Amancio Leite era cearense,
natural de Baturité. Chegou a Amazônia, provavelmente, na primeira década do
século XX, como seringueiro, para trabalhar nos seringais de Cruzeiro do Sul,
na região do Tejo. Como escreve Quintela Junior, num artigo sobre o autor,
Amancio “aprendeu os rudimentos de leitura com um companheiro de barraca”, nos
intervalos da extração do látex. Amancio,
mutatis mutandis, é um Patativa do Assaré da Amazônia, na verve, na
linguagem e na genialidade. Ele é um poeta original, foge do cânone e do
engessamento acadêmico, tão comum à época. Francisco Peres de Lima, no livro “Folk-lore
acreano”, afirma que ele publicou uma obra chamada “Os cantares seringueiros”, na
década de 1930. Amancio é um seringueiro poeta; e um poeta seringueiro. Sua escrita
surgiu com e da própria Amazônia. Pela primeira vez os seringueiros se projetam
para além dos seringais. Sua voz não traduz o barracão, mas representa as
barracas, com suas tristezas, histórias e esperanças. Por isso o chamaram de “o
Cantor da Selva”. I. M.
“Em nosso meio,
pois, – cabe aqui a observação de Prada Sampaio – como em outro qualquer,
estudar semelhantes manifestações é escarvar raízes antropológicas, diferenciar
grupos étnicos, nortear tendências e aspirações, e descobrir o humos donde nos
vem a seiva que alimenta e faz reflorir de luzes e fantasias a alma
contemporânea dourada pelo sol da civilização!”
Isto bem compreendeu
Amancio Leite no tanger inculto da sua lira que, depois de cantar as tradições
da Mãe da seringueira, da Matintaperera, do Apuí, conta-nos a xácara da Vida
do seringueiro tal que ele a observou, porque a sentiu com a emotividade do
seu temperamento de meridional e a filosofia que as agruras do meio físico e
moral lhe incutiram no coração e no pensamento.
Graças ao sr.
coronel Absolon Moreira – um espírito investigador e ávido de conhecimentos
literários – vou satisfazer o desejo do primoroso literato, que é João Ribeiro,
e despertar o estímulo dos que cultivam as letras neste Departamento para gênero
folclore, dando publicidade a algumas poesias da lavra desse poeta acreano –.
Antes de
transcrevê-las, duas palavras sobre o autor.
Amancio Leite é
natural das terras de Iracema. Vindo numa leva de emigrantes, há alguns anos,
aqui aprendeu os rudimentos de leitura com seu companheiro de barraca, nos
lazeres da faina extrativa, companheiro que é hoje o gerente do seringal Minas
Gerais, o sr. Francisco Vieira, por antonomásia Mineiro. Logo que conseguiu
soletrar, não deixou de ter à mão almanaques, jornais e romances, que foram a
fonte desordenada de seus estudos, e um dia, num seringal do Tejo, surgiu
empunhando a lira e férula – era poeta satírico!...
As suas produções
são inspiradas no cenário e nos acontecimentos da terra nova que o acolheu, mas
se ressentem da métrica e dos requisitos exigidos pela arte poética. A poesia
hoje estampada di-lo bem. Não a retoquei, para lhe não tirar a feição primitiva
tão natural aos versejadores do quilate de Amancio Leite. O leitor de certo
avaliará do estro, do sentimento e das imagens desse bardo que se inspira sem
os estímulos da cultura literária.
Poderia dizer da
produção o Apuí o que o pranteado
Euclides da Cunha disse da descrição que o autor “Inferno Verde” fez do
apuizeiro: “um botânico não no-lo a pintaria, tão viva, nos seus caracteres
golpeantes. Por outro lado, um sociólogo não depararia conceitos a balancearem
a eloquência sintética daquela imagem admirável.”
Se Amancio Leite
fosse literato, a par das publicações, e a sua poesia não tivesse a data de
1908, eu diria que ele se inspirara em Alberto Rangel não comparação feliz da
famosa hiloe de Humboldt...
