Balzac: “A vingança é a ambrosia dos Deuses”. na mitologia grega, Prometeu por ter roubado do Olimpo o fogo criador, pagou, acorrentado ao Caucaso, tendo uma águia a devorar-lhe, constantemente, o fígado, o seu crime; e, nos nossos dias, ainda vemos esta raça de Israel, dispersa, proscrita, paira em toda a parte, estrangeira em própria pátria, pagando ainda o crime de uma traição e tendo um símbolo:
Ashasoems – e vivendo de um sonho que é uma lenda: – O Messias.
É terrível a correria. Um traço de homens, 10, 15, às vezes mais, outras menos, interna-se na floresta à caça do índio.
Acostumados às intempéries do tempo, dormido ao relento, conhecendo, como os índios, a selva e tendo como ele as mesmas artimanhas, mais intensos no ódio, mais cruéis na desforra, ei-los caminhando dias inteiros, famulentos, ora alimentando-se dos palmitos de certas palmeiras, ora das frutas silvestres, quando estas abundam.
O índio é desconfiado, mas não é precavido.
A aproximidade de suas tabas – construções vastas, oblongas e toscas – é denunciada pela grande algazarra, ouvindo-se à grande distâncias.
É, então que os perseguidores tornam-se sombras, deslizando solertes, imperceptíveis, parando ao ruído de um galho que se parte, de uma ave que levanta o voo assustada, avançando ora de rastros, recuando ao menor obstáculos, atentos, calmos e silenciosos.
Geralmente o ataque se efetua pela madrugada, nessa hora em que os antigos bretões tão acertadamente denominavam o pipular do dia.
A noite, nas florestas amazônicas, infunde sempre, mesmo àqueles que estão acostumados a estas arriscadas aventuras, um certo temor, embora que passageiro.
A mata abre-se em lantejoulas de luz; galhos e folhas secos tornam fosforescentes, pirilampos pontilham a solidão com a sua luz vaga e errante, o bramido das onças ecoando nas quebradas das terras, o ciciar das cobras que passam, o coaxar estridente dos sapos, nos baixios; enfim um fauna que se esconde ao sol se expõe às trevas, a claridade da lua, que penetrando em fitilhos baços de luz na floresta dando-lhe uns tons funéreos; todo este conjunto grandioso de coisas heterogêneas consubstanciadas, aterra, assombra e aniquila.
Depois, tudo cai numa espécie de apatia e assim se passam horas, até que um bater de asas de aves mal despertas, o horizonte purpureando-se, anuncia o nascer do sol.
Então, nesta hora sublime em que a Natureza, esta palavra de Deus, é uma explosão de cânticos, parte um tiro – responde um grito agudo e prolongado de um moribundo, no estertor de uma dor; depois outro, uma fuzilaria, um silêncio, um tropitar de pessoas que chegam, ofegantes e outro de pessoas que fogem, gritando; e aonde penetrou a bala, alcança o punhal. Às vezes, uma índia com uma criança aos braços suplica num soluço, mas os grandes ódios, as grandes cóleras, em geral, adormecem, no peito humano, os sentimentos humanitários.
Um índio, que o medo paralisou, à vista d’aquelas faces descompostas, parte numa carreira, mas, um tiro certeiro prostra-o por terra, num lago de sangue.
Após, tudo cai numa estagnação absoluta de vida e o silêncio é interrompido, somente, pela melopeia das águas tremulinas nas cachoeiras dos igarapés próximos e pelo canto saudoso da nhambu chamando a companheira distante.

Seabra, Novembro de 1928
X

Jornal A REFORMA, Tarauacá-AC, 11 de novembro de 1928, Ano XI, N.527, p.1

* Foto retirada da revista ÍNDIOS ISOLADOS DO ACRE, uma publicação da Biblioteca da Floresta, Rio Branco-AC, maio de 2010, p.67

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