Fernandes Távora (1877-1973)
Artigo escrito em 11 de agosto de 1911, a bordo do antigo vapor “Bahia” – pelo autor – no seu regresso do Acre, onde havia clinicado durante 12 anos; e publicado no “Jornal do Comércio”, do Rio de Janeiro, depois do seu desembarque.
Vai para quarenta anos.
Uns homens tristes, maltrapilhos e esquálidos, de olhar embaciado e passo tardo, as feições contraídas pelo surdo pungir de sensações inauditas, o pensamento desvairado por alucinações dolorosas, arrastavam-se ao sabor de desventuras imensas, através de campos combustos e desolados, fulminados por um sol candente, num desfilar macabro que mais se assemelhava a uma procissão de sombras.
A fome, a sede, a dor e a morte formavam o fundo desse quadro dantesco, onde um perene crepúsculo de desesperança enlutava as almas combalidas pelo maior infortúnio que já pesou sobre terras da América.
Pela retina alucinada passavam céleres os belos quadros da passada ventura, contrastando com a visão apavorante de um presente cheio de negrores, repleto de misérias e incomportáveis desventuras.
Quem eram esses homens?
Para onde iam nesse caminhar doloroso e lento?
Que buscavam, rumando o Norte numa tenacidade de quem cumpre um destino?
Escutai-me oh! Vós que me quiserdes acompanhar nessa tremenda via-sacra, que representa, sem dúvida, a mais alevantada epopeia da constância e resignação humanas. Eram uns desditosos filhos do nordeste brasileiro, aos quais o destino cego dera em partilha um solo ubérrimo e cheio de encantos, a par de um clima invejável, mas de estações inconstantes.
Ali viveram felizes algumas décadas, deslembrados do futuro, que não podiam sonhar calamitoso, presos à terra que lhes dera venturoso abrigo. Um dia, com o cérebro ainda povoado de visões risonhas da passada primavera, vêem irromper o flagelo tredo e feroz, calcinando os campos, crestando as pastagens, secando as fontes, destruindo os rebanhos e exaurindo a vida, como se fora a vingança tremenda de uma divindade irritada contra a humanidade revolta.
O êxodo começa; e nos poeirentos caminhos alastra-se a miséria que foge ao terrível açoite da calamidade implacável, iniciando-se a grandiosa caminhada que se epilogará em região remota, que a natureza preparava ainda, para complemento da terra flagelada.
Providência ou acaso, ela lá estava no extremo norte, grande como um continente, ubertosa como nenhuma outra, coberta das mais belas florestas, sulcada pelos maiores rios, povoada pela mais rica fauna, formosa Canaan desses novos hebreus que fugiam ao cativeiro do fado.
Por uma dessas profundas intuições, só peculiares às raças predestinadas, aqueles homens rumaram ao Norte, numa estranha pertinácia, como se os atraíssem forças desconhecidas ao cumprimento do altíssimo destino. O Norte era então o desconhecido país remoto que as amazonas cruzaram nas correrias lendárias, sombria morada da morte, cujo símbolo, a mancenilha, lá desdobrava a sedutora copa num eterno convite ao aniquilamento.
Era a terra de onde se não voltava; onde a vida era mágoa contínua e a morte libertação desejada; país de lendas apavorantes que as distâncias ensombravam ainda mais, envolvidas na ignorância e no mistério.
Mas seguiam sempre sob o mesmo influxo da desgraça que os arrancara da pátria, suportando as inclemências de outros climas, arrostando os elementos sempre hostis, sujeitos a todas as vicissitudes e maus tratos, desde o infecto porão dos navios sem ar e sem luz, até as praias desertas onde o sol equatorial os siderava; desde o ressequido torrão da pátria que lhes negava a gota dágua, até as diluviais torrentes amazônicas, que os encharcavam até a medula dos ossos.
Ei-los chegados, após inerráveis sofrimentos, às margens soberbas do grande rio, espraiando melancolicamente a vista amortecida pela vastidão tristonha das águas sem fim. Sobem mais e o cenário muda.
Quadros inéditos se desdobram a perder de vista como se foram mágicos oásis encantadores, onde descansassem a vista os míseros proscritos, mal despertos ainda de um sonho doloroso.