Nota: o poeta só
escreve a lápis; nunca soube o que foi escrever à tinta. Inda faz muito, pois
se dermos crédito ao que de José Estevão nos disse Bulhão Pato no “Sob os
Ciprestes”, aquele nem mesmo escrever a lápis sabia...
Quintela Junior
Jornal O Cruzeiro
do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 25 de maio de 1913, Ano VIII, N.252, p.2-3
BRAGARIA
(Sátira)
No Juruá e no Tejo
Há uma coisa
estúpida
Que eu rogo d’antemão
Que disto ninguém
se ofenda...
Há um cardume, uma
praga
Que chega fazer
piracema!
Se fora poeta, a
obra
Tão inspirada de
sobra
Era epopeia ou
poema
Principiando do baixo,
Da boca do Juruá,
Vê-se Braga até o
alto
Nas grimpas do
paraná.
Tem Braga fêmea,
tem macho,
Braga branco, Braga
preto;
Bragas vivos e
defuntos,
Cujos nomes
próprios juntos
Não cabiam num
soneto!
Em um dos membros
do Tejo,
Num dos dedos deste
membro,
Reside o Braga
Ferreira,
Agora mesmo eu me
lembro...
É seringueiro de
fama,
Hoje possui uma
faixa
De terreno: lá num
galho,
Só tem um Deus – a borracha!
No seringal Iracema
(Perdoem-me
mencioná-lo)
Circulado de
crianças
Assiste o Braga
Regalo;
Das trevas da
ignorância
Aclara o cérebro da
infância,
(Porém não tem
seringal)
Por sobre as letras
galopa
Para ver se um dia
topa
C’o a pedra
filosofal!
Além, na margem
oposta,
Pertinho, quase
defronte,
Reside o capitão
Braga
No barracão
Horizonte;
Calculista sem
letargo,
Amável quando em
seu cargo
Interroga algum
cliente;
Mas do reino
mineral
Sua pedra filosofal
É o metal
reluzente...
O Braga da
Tauaré...
Qual ave d’arribação
Que sulca as águas
do rio
Num lodoso batelão;
Chamam-no Braga
Macio,
É sua alcunha no
rio
E pela praça
também;
Mas trata da sua
vid,
Sua algibeira
querida
Nunca vive sem
vintém.
Não é tudo! inda
tem Brag...
Por exemplo o “Quinze
Dias”,
Que caceteia o
comércio
Com velhas
mercadorias?
Dizem que não tem
vexame,
Mas peço que não me
chame
P’ra servir de
testemunha;
Pois quando num
porto ancora,
Quando menos se
demora
São os dias de su’alcunha...
Termino com o
perfil
Do tal Braga
turussú,
Por ser muito
espadaúdo
Assemelha-se um
bacu!
Não conheço tal
sujeito,
Não sei se é torto
ou direito,
Se é bem liso ou
tem fraga,
Informo-o só pela
fama;
Senão o leitor
reclama:
– Arre lá!... com
tanto Braga!
Tejo – 1908
Jornal O Cruzeiro
do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 25 de maio de 1913, Ano VIII, N.252, p.3
A MATINTA PEREIRA
Amancio Leite
Nas plagas do Juruá
Meia noite tinha dado;
A copa da
samaumeira
Fitava o céu
estrelado
Naquela hora
silente
É quando todo
vivente
Dorme o sono mais
tranquilo.
Os noitibós e
corujas
Se internam nas
brenhas sujas
Impondo silêncio ao
grilo.
Como um fantasma
isolado
Entre os outros
menos grandes,
Sobre as matas abre
os braços,
Apontando para os
andes
– Briareu do longos
laços –
Vegetal, rei dos
espaços,
Que produz algodão
bom.
As giganteas samaúmas
Fornecem brancas
espumas
Ao mar de Santos
Dumont...
Moribundo estava
agosto,
O rio era um
esqueleto...
A praia, branco
sudário,
Se achega ao
barranco preto.
A noite de lua
cheia,
A brisa, varrendo a
areia,
Encrespa a água do
rio;
E as verdejantes
oiranas
Conversam co’as
canaranas
Num cochichado
macio!
