sábado, 10 de agosto de 2019

POEMA DE CARLOS EDUARDO DA ROCHA

PAISAGEM HUMANIZADA
Salvador – Bahia – 1945


Para Cléo Braga, Ruy Barata e
Clóvis Ferro Costa,
meus camaradas de
Terra Imatura


Os nossos vultos esparsos
de homens sufocados
Emergindo na folhagem

Suores ardentes
e gelados
nos braços amantes.
As árvores gigantes
de longa ramaria
e cortinas de cipó
Estão velando
a terra e água
dos frios igapós.
As lutas escondidas
dos homens inocentes
e vidas inquietas.
Nasceu sensível
o canto que vem
da mata
para o meu coração.
Nos braços tremendo
no arrepio misterioso
da febre fatal.
Nos gritos
das terras caídas
se dissolvendo nas águas.
Na seiva invisível
crescendo
nas forças inúmeras.

O perfume da selva
entranhado perfume
do teu corpo, com o cheiro
Das coisas primitivas,
das frutas que não matam fomes
e que germinam para a terra.
Os sonhos doentes
inquietos
sofridos, delirantes.

Adolescente
meu olhar seguiu a marcha
do grande rio.
Descansou
na tranquilidade
dos imensos lagos perdidos.
Penetrou na terra
descobrindo o mistério
das matas escuras.
Meu olhar se perdeu
com todos os tons
de todas as cores
na plumagem dos pássaros
nos céus
Nas escamas dos peixes
de todos os rios.
Meu olhar seguiu
até a origem das lendas
mais antigas
Pousou no teu rosto
de menina com todos os segredos
Via as grandes árvores
como braços inúteis
se levantando
As grandes árvores antigas
que me fascinavam
E o deserto verde
em longo sono
de força adormecida.
Ouvia soar o acalanto
na voz da seiva
O canto da sombra
seduzindo
os meus ouvidos.
Escutava a tristeza
do canto da terra
soando obscuramente
A sedução
da sombra tranquila
ao corpo cansado.
Sem repouso
estava na terra verde
o caminho inevitável.
Os homens solitários
chegavam de longe
dos confins
Nas bocas traziam a sede
e no olhar apenas aflições.
Solitários homens
na floresta
homens esquecidos.
A imensidão da terra
grande demais nos passos
lentos que caminham.
Os donos das matas
ficaram donos
dos homens.
No sacrifício primitivo
ofertaram o sangue
das árvores.
Era o ritual selvagem
da extração
continuando pelo tempo.
Das árvores feridas
escorre o sangue branco
Latex, leite amargo derramado.

***

O Rio correndo
e a terra caindo
nas águas que vão
no rebojo rolando
a terra afunda
e tudo se perde
no rio que inunda
As casas, trapiches
canoas, marombas
levadas na correnteza
no banzeiro boiando
os troncos arrancados
canoas perdidas
resto das casas
destroços arrastados
das terras caídas.
A batida vem vindo
dos pontos diversos
vem vindo ecoando
nos galhos fechados
O homem na mata
na grande mata
enorme, escura
Tão só, tão cheio
de pavor
Em cada ramo
em vão procura
o trágico sinal
do Batedor
De onde vem?
Não vem dos pássaros
Não vem da terra
Não vem dos ares
porque nasceu das águas
De onde vem?
Mal silencia
a última batida
Ouve-se ainda
o estrondo solene
da terra caída.

***

O grande frio
chegou violentamente
O grande frio
que fará escorrer
pelo corpo todo
o suor umidecente,
Estendido, delirante
Na hora do calor
na onda de fogo
Na terra quente
o tremor convulso
do homem abandonado
e sem remédio
E em ele que seria
da paisagem
como terra abandonada?
Os novos rumos
vão nascendo
das suas vidas.
Múltiplos os braços
o mistério das selvas
ficará apenas na memória.
Desceu na sombra
misteriosa
e seguiu os líquidos
caminhos
e chegou aos bordos
do grande mar.
A poesia
das distâncias apagadas
O clamor das águas
despenhadas
A voz dos precipitados rios
nas quedas das cocheiras
cavando os leitos
dos rios profundos
rios perdidos
serão caminhos encontrados
de todos os navios.
Águas múltiplas
que nascem
Águas todas
de todas as cores
Águas negras do Rio Negro
Águas brancas do Rio Branco
Águas amarelas do Amazonas
Correndo apagadas
nas eternas sombras
No abandono das distâncias
Rolando clamam
as forças desperdiçadas
Vencidas enfim
as águas todas
se confundem
Absorvidas do mar
No grande mar final.

***

O rio é um grande braço
estendido
envolvendo a terra
As canaranas murmuram
monótonos gemidos
O silêncio pelos estranhos
ruídos perturbado
Em tudo espalha
a tristeza
das coisas abandonadas
E porque esqueci
a tua lenda
e teus mistérios
Eu escrevo a grande profecia
Sei que serás
um rumo na terra
E que visíveis caminhos
para ti conduzem
E sei que permanecerás
E que à claridade real
de um novo dia
a outra vida está nascendo.
As velhas lendas inúteis
estão esquecidas
todo o mistério
está morrendo
As cidades
apagarão o verde
do grande deserto
Do Inferno Verde
a outra vida surgirá
na planície transformada.


ROCHA, Carlos Eduardo da. Poemas de Vário Tempo 1945-1985. Salvador: Edições O ViceRey, 1985. p.3-20


Carlos Eduardo da Rocha nasceu em Brasiléia, no Acre, em 1918. Professor de história das artes, crítico e incentivador das artes plásticas, Carlos Eduardo atuou em várias frentes: fundou uma importante galeria de arte que, por muitos anos, foi centro constelar da arte moderna na Bahia, dirigiu o Museu de Arte da Bahia, então instalado no Solar Góes Calmon, hoje sede da Academia de Letras. Descendente de uma família de jornalistas, artistas e criadores, Carlos Eduardo da Rocha foi acolhido pelo mundo intelectual baiano. Odorico Tavares, o poeta e então todo poderoso comandante dos Diários Associados na Bahia, Luís Viana Filho, Jorge Amado e outros foram apenas algumas das amizades que asseguraram a Carlos Eduardo um lugar de destaque na vida intelectual baiana. Conselheiro de Cultura do Estado, durante mais de vinte anos, Professor Emérito da Universidade, Membro do Instituto Geográfico e Histórico, imortal da Academia de Letras da Bahia, personalidade agraciada com a Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

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