Tudo ali os convidara a radicarem-se ao solo e descansarem da longa caminhada, ao rumor constante de cascatas, ao brando murmúrio dos regatos, na contemplação de eterna primavera.
O solo era úbere, as sementeiras desabrochavam em fartas messes que produziam abastança, a caça abundantíssima, o peixe inumerável, a floresta frutífera, a natureza pródiga.
Que mais queriam os estranhos viajores? Por que se não detiveram nesse trecho de terra admirável que primeiro lhes feriu agradavelmente a retina acostumada aos quadros dolorosos?
E que força oculta e misteriosa os impelia para os confins da terra imensa que então pisavam pela primeira vez? É que traziam no sangue o germe de espantosos heroísmos, que precisavam de um cenário condigno para sua manifestação.
Eles haviam acumulado, em séculos de atrozes sofrimentos, através de calamidades sem conta, essa reserva imensa de energia que havia de manifestar-se um dia na mais assombrosa epopeia da expansão pacífica dos povos. Foi por isso que a caudal humana não parou um só instante nas regiões vizinhas à foz do rio-mar, e continuou, precipite, na marcha encetada, galgando a embocadura dos grandes afluentes para a verdadeira obra da conquista.
Julgar-se-ia que ali deveriam abrandar seus sofrimentos ante a visão edênica dessa terra de seiva incomparável, na magnitude desses panoramas onde a natureza na máxima virgindade parecia elevar um solene protesto contra a miséria e contra a dor. Puro engano!
Aí começa o seu verdadeiro martirológio. Novos Tântalos, eles sofrem as mais profundas misérias, as mais intoleráveis dores que já foi dado sofrer a seres humanos, em meio da mais rica e pujante natureza do globo.
A marcha continua; os navios abarrotados vão dispersando pelos barrancos desertos dos grandes rios os prisioneiros da dor e os ecos do labor humano cantaram pela primeira vez, naquelas selvas, o hino triunfal da civilização.
Subiram os igarapés, vararam os furos, cruzaram os lagos, rasgaram a floresta, galgaram cambirotos, atravessaram os chavascais, vadearam os rios... Estava encetada a conquista e lançado o primeiro desafio à natureza inimiga. De então em diante a luta foi tremenda: as levas humanas não mais pararam nessa escalada épica e, através de obstáculos sem conta, num frêmito de incontidas energias, sobranceiros à dor e à morte, que sempre desprezaram, domaram afinal a natureza áspera, e, sobrepondo-se à ação do tempo, numa sublime violência, obrigaram-na a cumprir em pouco mais de trinta anos o que não faria, talvez, em trinta séculos, estreme daquela estupenda ação humana.
Euclides da Cunha disse alhures, numa das suas admiráveis concepções sintéticas, que “a natureza amazônica ainda não estava preparada para receber o homem”.
A terra, na verdade, formava-se, os aluviões se superpunham numa cadência fastidiosa de séculos; os rios, num titubear de infantes, iam sacando as voltas, quebrando os barrancos, mudando as praias, nessa função geológica intensa dos talwegs que se definem; e a natureza toda, na rudeza das coisas inacabadas, eriçada de arestas, esperava o deslizar dos milênios para mostrar-se em perfeição.
Parou, por acaso, algum momento ante a intimação formal da natureza o rude conquistador do deserto?
Parou, sim, apenas um instante, para encarar resoluto a morte e seguir avante, no arrojo supremo dos abnegados! Dezenas, centenas, milhares de irmãos foram ficando na via dolorosa, tristes marcos da cruenta jornada de um povo inflexível que, apesar de todos e de tudo, havia de vencer. Ei-los afinal, alguns anos depois aflorando as nascentes remotas dos pequenos tributários do grande rio.
Onde estavas eles? Em que latitude, em que país se achavam?
Sabiam lá!...
Diante deles era o deserto, para os lados ainda o deserto e para trás, bordando a fita interminável dos rios, um vago pontilhado de núcleos humanos na vastidão incalculável das terras percorridas, frágeis elos que a morte ia quebrando, como que empenhada em dissolver a débil cadeia humana, que apenas o pensamento unia, na imensidade daquelas selvas! Passaram-se anos em que a luta continuou com suma violência. Domada a natureza, restava ainda subjugar o selvícola, seu irmão gêmeo na hostilidade e na rudeza, que defendeu sempre com galhardia as suas terras até cair vencido ou recuar ante a energia incontrastável da raça conquistadora, para continuar mais adiante a luta interrompida.