No momento um
seringueiro
Apanhava tartarugas:
A lua fitava as
águas
Tremulando sobre as
rugas.
Quando um funéreo
assobio
Partiu do lado do
rio
Que lhe irritou o
cabelo!
Fê-lo parar um
momento
A olhar para o
firmamento,
Onde brilha o set’estrelo...
Nada viu, e
prosseguindo
Sua pesca,
novamente,
Quando ouviu
segunda vez
O assobio
estridente.
– Era a matintaperera,
Ave noturna,
agoureira,
(segundo a crença
indiana)
Faz estremecer nos
lares
Os filhos cá dos
palmares
Desta zona
americana...
É alma de estranho
mundo!
(Diz o mais
civilizado)
– É espírito
vagabundo,
Que vive
desabrigado.
Quando a matinta
assobia
Três vezes, nos
anuncia
Que morre gente...
e há choro!
Pois a mãe
seringueira
São entes de mau
agouro...
Jornal O Cruzeiro
do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 1 de junho de 1913, Ano VIII, N.254, p.3
Isso, falando de
poesia, e de alguns, pois havia muitos outros, ainda naquela época, e entre
estes o Cantor das Selvas, o poeta nato, que sem ao menos manusear um compêndio
de metrificação, fazia versos que encantavam pela sua cadência. Vejamos:
“Bem moço ainda...
lá me vim a pé
Onze vezes dez
léguas. Nosso trem
Um palmo não
passava, então além
Desse empório que
foi Baturité.
Lá nos confins
soluça e sumo bem
Do lar paterno em
pranto! Só a fé
Dum regresso
imitante ao dá maré
Mitiga a dor do
coração de “ALGUÉM”
Tudo acabou... tão
longe e as minhas plantas
Não pisara, nunca
mais o pátrio solo;
Caro objeto de
saudades tantas.
Sacrifiquei-me ao
Acre, sem preguiça...
Onde, não vive e sim
vegeto e “rolo”
Entre irmão que não
fazem-me justiça!”
(Amancio Leite –
Vozes do Veterano e Inválido ex-seringueiro do Acre II)
Jornal O Juruá,
Cruzeiro do Sul-AC, 15 de maio de 1960, Ano VII, N.111, p.2
OS CANTARES
SERINGUEIROS
Amancio Leite
Eu sou seringueiro
no rio Juruá,
Do meu Ceará
vivo distante!
Sempre a trabalhar
p’ra arranjar um saldo
Que tempere o caldo
D’um escravo errante...
Todos os trabalhos
duros, desta terra,
Em constante guerra
são por mim vencidos...
Cá nas solidões
cheias de maldades,
Tenho mil saudades,
dos meus pais
queridos!
Mas, confio em Deus
nosso Pai bondoso
Que serei ditoso...
– Bem ditoso ainda! –
De voltar com saldo
ao torrão amado
E inda ser casado
C’o u’a moça linda...
Tal sonho dourado
é o que eu aturo,
Penso no futuro
se é como o presente...
Devo mais d’um
conto,
meu patrão não presta...
Já nos franze a
testa
bota-se a valente...
Que fazer? Sou
preso
na cadeia imensa
Desta mata extensa
que já não tem fim...
Lá na minha terra
o caso é mudado,
E o mundo é
furado...
não trancado assim!
Basta de lamentos,
confiar em Deus,
Que os penares meus
serão descontados;
Quando lá na Pátria
onde fui nascido,
Farei-me esquecido
Deste cru passado!
Este belo assunto,
esta narração,
Vai contar então
como se trabalha;
Como se fabrica
essa tal borracha
Que desfaz a taxa
de qualquer canalha...
Cá nos ermos
tristes
por onde eu trabalho,
É meu agasalho
pequena choupana.
Em derredor dela,
verdes, cresce em brilho,
Vinte pés de milho,
cinco ou seis de cana.
Também tem a um
lado
grande samaumeiras
Bela e sobranceira,
sobre a verde mata...
Atrás da cozinha
vê-se a fumaceira
Junto a uma
touceira
de banana prata.
Em Abril ou Maio
Saio ao barracão
É grosso o
pancão...
me empelho dez dias...
Quando volto ao
centro
eu, e mais pessoas,
A remar canoas
com mercadorias...
Finda a viagem
muito perigosa...
Muito trabalhosa...
chego em certo porto
Onde desembarco
minha aviação...
Gemo como um cão:
“de remar estou morto!”
Mas, que importa
isto?...
amanhã eu entro
Para meu longe
centro...
– carga sobre a costa –
Sigo pensativo,
transpondo ladeiras
– Dessas
brincadeiras
pouca gente gosta! –
Meio dia andando
para o rancho querido,
Chego bem moído...
enervado e teso!
No fim do soalho
boto a carga abaixo,
Nisto, livre me acho
do enfadonho peso...
Tiro a blusa fora,
corro o meu roçado,
Vejo prosperado
todo o meu legume
Volto para a
barraca
cheio de prazer
Trato de fazer
logo fogo ao “lume”.
Vejo se tem pó,
vou fazer café;
Antes um chibé
tomo por primeiro:
Eis um alimento
muito apreciado
Pelo degredado
triste seringueiro!
Em seguida ao
“moka”
fumo o meu cigarro;
E a barraca varro;
– Pois “gunverno” ali... –
Uso – por vassoura
–
também – por capacho –
O pendão dum cacho
chocho de açaí...
Desembalo a carga,
vou tomar um banho;
Que calor tamanho
aqui nos flagela!
De roupa mudada
fico mais bonito...
De café repito
logo outra tigela...
Compõe-se a barraca
– de dois seringueiros –
De dois
mosquiteiros
metidos nas redes!
Tosca choupaninha
muito bem coberta...
Quase sempre
aberta...
não possui paredes. –
Facas com bainhas!
O rifle e espingarda
Se azeita e se
guarda
zelados polidos...
Em contraste a isso
vê-se dois terçados,
Muito enferrujados
na palha metidos.
A mesa de jantar...
– de couro de veado –
Está ali pendurado,
juntinho à toalha...
Ou quando não este,
nota-se uma esteira
D’olho da palmeira,
bem trançada a
palha.
Deitado ao soalho
meu machado “tumba”
Dentro dum zabumba
da paxiubeira,
Meu pequeno pote
cheio d’água fria
Mesmo ao meio dia
Sempre foi geleira...
Todos os artigos
de necessidade,
Eu, mais meu
“cumpade”
Zeca Ciríaco,
Vamos transportando
pra nossa choupana
Nos confins de
semana
Cada um com um saco.
Eu, na minha terra
nunca levei murro...
Mas aqui, sou
burro!
– me virei em bicho!...
Pois meu jamaxi
com a sua testeira,
Dá-me a fucinheira...
só falta o rabicho!
Da barraca grande
meu leitor já sabe,
Portanto, nos cabe
seguir outra linha:
Desça dois degraus
– com muita cautela –
Vamos à panela
que está na cozinha.
Ei-la sobre a
trempe;
ferve com macaco.
“Cumpade Ciríaco”
não come feijão:
Já eu, como tudo...
não reservo nada...
Pra mim, lesma
assada
– faz de requeijão!
Vou lá ter
vontade!...
nesta sepultura...
Como até mucura...
– só não como é cru! –
“Deixei” de ser
onça...
Pra andar com “manobra”.
Só não como é cobra
mais mestre urubu!
Mas, o comprimento
deste humilde canto
Já secou meu pranto
já meu deu o riso...
Meu leitor amigo
como tu não dormes
Mais alguns
informes
nos serão precisos...
Queira
acompanhar-me
dez ou doze passos:
– Sem cruzar os
braços –
“sem pisar no chão...”
Minha fumaceira,
Meu defumador
– Feito com rigor –
não é longe, não.
Ele é pequenino
“mas-porém” é rico,
Meu vizinho Chico
não tem um assim!