Afinal o índio foi domado ou fugiu para o planalto, e os recém-chegados puderam internar-se nas matas, fazendo brotar a flux o ouro vegetal que, numa secular virtualidade, só esperava pela mão do homem audaz, que o havia de levar aos quatro mundos.
Estava feita a conquista da Amazônia e firmada para todo o sempre a grandeza de uma raça! Quem seria capaz de medir a funda nostalgia, a mortal saudade dos desventurados proscritos que, através das distâncias imensuráveis, sonhavam com a pátria estremecida, arrancando, do suave escrínio de sua alma dolorida, os cânticos singelos dos sertões de sua terra e no dedilhar da viola gemente, iam suavizando as mágoas, quase em soluços, numa ânsia infinita de voar!...
E acaso poderiam esquecer, nos momentos de tréguas, tudo que haviam deixado longe, debaixo do adorado céu da pátria, nesses incomparáveis recantos da terra do berço, gravados indelevelmente na alma como parte integrante de todos os seres e patrimônio inalienável de todos os proscritos? Eles viam, num sonho pungente, de amaríssimas saudades, a casinha solitária a ermida, o campo, o arvoredo, o rio... e por sobre tudo isso, o sol, o abençoado e fecundante sol de sua terra, a cujos raios benéficos esperavam aquecer-se ainda um dia, haurindo, num imenso raio de luz, a saúde, a seiva perdida, a mocidade gasta nas regiões da morte. Pobres sonhadores! Num desfiar contínuo de suspiros, vão soltando a vida, como se a quisessem transmitir em fluidos às regiões amadas; e, no diluir-se em saudades, iam morrendo esses novos argonautas do ouro negro, num itinerário inverso, bem mais triste que o primeiro, em demanda da pátria que raramente chegavam a rever.
Quando subiam, devorados de sonhos, sentiam menos o acicate da miséria que os tangia, deslumbrados que estavam, pela visão longínqua da independência que entreviam além, sempre além dos horizontes atingidos.
Agora o caminhar é outro, como outro é o pensamento que os consome. Já não são os mesmos homens de rijo querer e robusta organização que venceram a dor e conquistaram o deserto, são restolhos humanos, uns semi-mortos que, no arquejar de uns restos de vida, vêm rolado ao sabor das correntezas, descrentes do futuro que lhes fugiu com a saúde, desiludidos, numa tortura sem par de quem se sente morrer sem ter vivido e que, muito longe ainda da pátria, perde a esperança de nela dormir o último.
E os barrancos se vão novamente cobrindo de cruzes, e a natureza, vingada, assiste solene e implacável do castigo de seus dominadores, abrindo sorridente o seio para receber essas heroicas sementeiras humanas, lastro sangrento mas inevitável do progresso, que há de germinar mais tarde numa frutificação bendita, num desabrochar de eternas aleluias!
Era já tempo de pararem na sua vertigem os sublimes bandeirantes do norte que, ao galgarem os primeiros contrafortes das regiões andinas, entestaram com povos de outra raça. Um dia, ofegantes ainda da luta com a natureza, surge-lhes no horizonte o fantasma da guerra, desta vez não mais com o gentio, senão com outra raça, também forte, que pleiteava, em nome de outra nacionalidade, o domínio do deserto. Nem por um momento recuaram os denodados campeões da nossa raça. Perdidos no meio da selva infinita, segregados dos homens, abandonados da sua nacionalidade que, num eclipse do bom-senso e com soberana injustiça, os renega, deixando-os à mercê do contendor estrangeiro, eles, os denodados voluntários da morte, aceitaram a luta. Tudo lhes prenunciava a derrota, e eles venceram ainda uma vez, para suprema afirmação de sua heroicidade!
A nação contestante abateu armas ante esse pugilo de bravos que, mercê do gesto nobre e altamente patriótico do mais glorioso dos brasileiros, viram de uma vez para sempre confirmados os seus direitos à terra conquistada.