Cabra preguiçoso...
cabra sapupema
Sempre foi panema
seringueiro ruim!
Eu já lhe avisei
que tenha cuidado
Se não “enrolado”
vai ser qualquer dia...
O “cabra é
toqueiro”
porém, não escapa,
Lhe enrolo na capa,
de minha bacia!
No Chico Calangro
Mais Joaquim Caçote,
Vou passar capote
quer queiram quer não.
Eles dois não
“drôme”
Toda a noite é pouca...
Os passos na boca
deste meu “boião”!
Minha fumaceira
de palha jaci,
Ou ouricuri,
com caibros no chão.
Pra esbarrar o
vento
se tapa em “redó”:
Tem uma porta só
e no centro o boião.
Tornos da bacia
fincados com jeito
Ao lado direito
ao alcance da mão...
Grade, prancha e
cuia,
cavador, sarilhos,
Eis os “atencilhos”
da difumação.
Depois disto dito,
nós vamos à estrada,
Que já está roçada,
que entigelo e sangro.
Ela dá dez frascos,
a menor dá oito...
Desafio afoito,
Chico de Calangro!
Ele tem um “rosso”!
este meu vizinho
Pelo machadinho
Julga-se pesado!
Vou dar-lhe uma
“marcha”
de bicho turuna...
Que ele se
“arripuna”
para andar calado!
Só não desafio
Zeca Papagaio,
Pois começa em Maio
e não perde um dia!
Corta sete meses
pesa mil e tantos
– Tem por ele, os
santos
e a Virgem Maria...
Ou então é “pauta”
com o “cabra-velho”!
Que criou chavelho
em lugar de cr’ao!
Credo! Ave Maria!
“qui cabôco” frouxo!
Para o “vei-cão
cocho”!
tem sua alma boa!
Bonito é o regímen
dum bom seringueiro;
Ele e o companheiro
– marcam certo a hora –
Desprezando as
redes
e o prazer do sono;
São dois cães sem
dono...
Partem, vão se embora.
Sucessivamente,
tal se dá comigo:
Essa regra eu sigo
com prazer e amor!
Madrugada cedo
sou atormentado
Pelo cão danado –
do despertador!
Este “galo-disco”
das tripas de ferro,
Quando solta o
berro
não quer mais parar...
Me espreguiço e
benzo,
me levanto logo,
Vou fazer o fogo...
trato de almoçar...
Um café de frasco,
preto como tinta.
Cuja borra pinta
dentro da tigela
Uma catacumba,
um navio, ou barca,
Uma igreja, ou arca
mausoléu, capela...
Eu e meu amigo
caro companheiro,
Bravo seringueiro,
chamado José,
“Embocamos” tudo
– com prazer, sem luxo –
Para a “pá” do buxo
carnes e café!
Terminada a “bóia”
meu cachimbo fumo,
Cada qual, seu rumo
parte diligente;
Chega na madeira,
corta, e com cautela
Embute as tigelas
segue novamente...
Neste desempenho,
de cachimbo ao queixo,
Balde e saco deixo
onde se bifurca
Minha extensa
estrada
tão cheia de dobras...
Onde sobre cobras
já dancei mazurka!
Nesses labirintos
ou montanhas Russas,
Faço escaramuças
na função do corte.
Posto, que cansado,
não me sinto fraco!
Já nalgum macaco
tenho dado a morte...
Finalmente, alcanço
esse entroncamento
Que o povo –
“Zé-Bento”
– cá da minha laia –
Findamos o corte,
chamamos de “feixo”,
Onde o balde deixo
mal a aurora raia.
Lá me vou de novo
pelo “labirinto”...
Já cansadas sinto
Minhas fortes pernas...
Infeliz da mãe
desse visionário
Que transpõe diário
mais de cem cavernas!
Pelas duas horas
chego na barraca,
Boto abaixo a maca
vou tomar café.
Como alguma cousa
pá forrar o peito:
Isso já tem feito
meu cumpade Zé!
Acendo o cachimbo
“e o meu leite aqueço”:
Logo no começo
defumo um sapato:
Eis nosso calçado
que aqui se gasta.
Só um par não basta
para a estrada e o mato!
E a borracha rola
sobre este cachimbo
Que vomita um nimbo
lambiscando o teto.
Petrifico o leite
da colheira diurna,
Dentro dessa furna
própria dum inseto...
E a borracha cresce
sucessivamente,
Na fumaça quente,
crosta sobre crosta:
Vai avolumando
qual balão tufado.
“Fico azucrinado”
“quando a bixa tosta”!
Passo duas horas
bem atarefado
Nesse humilde fado,
mas, apetecido!
Pois, borracha é
chave
que destranca a porta
Dessa via torta
do torrão querido!
Finalmente acabo:
sobre a tábua lisa
Rebolo a camisa
do bolão de oitenta...
Ponha a marca de
ferro.
(nos cobres me monto!)
Dívida dum
conto?...
comigo não aguenta...
Saco a blusa fora
(tenho o corpo quente)
Assovio contente
polkas, walsas, “chotes”,
Preparando a “bóia”
penso nos vizinhos
Ambos, –
coitadinhos –
estão nos meus capotes!
Me sinto contente
pelo dia ganho,
Vou tomar meu banho
pra poder jantar.
E depois que janto
deito na maqueira
Pra desta maneira
eu poder cantar:
“Sou bom
seringueiro,
– mas não sou poeta! –
Minha predileta
é a seringueira...
Vivo tão distante!
Triste e degredado
Do meu berço amado
“Maria Pereira!”
Repito de novo
vivo desterrado,
Errante e isolado
nesta zona infinda...
Mas espero em Deus
que inda voltarei,
E me casarei
com u’a moça linda!
*
*
*
Agora leitor
– da classe letrada –
Tu leste a
“embolada”
do meu cantador?...
De certo que sim:
pois bem, foi verdade…
Cá na majestade
das selvas sem fim
Também tem quem
cante...
(Natos trovadores)
Também tem
atores...
– Não vês o japiim?!
*
*
*
(Melhorado:
1930).
LIMA, Francisco
Peres de. Folk-lore Acreano. Rio de Janeiro: Brasília Editora-Rio, 1938. p.2744
MAPINGUARY*
Amancio Leite
Certo seringueiro,
um dia
Chegou correndo da
estrada
Na qual, há tempos
não ia,
Não trouxe leite
que desse
Para melar a bacia!
Chegou cedo, muito
cedo;
Antes da hora
marcada,
Seu companheiro
ainda andava
Lá pela volta da
estrada.
Fez assim, só
porque dera
Uma carreira
danada!
O triste vinha
afrontado,
Verde-amarelo e sem
fala!
Saltando dentro de
casa
Deitou-se em meio
da sala.
Seu rifle de doze
tiros
Não trazia uma só
bala!
Que teria
acontecido
Com aquele pobre
rapaz!
Se teria ele
esbarrado
Com o velho
satanás?
Talvez, depois
saberemos
Quando chegar Zé
Thomaz.
Zé Thomaz - o companheiro
Chegou, depois de
uma hora.
Quando o viu,
gritou de longe:
- “Que foi
‘seringueiro espora?!’
Teria você
‘encontrado’
Mapinguary ou
caipora?”
“- Encontrei
mapinguary:
(Respondeu-lhe João
Tomé)
Me ‘atrepei’ numa
‘pupunha’
Com as alpargatas
no pé...”
“- Então me conte
‘direito’
como esse danado
é!”
“- Ele é maior que
um boi
Daqueles do rio da
Prata...
Chega ‘estremecia’
a mata...
Fez-me ‘atrepa’ na
‘pupunha’
Calçando as
alpargatas!”
“- Mas rapaz...
será ‘possível’
Que não deste ‘ao
menos’ um tiro?...”
“- Ora, eu não
dei... dei só doze!
Mas, de que mais me
admiro
É ‘que ele’ fez
tanta conta
Que não mudou nem
de giro!”