O historiador do futuro, relendo um dia o feito estranho, julgará certamente que muito ouro nos terá custado a conquista da Amazônia e que séculos tenham sido precisos para levar a termo a obra colossal.
Pouco mais de três décadas, alguns milhares de homens fortes, aquinhoados pela supina indiferença dos seus compatriotas, eis tudo quanto bastou para levar a término a obra singular!
O país, coisa notável e sem par nos anais da expansão humana, não gastou um ceitil na realização do magno empreendimento, para cuja execução outras nações não trepidaram em mobilizar exércitos e gastar bilhões.
Sabia, vagamente, que uns perseguidos filhos do Nordeste se encaminhavam para aquelas bandas, carentes de todo conforto, desajudados de todos os amparos, a marcarem o doloroso itinerário com a modesta cruz de covas rasas e as ossadas dos insepultos. Não teve um gesto sequer de piedade para os bravos que, nos longínquos pântanos da morte, iam alargando, num contínuo morrer, os domínios do pavilhão auriverde! Deixou correr a esmo a grande obra que deveria ter sido guiada pela assistência moral de governos conscientes; permitiu que morresse no mais impiedoso abandono a flor daquela mocidade forte; cerrou ouvidos aos justíssimos reclamos daquela sociedade nascente que, composta de homens rudes, suspirava por um bafejo de civilização.
E não desanimaram esses incompreendidos super-homens; e não morreram essas nascentes agremiações na sua tenacíssima vontade de viver!
Cresceram malgrado o desamparo, senão hostilidade dos governos, medraram apesar do vento de morte que nunca cessou de soprar sobre elas; e sobranceiras a todos os auxílios, constituíram-se no mundo o supra sumum das energias humanas! Hipérboles, dirão! Justiça é que é, que para definir a grandeza da Amazônia um vocábulo ainda não existe e muito menos para a glorificação de seus conquistadores. Estes, no estreito âmbito de seus destinos simples, e na adorável candura de suas almas desambiciosas, irão passando, inconscientes de sua grandeza e indiferentes à tremenda injustiça que lhes irroga à memória uma nação de deslembrados!
“Nulle souffrance ne se perd, toute douleur fructifie” supremo consolo dos deserdados, fórmula soberana que vincula insofismavelmente o mundo moral ao mundo físico e sintetiza o eterno evoluir do sentimento, a sublime frutificação da dor humana!
Não poderiam realmente esses filhos prediletos da dor e do sofrimento augurar para a sua obra imorredoura o destino inglório dos atos infrutíferos.
Erguendo pelo sofrimento e cimentando com o suor de supremas angústias o edifício grandioso da conquista do deserto verde, o acreano, esse símbolo vivo da constância humana, ao calcar o terra onde inumeráveis irmãos dormem o sono derradeiro e onde abrem os olhos pela primeira vez os filhos da sua mágoa e da sua saudade, encastelado nos extremos lindes da pátria, pode, relanceando o olhar pela mais vasta e pujante região do globo, nobremente exclamar como o grego de Byron!
“Standing on the persian grave,
I should not dream myself slave”
(De pé sobre o túmulo dos persas
Eu não podia reputar-me escravo).
TÁVORA, Fernandes. Algo de minha vida. 2.ª edição. Fortaleza: Departamento de Imprensa Nacional, 1963. p. 147-155
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Manuel do Nascimento Fernandes Távora (Jaguaribe, 1877 – Fortaleza 1973), médico, farmacêutico, jornalista, professor e político. Deputado Estadual, Constituinte e Federal, além de Interventor e Senador, todos pelo estado do Ceará. “Entre 1904 e 1916 radicou-se na Amazônia, empregando seus serviços de médico no rio Juruá e afluentes. [...] Como jornalista, escreveu em jornais no Amazonas, no Acre e no Pará. No Ceará, em 1921, fundou A Tribuna, que fazia oposição ferrenha ao governo de Artur Bernardes.” Escreveu, entre outros, Considerações sobre o Estado Mental do Padre Cícero (1943); Joaquim Távora: A Alma da Revolução (1944); Algo de Minha Vida (1961) e Idéias e Perfis (1967).
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