“- Mas onde foi que
encontraste
Tamanha ‘fera’ de
fama?...”
“- Foi no ‘cabeço’
da volta
Junto à madeira da
‘cama’
Cá mais atrás, eu
vi, ‘fresco’
O rasto dele na
lama...”
“- Esse bicho é
cabeludo
E todo cheio de
escama?”
“- Eu lá pude
‘reparar’
Pra esse ‘filho de
mulher-dama’?
Que além de ser
muito feio
É todo cheio de
trama!...”
“- E o resto dele,
como é?
Se parece com o de
burro?”
“- Parece, mas é
maior!
E se tu lhe visse o
‘esturro’!...
Eu penso que
aquele... figa,
Mata as ‘onça’só de
murro.”
“- Que vê, ‘vamo’
quinta-feira
Que é dia que
ninguém corta...
Hoje é segunda e é
das ‘arma’
(Santo pra quem tem
mãe morta)
Tu vai só vê o
‘esfolado’
Na baixa da
‘ponte-torta’...”
“- Eu tava
‘cuiendo’ o leite
Da madeira do
‘cabeço’
Quando vi um grito
longo
‘Como’ outro não
conheço!
Me deu um tremor
nas perna
Que quase a terra
eu não desço...”
“- Mas, afinal
desci sempre
Me assustando de
Cupim!
Rifle com bala na
agulha
Mão no cabo do
‘ispadim’.
Quando eu cheguei
debaixo
Ele gritou mesmo
assim
Desta vez foi
‘redobrado’
Gargalejando no
fim!”
“- Eu armei o
‘pau-furado’
Me encostei na
‘seringueira’
Quando o monstro
‘pretejou’
Eu pensei que era
um bandeira...
Baixei a bala pra
cima...
Mas qual José. Foi
‘besteira’!”
“- Enquanto o cão
coça o olho
Dei dez tiros no
danado...
Mas ele, nem ‘mode’
coisa!
Nem ficou
‘arrepiado’
Continuou avançando
No meu rumo, me
provando
Que tinha o
‘corpo-fechado’.”
“- Aí dei-lhe mais
dois tiros.
Pronto! O rifle
virou pau...
Meus cabelos
espencaram
As pernas virou
mingau...
Meti a mão na
poltrona,
Nem uma bala, sinhá
dona,
Danou-se seu
‘Nicolau’.”
“- Aí, eu vi ‘que
morria...’
- A coisa tava
amarela! –
Na ‘madeira’ eu não
subia
Pois é de sete
tigelas
Chorei de ser
seringueiro...
‘Cacei’ os dois
‘companheiros’
Já tavam no
‘pé-da-goela’!”
“- Me pus de trás
da ‘madeira’
Me deitei rés com o
chão.
‘Me peguei’ com São
Francisco
De todo o meu
coração...
(Mas, o lá do
Canindé!)
Nisto, o bicho
pois-se em pé
Olha lá o
estirão!...
Tanto é alto ‘como’
é grosso
O renegado ‘Mapim’
Eu me pegava com os
santos
Não da ‘fé’ ele de
mim!
Oh! Que aperto...
que agonia...
Meu... - aquele -
não cabia
Nem um talo de
capim...!”
“- Ele ‘arreganhou’
as unhas
E me arranhou a
‘madeira’!
Nisto, eu me ergui
e corri
Pro pé da
‘Tucumanzera’;
Nesta, - ‘calcule
você’ –
Subi mais depressa
que
‘Largatixa’ em
cajazeira!”
“- Ele só fez
‘espiar’!
Mas nem ligou-me
‘importância...’
Se não fosse o São
Francisco,
- Adeus ‘história’
adeus dança! –
Quem diabo a coisa
contava?...
Porque nesta hora
eu tava
No ‘porão’ daquela
pança!...”
*Este poema foi
retirado do blog Almanacre, de Elson Martins.
Um comentário:
Ele é o autor do PAI NOSSO DO SERINGUEIRO e da ACE MARIA DO SERINGALISTA. o eNSON TEM O LIVRETO,
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